Aluísio Azevedo
Seriam onze horas da manhã.
O Campos, segundo o costume, acabava
de descer do almoço e, a pena atrás da orelha, o lenço por dentro do colarinho,
dispunha-se a prosseguir no trabalho interrompido pouco antes. Entrou no seu
escritório e foi sentar-se à secretária.
Defronte dele, com uma gravidade
oficial, empilhavam-se grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma
prensa de copiar, um copo de água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante,
sobre um mocho de madeira preta, muito alto, via-se o Diário deitado de costas
e aberto de par em par.
Tratava-se de fazer a
correspondência para o Norte. Mal, porém, dava começo a uma nova carta,
lançando cuidadosamente no papel a sua bonita letra, desenhada e grande, quando
foi interrompido por um rapaz, que da porta do escritório lhe perguntou se
podia falar com o Sr. Luís Batista de Campos.
— Tenha bondade de entrar, disse
este.
O rapaz aproximou-se das grandes de
cedro polido que o separavam do comerciante.
Era de vinte anos, tipo do Norte,
franzino, amorenado, pescoço estreito, cabelos crespos e olhos vivos e
penetrantes se bem que alterados por um leve estrabismo.
Vestia casimira clara, tinha um
alfinete de esmeralda na camisa, um brilhante na mão esquerda e uma grossa
cadeia de ouro sobre o ventre. Os pés, coagidos em apertados sapatinhos de
verniz, desapareciam-lhe casquilhamente nas amplas bainhas da calça.
— Que deseja o senhor? perguntou
Campos, metendo de novo a pena atrás da orelha e pousando um pedaço de papel
mata-borrão sobre o trabalho.
O moço avançou dois passos, com ar
muito acanhado, o chapéu de pelo seguro por ambas as mãos, a bengala debaixo do
braço.
— Desejo entregar esta carta, disse,
cada vez mais atrapalhado com o seu chapéu e a sua bengala, sem conseguir tirar
da algibeira um grosso maço de papéis que levava.
Não havia onde pôr o maldito chapéu,
e a bengala tinha-lhe já caído no chão, quando Campos foi em seu socorro.
— Cheguei hoje do Maranhão,
acrescentou o provinciano, sacando as cartas finalmente.
As últimas palavras do moço pareciam
interessar deveras o negociante, porque este, logo que as ouviu, passou a
considerá-lo da cabeça aos pés, e exclamou depois:
— Ora espere... O senhor é o
Amâncio!
O outro sorriu, e, entregando-lhe a
carta, pediu-lhe com um gesto que a lesse.
Não foi preciso romper o
sobrescrito, porque vinha aberta.
— É de meu pai... disse Amâncio.
— Ah! é do velho Vasconcelos?...
Como vai ele?
— Assim, assim... O que o atrapalha
mais é o reumatismo. Agora está em uso da Salça-ecaroba, do Holanda.
— Coitado! lamentou Campos com um
suspiro — Ele sofre há tanto tempo!...
E passou a ler a carta depois de dar
uma cadeira a Amâncio, que já estava para dentro das grades.
— Pois, sim, senhor! disse ao
terminar a leitura. — Está o meu amigo na Corte, e homem! Como corre o
tempo!...
Amâncio tornou a sorrir.
— Parece que ainda foi outro dia que
o vi, deste tamanho, a brincar no armazém de seu pai.
E mostrou com a mão aberta o tamanho
de Amâncio naquela época.
— Foi há seis anos, observou o moço,
limpando o suor que lhe corria abundante pelo rosto.
Fez-se uma pequena pausa e em
seguida Campos falou do muito que devia ao falecido irmão e sócio do velho
Vasconcelos; citou os obséquios que lhe merecera; disse que encontrara nele “um
segundo pai” e terminou perguntando quais eram as intenções de Amâncio na
Corte. — Se vinha estudar ou empregar-se.
— Estudar! acudiu o provinciano.
Queria ver se era possível
matricular-se ainda esse ano na Escola de Medicina. Não negava que se havia
demorado um pouquinho nos preparatórios... mas seria dele a culpa?... Só com
umas sezões que apanhara na fazenda da avó, perdera três anos...
Campos escutava-o com atenção.
Depois perguntou-lhe se já havia almoçado.
Amâncio disse que sim, por
cerimônia.
— Venha então jantar conosco;
precisamos conversar mais à vontade. Quero apresentá-lo à minha gente.
O rapaz concordou, mas ainda tinha
que entregar várias cartas e várias encomendas que trouxera. Campos talvez
conhecesse os destinatários.
Mostrou-lhe as cartas; eram quase
todas de recomendação.
— O melhor é tomar um carro,
aconselhou o negociante. — Olhe, vou dar-lhe um moço aí de casa, para o guiar.
