Vidas Secas | |
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Considerado o continuador de Machado de Assis no Modernismo, Graciliano Ramos apresenta uma família de retirantes em meio a duas secas. Eliminando o que não é essencial, como descrições minuciosas, frases feitas e lugares-comuns, Vidas Secas, adaptado para o cinema por Nelson Pereira dos Santos, retrata em 13 capítulos independentes o drama social e geográfico do povo nordestino condenado às limitações da existência, ao autoritarismo e à repressão imposta pelo mais forte, seja ele o poder ou a natureza. | ||||||||||||||||
Por Maria de Lourdes Conceição Cunha, professora de Literatura e Língua Portuguesa do Curso e Colégio Objetivo | ||||||||||||||||
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O continuador de Machado de Assis |
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A linguagem sintética e incisiva reflete os cuidados rigorosos que Graciliano Ramos soube ter para com a sobriedade, a correção e a precisão de vocábulos, meticulosamente escolhidos e trabalhados, para poder retratar a paisagem do Nordeste agreste, das zonas agropecuárias. Seu estilo seco, frio, enxuto e impessoal, repleto de senso psicológico, aproxima-o de Machado de Assis, sendo considerado seu legítimo continuador, sabendo exprimir a amarga realidade do homem nordestino com agudeza. O herói é sempre problemático e revoltado, pois não aceita o mundo e vive o drama de seu destino, daí não aceitar também aos outros nem a si mesmo. Cada personagem é símbolo da opressão e da dor, como o sertanejo desarraigado, levado do mundo primitivo e imóvel para o mundo de movimento, de seres oprimidos. |
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A época de Graciliano |
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A segunda geração modernista brasileira não chegou a provocar um escândalo como a geração de 22. Porém, nela as relações do personagem com o meio natural e social ganharam importância, caracterizando-se os romancistas de 1930 pela adoção de uma visão crítica das relações sociais e pelo empenho em desvendar e denunciar a atrasada civilização brasileira. O primeiro romance engajado na denúncia da realidade social brasileira foi A Bagaceira, de José Américo de Almeida, mas o ponto de partida foi o Manifesto Regionalista de 1926, que procurava desenvolver o "sentimento de unidade do Nordeste". | ||||||||||||||||
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Na década de 30, o Nordeste passou, então, a ser o material essencial para a literatura, assim como o homem hostilizado pela terra, pelos problemas que o meio lhe impunha. Enquanto Macunaíma rompeu com a forma tradicional da literatura brasileira, o romance nordestino questionou os efeitos da degradação humana que decorria das condições naturais, da estrutura agrária baseada nos latifúndios, em meio aos abalos provocados no país pela crise desencadeada pela quebra da bolsa de Nova York, pela crise cafeeira e pela Revolução de 30. | ![]() | |||||||||||||||
Resumo do livro |
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Publicado pela primeira vez em 1938, Vidas Secas é composto
por 13 capítulos independentes, que podem ser lidos como contos ou juntos,
como um romance.
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Mudança |
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Uma família de retirantes, composta por Fabiano, sinha Vitória (curiosamente, Graciliano Ramos não acentuou a palavra como oxítona, sinhá), dois filhos – o menino mais velho, o menino mais novo –, a cachorra Baleia e o papagaio, foge da seca. Em meio à caminhada, o menino mais velho põe-se a chorar e o pai o xinga, fustigando-o com a bainha da faca de ponta pensando em deixá-lo para trás para morrer. Eram seis viventes, contando o papagaio, porém a fome era tamanha que a ave se transformou em alimento, já que era muda e inútil. Fabiano percebe uma nuvem, aponta-a para a mulher e, chegando ao pátio de uma fazenda abandonada, fixam residência. | ![]() | |||||||||||||||
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Fabiano |
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Fabiano, homem embrutecido capaz de perceber suas limitações, filho e neto de vaqueiros, apossa-se da casa abandonada. Porém, o fazendeiro volta por causa da melhoria do tempo e, depois de expulsar a família, acaba aceitando Fabiano como vaqueiro. |
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O patrão
mostra autoridade descompondo Fabiano, que se desculpava e prometia
emendar-se, pois sabia que não podia perder o emprego e que o fazendeiro
só precisava mostrar autoridade. Na verdade, sabia que a seca ia chegar,
que nem valia a pena trabalhar. |
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Cadeia |
