PLANO DIRETOR DA REFORMA
DO APARELHO DO ESTADO
Câmara da Reforma do Estado

2- AS TRÊS FORMAS DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A reforma do aparelho do Estado tornou-se imperativa nos anos 90 por uma segunda razão. Não apenas ela se constituiu em uma resposta à crise generalizada do Estado, mas também está sendo caracterizada como uma forma de defender o Estado enquanto res publica, enquanto coisa pública, enquanto patrimônio que, sendo público, é de todos e para todos.

A defesa da coisa pública vem sendo realizada nas democracias modernas em dois níveis distintos: o nível político e o administrativo. No nível político, temos as instituições fundamentais da democracia, através das quais se defendem não apenas os direitos individuais e sociais dos cidadãos, mas também os "direitos públicos" à participação igualitária na coisa pública. As eleições livres e a liberdade de pensamento e de imprensa são formas de defender o cidadão e a coisa pública. A explicitação dos direitos públicos ao patrimônio que é de todos é um passo que está hoje sendo dado em todo o mundo. A denúncia da "privatização" do Estado pela esquerda corresponde à denúncia da direita de que o Estado e a sociedade estão sendo vítimas da prática generalizada do rent seeking, da busca de rendas ou vantagens extramercados para grupos determinados através do controle do Estado. Ainda no plano democrático, a prática cada vez mais freqüente da participação e controle direto da administração pública pelos cidadãos, principalmente no nível local, é uma nova forma de defender a coisa pública.

No plano administrativo, a administração pública burocrática surgiu no século passado conjuntamente com o Estado liberal, exatamente como uma forma de defender a coisa pública contra o patrimonialismo. Na medida, porém, que o Estado assumia a responsabilidade pela defesa dos direitos sociais e crescia em dimensão, foi se percebendo que os custos dessa defesa podiam ser mais altos que os benefícios do controle. Por isso, neste século as práticas burocráticas vêm sendo substituídas por um novo tipo de administração: a administração gerencial.

A reforma do aparelho do Estado não pode ser concebida fora da perspectiva de redefinição do papel do Estado e, portanto, pressupõe o reconhecimento prévio das modificações observadas em suas atribuições ao longo do tempo. Dessa forma, partindo-se de uma perspectiva histórica, verificamos que a administração pública - cujos princípios e características não devem ser confundidos com os da administração das empresas privadas - evoluiu através de três modelos básicos: a administração pública patrimonialista, a burocrática e a gerencial. Essas três formas se sucedem no tempo, sem que, no entanto, qualquer uma delas seja inteiramente abandonada.

Administração Pública Patrimonialista - No patrimonialismo, o aparelho do Estado funciona como uma extensão do poder do soberano, e os seus auxiliares, servidores, possuem status de nobreza real. Os cargos são considerados prebendas. A res publica não é diferenciada da res principis. Em conseqüência, a corrupção e o nepotismo são inerentes a esse tipo de administração. No momento em que o capitalismo e a democracia se tornam dominantes, o mercado e a sociedade civil passam a se distinguir do Estado. Neste novo momento histórico, a administração patrimonialista torna-se uma excrescência inaceitável.

Administração Pública Burocrática - Surge na segunda metade do século XIX, na época do Estado liberal, como forma de combater a corrupção e o nepotismo patrimonialista. Constituem princípios orientadores do seu desenvolvimento a profissionalização, a idéia de carreira, a hierarquia funcional, a impessoalidade, o formalismo, em síntese, o poder racional legal. Os controles administrativos visando evitar a corrupção e o nepotismo são sempre a priori. Parte-se de uma desconfiança prévia nos administradores públicos e nos cidadãos que a eles dirigem demandas. Por isso, são sempre necessários controles rígidos dos processos, como por exemplo na admissão de pessoal, nas compras e no atendimento a demandas.

Por outro lado, o controle - a garantia do poder do Estado - transforma-se na própria razão de ser do funcionário. Em conseqüência, o Estado volta-se para si mesmo, perdendo a noção de sua missão básica, que é servir à sociedade. A qualidade fundamental da administração pública burocrática é a efetividade no controle dos abusos; seu defeito, a ineficiência, a auto-referência, a incapacidade de voltar-se para o serviço aos cidadãos vistos como clientes. Esse defeito, entretanto, não se revelou determinante na época do surgimento da administração pública burocrática porque os serviços do Estado eram muito reduzidos. O Estado limitava-se a manter a ordem e administrar a justiça, a garantir os contratos e a propriedade.

Administração Pública Gerencial - Emerge na segunda metade do século XX, como resposta, de um lado, à expansão das funções econômicas e sociais do Estado e, de outro, ao desenvolvimento tecnológico e à globalização da economia mundial, uma vez que ambos deixaram à mostra os problemas associados à adoção do modelo anterior. A eficiência da administração pública - a necessidade de reduzir custos e aumentar a qualidade dos serviços, tendo o cidadão como beneficiário - torna-se então essencial. A reforma do aparelho do Estado passa a ser orientada predominantemente pelos valores da eficiência e qualidade na prestação de serviços públicos e pelo desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações.