E, pelo acústico, que havia a um
canto do escritório, chamou um caixeiro.
Dali a pouco Amâncio saía,
acompanhado por este, prometendo voltar para o jantar.
A casa de Luís Campos era na Rua
Direita. Um desses casarões do tempo
antigo, quadrados e sem gosto, cujo o ar severo e recolhido está a dizer
no seu silêncio os rigores do velho comércio português.
Compunha-se do vasto armazém ao
rés-do-chão, e mais dois andares; no primeiro dos quais estava o escritório e à
noite aboletavam-se os caixeiros, e no segundo morava o negociante com a mulher
— D. Maria Hortênsia, e uma cunhada — D. Carlotinha.
A mesa era no andar de cima.
Faziam-se duas: uma para o dono da casa, a família, o guarda-livros e hóspedes,
se os havia, o que era freqüente; e a outra só para os caixeiros, que subiam ao
número de cinco ou seis.
Apesar de inteligente e de
brasileiro, Campos nunca logrou espantar de sua casa o ar triste que a
ensombrecia. À mesa, quando raramente se palestrava, era sempre com muita
reserva; não havia risadas expansivas, nem livres exclamações de alegria. Os
hóspedes, pobre gente de província, faziam uma cerimônia espessa; o
guarda-livros poucas vezes arriscava a sua anedota e só se determinava a isso
tendo de antemão escolhido um assunto discreto e conveniente.
Campos não apertava a bolsa em
questões de comida; queria mesa farta: quatro pratos ao almoço, café e leite à
discrição; ao jantar seis, sopa e vinho. Os caixeiros falavam com orgulho dessa
generosidade e faziam em geral boa ausência do patrão, que, entretanto, fora
sempre de uma sobriedade rara: comia pouco, bebia ainda menos e não conhecia os
vícios senão de nome.
Aos domingos, às vezes mesmo em dia
de semana, aparecia para o jantar um ou outro estudante comprovinciano dos
Campos ou algum freguês do interior, que estivesse de passagem na Corte e a
quem lhe convinha agradar.
Luís Campos era homem ativo, caprichoso
no serviço de que se encarregava e extremamente suscetível em pontos de honra;
quer se tratasse de sua individualidade privada, quer de sua responsabilidade
comercial.
Não descia nunca ao armazém, ou
simplesmente ao escritório, sem estar bem limpo e preparado. Caprichava no
asseio do corpo: as unhas, os cabelos e dentes mereciam-lhe bons desvelos e
atenções.
Entre os companheiros, passava por
homem de vistas largas e espírito adiantado; nos dias de descanso dava-se todo
ao Figuier, ao Flammarion e ao Júlio Verne; outras vezes, poucas, atirava-se à
literatura; mas os verdadeiros mestres aborreciam-no e entreturbavam-no com os
rigorismos da forma.
— É um bom tipo! diziam os
estudantes à volta do jantar, e no seguinte domingo lá estavam de novo. O “bom
tipo” tratava-o muito bem, levava-os com a família para a sala, oferecia-lhes
charutos, cerveja, e nunca exigia que lhe restituíssem os livros que lhes
emprestava.
Quanto à sua vida comercial, pouco
se tem a dizer. Até aos dezoito anos, Campos estivera no Maranhão, para onde
fora em pequeno de sua província natal, o Ceará. No Maranhão fez os primeiros
estudos e deu os primeiros passos no comércio, pela mão de um velho negociante,
amigo de seu pai.
Esse velho foi o seu protetor e seu
guia; só com a morte dele se passou Campos para o Rio de Janeiro, onde, graças
ainda a certas relações da família de seu benfeitor, conseguiu arranjar-se logo
como ajudante de guarda-livros, em uma casa de comissões. Desta saiu para
outra, melhorando sempre de fortuna, até que afinal o admitiram, como gerente,
no armazém de uns tais Garcia, Costa & Cia.
O tal Garcia morreu, Campos passou a
ser interessado na casa; morreu depois o Costa, e Campos chamou um sócio de
fora, um capitalista, e ficou sendo a principal figura da firma.
Por esse tempo encontrou D. Maria
Hortênsia, menina de boa família, sofrivelmente ajuizada e com dote. Pouco
levou a pedi-la e a casar-se.
Nunca se arrependera de semelhante
passo. Hortênsia saíra uma excelente dona de casa, muito arranjadinha, muito
amiga de poupar, muito presa aos interesses de seu marido, e limpa, “limpa, que
fazia gosto”!
O segundo andar vivia, pois, num
brinco; nem um escarro seco no chão. Os móveis luziam, como se tivessem chegado
na véspera da casa do marceneiro; as roupas da cama eram de uma brancura fresca
e cheirosa; não havia teias de aranha nos tetos ou nos candeeiros e os globos
de vidro não apresentavam sequer a nódoa de uma mosca.