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Fabiano vai à feira da cidade para fazer compras, toma pinga e percebe que seu Inácio coloca água em tudo que vende. Sai e senta-se na calçada. Um soldado amarelo bate-lhe no ombro e convida-o para jogar trinta-e-um. Fabiano procura palavras para recusar o convite, porém, como soldado é autoridade, acaba acompanhando-o, joga, perde e sai furioso da sala, contrariando a ordem do soldado que o mandava esperar. O vaqueiro estava pensando numa desculpa para dar à mulher quando o soldado, de repente, empurra-o e planta o salto da botina em cima da alpercata de Fabiano, que solta um palavrão, ofendendo a mãe do soldado. Levado para a cadeia, o vaqueiro apanha muito e, novamente, analisa sua situação de homem-bicho: | ||||||||||||||||
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Fabiano
deseja vingar-se, mas muda de idéia quando pensa na família, considerando
que, assim como o patrão, o soldado precisava exercer seu
autoritarismo. |
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Sinha Vitória |
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Sinha pensa em vender as galinhas para realizar o sonho que tinha havia mais de um ano: possuir uma cama de lastro de couro igual à de seu Tomás, constatando que só faltava a cama para serem felizes. Tem medo de uma nova seca, porém a companhia do marido a faz sentir-se segura. | ||||||||||||||||
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O menino mais novo | ||||||||||||||||
O ideal de vida do menino mais novo é ser igual ao pai, forte e vaqueiro. Sua emoção maior aconteceu quando a cilha arrebentou e o pai, para espanto e entusiasmo do filho, caiu em pé. | ||||||||||||||||
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No dia seguinte, foi para o bebedouro e, quando o bode chegou para beber, saltou sobre ele, mas os pulos foram tantos que o menino acabou caindo no meio da lama, sob as risadas do irmão mais velho, a reprovação de Baleia e o medo da possibilidade de surra. | ![]() | |||||||||||||||
O menino mais velho |
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O menino mais velho sente curiosidade pelo significado da palavra inferno e, sem uma resposta elucidativa do pai, procura a mãe, que aludiu vagamente a um lugar ruim demais. O filho pergunta à mãe se o tinha visto e ela, indignada, aplica-lhe um cocorote. O menino, seguido pela cachorra, sai de casa. A cadela tenta distraí-lo brincando, oferecendo-lhe a amizade que ele tanto procurava. | ||||||||||||||||
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Inverno | ||||||||||||||||
Fazia frio intenso e a família reuniu-se em torno do fogo. Fabiano procura conversar e, por meio de monossílabos e frases sem sentido, tenta contar uma história, mas é interrompido pelo filho que vai buscar lenha. Recomeça a obscura história e é novamente interrompido com uma discussão entre os meninos. | ||||||||||||||||
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Baleia enjoou da história e queria que todos se deitassem para que ela pudesse dormir também. Todos têm medo da tempestade, pois ela é sinal de seca. | ![]() | |||||||||||||||
Festa |
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Era festa de Natal na cidade. Todos se sentiam mal nas roupas que não eram normalmente usadas, principalmente incomodados pelos sapatos. Na igreja, os meninos se encantavam com as imagens e as luzes. Fabiano evitava falar com as pessoas da cidade, desconfiado de todos. Na verdade, sentiam-se humilhados em contato com as outras pessoas. Ao terminar a missa, as crianças foram brincar nos cavalinhos, enquanto Fabiano embriagava-se. Baleia desapareceu por momentos, deixando todos preocupados. A festa termina, Sinha Vitória sonha com sua cama de couro e Fabiano tem pesadelos com muitos soldados amarelos. |
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Baleia |
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Baleia
estava doente, prestes a morrer. Fabiano achou que ela estava com
hidrofobia e apressou a morte do animal. Os meninos ficaram inconsoláveis
pela perda da irmã e o coração de Sinha Vitória também ficara pesado.
Baleia desconfiou das intenções de Fabiano, que acaba acertando-lhe um
tiro nos quartos traseiros. Ela foge e, em meio à agonia, misturam-se
presente, passado e futuro nos pensamentos dela, sonhando com outro tipo
de vida. Não podia entender o porquê da atitude de
Fabiano. |
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Contas |
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O patrão
roubava Fabiano na hora da partilha, obrigando-o a vender seus cabritos
por um valor muito pequeno. Sinha Vitória fazia as contas para Fabiano e
elas não conferiam com as do patrão. |
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Um dia,
Fabiano reclamou e o patrão mandou-o procurar serviço em outro lugar.