A administração pública gerencial constitui um avanço, e até um certo ponto um rompimento com a administração pública burocrática. Isso não significa, entretanto, que negue todos os seus princípios. Pelo contrário, a administração pública gerencial está apoiada na anterior, da qual conserva, embora flexibilizando, alguns dos seus princípios fundamentais, como a admissão segundo rígidos critérios de mérito, a existência de um sistema estruturado e universal de remuneração, as carreiras, a avaliação constante de desempenho, o treinamento sistemático. A diferença fundamental está na forma de controle, que deixa de basear-se nos processos para concentrar-se nos resultados, e não na rigorosa profissionalização da administração pública, que continua um princípio fundamental.

Na administração pública gerencial a estratégia volta-se: (1) para a definição precisa dos objetivos que o administrador público deverá atingir em sua unidade; (2) para a garantia de autonomia do administrador na gestão dos recursos humanos, materiais e financeiros que lhe forem colocados à disposição para que possa atingir os objetivos contratados; e (3) para o controle ou cobrança a posteriori dos resultados. Adicionalmente, pratica-se a competição administrada no interior do próprio Estado, quando há a possibilidade de estabelecer concorrência entre unidades internas. No plano da estrutura organizacional, a descentralização e a redução dos níveis hierárquicos tornam-se essenciais. Em suma, afirma-se que a administração pública deve ser permeável à maior participação dos agentes privados e/ou das organizações da sociedade civil e deslocar a ênfase dos procedimentos (meios) para os resultados (fins).

A administração pública gerencial inspira-se na administração de empresas, mas não pode ser confundida com esta última. Enquanto a receita das empresas depende dos pagamentos que os clientes fazem livremente na compra de seus produtos e serviços, a receita do Estado deriva de impostos, ou seja, de contribuições obrigatórias, sem contrapartida direta. Enquanto o mercado controla a administração das empresas, a sociedade - por intermédio de políticos eleitos - controla a administração pública. Enquanto a administração de empresas está voltada para o lucro privado, para a maximização dos interesses dos acionistas, esperando-se que, através do mercado, o interesse coletivo seja atendido, a administração pública gerencial está explícita e diretamente voltada para o interesse público.

Neste último ponto, como em muitos outros (profissionalismo, impessoalidade), a administração pública gerencial não se diferencia da administração pública burocrática. Na burocracia pública clássica existe uma noção muito clara e forte do interesse público. A diferença, porém, está no entendimento do significado do interesse público, que não pode ser confundido com o interesse do próprio Estado. Para a administração pública burocrática, o interesse público é freqüentemente identificado com a afirmação do poder do Estado. Ao atuarem sob esse princípio, os administradores públicos terminam por direcionar uma parte substancial das atividades e dos recursos do Estado para o atendimento das necessidades da própria burocracia, identificada com o poder do Estado. O conteúdo das políticas públicas é relegado a um segundo plano. A administração pública gerencial nega essa visão do interesse público, relacionando-o com o interesse da coletividade e não com o do aparato do Estado.

A administração pública gerencial vê o cidadão como contribuinte de impostos e como cliente dos seus serviços. Os resultados da ação do Estado são considerados bons não porque os processos administrativos estão sob controle e são seguros, como quer a administração pública burocrática, mas porque as necessidades do cidadão-cliente estão sendo atendidas.

O paradigma gerencial contemporâneo, fundamentado nos princípios da confiança e da descentralização da decisão, exige formas flexíveis de gestão, horizontalização de estruturas, descentralização de funções, incentivos à criatividade. Contrapõe-se à ideologia do formalismo e do rigor técnico da burocracia tradicional. À avaliação sistemática, à recompensa pelo desempenho, e à capacitação permanente, que já eram características da boa administração burocrática, acrescentam-se os princípios da orientação para o cidadão-cliente, do controle por resultados, e da competição administrada.

No presente momento, uma visão realista da reconstrução do aparelho do Estado em bases gerenciais deve levar em conta a necessidade de equacionar as assimetrias decorrentes da persistência de aspectos patrimonialistas na administração contemporânea, bem como dos excessos formais e anacronismos do modelo burocrático tradicional. Para isso, é fundamental ter clara a dinâmica da administração racional-legal ou burocrática. Não se trata simplesmente de descartá-la, mas sim de considerar os aspectos em que está superada e as características que ainda se mantêm válidas como formas de garantir efetividade à administração pública.

O modelo gerencial tornou-se realidade no mundo desenvolvido quando, através da definição clara de objetivos para cada unidade da administração, da descentralização, da mudança de estruturas organizacionais e da adoção de valores e de comportamentos modernos no interior do Estado, se revelou mais capaz de promover o aumento da qualidade e da eficiência dos serviços sociais oferecidos pelo setor público. A reforma do aparelho do Estado no Brasil significará, fundamentalmente, a introdução na administração pública da cultura e das técnicas gerenciais modernas.

 

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3- BREVE HISTÓRICO