Então, o vaqueiro desculpou-se e foi tentar vender um porco magro para
cobrir as despesas, mas um fiscal da prefeitura acabou infligindo-lhe um
imposto e uma multa pela tentativa de venda. |
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O soldado amarelo |
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Em meio à
caatinga deserta, Fabiano encontra-se com o soldado amarelo que o havia
prendido. Por um segundo passa-lhe pela cabeça a idéia da vingança, pois
percebeu que podia dar fim ao soldado com facilidade já que ele tremia
acovardado. Fabiano afrouxou-se, pensou que apanhar do governo não é
desfeita. O soldado, percebendo a mudança do vaqueiro, perguntou-lhe o
caminho e ele, tirando o chapéu, curvado, ensinou-lhe. |
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O mundo coberto de
penas |
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Era necessário abandonar aquele lugar. |
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Fuga |
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A fazenda estava despovoada. Fabiano e a família partem de madrugada em silêncio, deixando para trás o sonho. Sinha Vitória lembra-se de Baleia e chora. Fabiano espera que algo aconteça e reverta a situação, por isso caminha lentamente. Marido e mulher amparam-se e pensam juntos pela primeira vez. Sinha Vitória fala da esperança de dias melhores, cultivariam um pedaço de terra, os meninos iriam para a escola e seriam diferentes dos pais. | ||||||||||||||||
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Análise do fenômeno Vidas Secas |
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Como nasceu a obra |
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Em carta datada de julho de 1944, Graciliano Ramos explicou a João Condé – editor e colecionador de curiosidades e preciosidades literárias – a construção desse livro: | ||||||||||||||||
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Ciclo da seca |
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Vidas Secas pode ser considerado um livro sociopolítico em que a natureza
áspera e enxuta interessa só enquanto propõe o momento da realidade
hostil, sintetizando a tragédia social brasileira no sertão nordestino,
numa perfeita união de elementos diversos: o homem, a paisagem, os bichos,
a terra, a fome, a humilhação e a seca. O ciclo do flagelo da seca é ininterrupto; não há princípio nem fim. A narrativa se dá entre duas secas: começa no findar de uma e acaba com o início da outra, sendo esta característica cíclica do fenômeno simbolizada nos capítulos extremos, Mudança e Fuga, eternizando o círculo vicioso que renova a miséria e a esperança. |
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Neutralidade da narrativa |
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Por um ângulo neutro, narrador em terceira pessoa (o narrador onisciente se apresenta durante a narrativa, evidenciando o pensamento e sentimentos das personagens por meio do discurso indireto livre), o drama da família de retirantes e as perspectivas de suas vidas secas proporciona um verdadeiro estudo psicológico do universo mental de Fabiano, Sinha Vitória, Baleia, tangidos pela seca e pela opressão dos que podem mandar, como o soldado amarelo e o patrão. O reduzido mundo mental é esmiuçado por meio do discurso indireto livre, já que os diálogos praticamente inexistem ou são substituídos por exclamações, onomatopéias e sons guturais de um pobre vivente esmagado pela agressividade climática, obrigado ao deslocamento periódico. | ||||||||||||||||
Fabiano, homem em estado puro |
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Fabiano é
um continuador das injustiças e opressões. Louro, de olhos azuis, tosco,
desajeitado e forte, dobra-se pela consciência secular de servidão e seu
sentimento de inferioridade leva-o ao isolamento e à convicção de que não
passa de um bruto, um animal que se identifica com os outros animais
considerados irracionais e com quem apenas se dava bem. Fabiano tem consciência de que não sabe falar e admira as palavras compridas e difíceis da gente da cidade. Pode-se dizer que Fabiano é um homem em seu estado puro, primitivo, temente das forças da natureza e passivo acatador de ordens dos mais poderosos, um adulto vencido, condenado às imposições duras da terra e à contínua ameaça do sol, refletindo em suas características físicas a aridez da paisagem: rosto crestado, pés rachados, cabelos avermelhados e olhos azuis provam a ligação do homem com a terra. As cores também exercem função representativa na obra: o vermelho e a tragédia, o amarelo e a angústia, o negro e a dor. |
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O inimigo comum |
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Vidas
Secas foi
escrito enquanto o fascismo crescia no mundo. Ousadamente, Graciliano
Ramos cria uma obra anti-racista: um homem louro como o sol, casado com
uma mulata. Ele, rude, incapaz de fazer contas e se comunicar; ela,
suficientemente inteligente para pensar e agir pela família. Os problemas pessoais de cada um dos membros da família, a incomunicabilidade familiar, o atrofiamento das faculdades intelectuais, a incompreensão entre pais e filhos, a impotência do homem diante da paisagem dura e desafiadora a sugerir destruição e morte, reduzindo as aspirações à possibilidade de sobrevivência – enfim, tudo parece conspirar para a separação, porém há união contra um inimigo comum. |
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Humanização da cadela |
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Um aspecto merecedor de atenção especial é Baleia, a cachorrinha elevada à categoria de personagem, dotada de extrema sensibilidade, que consegue sentir e reagir de maneira humanizada e progressiva, andando e sentindo como gente, cheia de afetividade e inteligência, num processo inverso ao que ocorre com Fabiano: a desumanização dos personagens versus a humanização dos animais (a zoomorfização e a antropomorfização). O soldado amarelo é símbolo do autoritarismo local, moralmente corrupto, respeitado e temido por representar o governo, arbitrário e ignorante, complementando a opressão representada pelos poderosos como o patrão. | ||||||||||||||||
A seca, do romance à linguagem |
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A seca é
generalizada: afetiva, econômica, vocabular, política, climática. A
seqüência de males (seca, fazendeiro, soldado), a ausência de nomes dos
meninos que caracteriza a vida mesquinha e sem sentido dos retirantes, a
inutilidade da comunicação, o menino sem horizonte, porém sensível ao
mundo, a opressão e a submissão do homem marcam a peregrinação aflitiva da
família de retirantes, condenados à luta pela afirmação da própria
existência. Os livros de Graciliano Ramos normalmente finalizam em desgraça, menos Vidas Secas. Nele, em suas últimas páginas, em vocabulário exato, frases secas, curtas e essenciais, em apurado espírito de síntese, a impotência do homem diante da seca é amenizada pela tênue luz de esperança de vencer o flagelo: |
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