E Campos sentiu-se bem no meio dessa
ordem, desse método. Procurava todos os dias enriquecer os trens de sua casa,
já comprando umas jardineiras, que lhe chamaram a atenção em tal rua; já
trazendo uma estatueta, um quadro, uma nova máquina de fazer sorvetes, ou um
sistema aperfeiçoado para esta ou aquela utilidade doméstica.
Gostava que em sua casa houvesse um
pouco de tudo. Não aparecia por aí qualquer novidade, qualquer novo aparelho de
bater ovos, gelar vinhos, regar plantas, que Campos não fosse um dos primeiros
a experimentar.
A mulher, às vezes, já se ria quando
ele entrava da rua abraçado a um embrulho.
— Que foi que se inventou?...
perguntava com uma pontinha de mofa.
O marido não fazia esperar a
justificação do seu novo aparelho, e, tal interesse punha em jogo, que parecia
tratar de uma obra própria, de cujo sucesso dependesse a sua felicidade. E,
logo que encontrasse algum amigo, não deixava de falar nisso; gabava-se da
compra que fizera, encarecia a utilidade do objeto e aconselhava a todos que
comprassem um igual.
Campos, depois do casamento,
principiou a prosperar de um modo assombroso; dentro de três anos era o que
vimos: — rico, muito acreditado e seguro na praça.
E, contudo, não tinha mais do que
trinta e seis anos de idade.
— É um felizardo! resmungavam os
colegas com o olhar fito. — É um felizardo! Quem o viu, como eu, há tão pouco
tempo!...
— Mas sempre teve boa cabeça!...
— São fortunas, homem! Outros há por
aí que fazem o dobro e não conseguem a metade!
— Não! ele merece, coitado! É muito
bom moço, muito expedito e trabalhador!
— Homem! todos nós somos bons!... O
que lhe afianço é que nunca em minha vida consegui pôr de parte um bocado de
dinheiro!
E o caso era que Campos, ou devido à
fortuna ou ao bom tino para os negócios, prosperava sempre.
*
* *
Às quatro horas da tarde apareceu de novo Amâncio.
Vinha esbaforido. O dia estava
horrível de calor. Campos foi recebê-lo com muito agrado.
— Então? disse-lhe. Está livre das
cartas?
— Qual! respondeu o moço — tenho
ainda cinco para entregar. Uma estafa! No Maranhão nunca senti tanto calor!...
— Falta de hábito! observou o outro.
Daqui a dias verá que isto é muito mais fresco!
— Estou desta forma!... queixava-se
Amâncio, quase sem fôlego, a mostrar o colarinho desfeito e os punhos
encardidos.
— Suba, volveu Campos, empurrando-o
brandamente. — Tome qualquer coisa. Vá entrando sem-cerimônia.
E, já na escada do segundo andar,
perguntou de súbito:
— É verdade! e a sua bagagem?...
— Está tudo no Coroa de Ouro.
Hospedei-me lá.
— Bem.
E subiram.
Amâncio deixou-se ficar na sala de
visitas; o outro correu a prevenir a mulher.
— Neném! disse ele. Sabes? hoje
temos ao jantar um moço que chegou do Norte, um estudante. É preciso
oferecer-lhe a casa.
Hortênsia respondeu com um gesto de
má vontade.
— Não! replicou o negociante. É uma
questão de gratidão!... Devo muitos obséquios à família deste rapaz! Lembras-te
daquele velho, de que te falei, aquele que foi quem me deu a mão lá no
Norte?... Pois este é o sobrinho, é filho do Vasconcelos. Não nos ficaria bem
recebê-lo assim, sem mais nem menos!...
— Mas, Lulu, isto de meter
estudantes em casa é o diabo! Dizem que é uma gente tão esbodegada!
— Ora, coitado! ele até me parece
meio tolo! Além disso, não seria o primeiro hóspede!...
— Queres agora comparar um estudante
com aqueles tipos de Minas que se hospedam aqui!...
— Mas se estou dizendo que o rapaz
até parece tolo...
— Manhas, homem! Todos eles parecem
muito inocentes, e depois... Enfim, tu farás o que entenderes!... Só te previno
de que esta gente é muito reparadeira!
— Não há de ser tanto assim!...
E Campos voltou à sala.
Amâncio soprava, estendido em uma
cadeira de balanço a abanar-se com o lenço.
— Muito calor, hein? perguntou
Campos, entrando.
— Está horroroso, disse aquele.
E resfolegou-se com mais força.
— Venha antes para este lado. Aqui
para a sala de jantar é mais fresco. Venha! Eu vou dar-lhe um paletó de brim.
Amâncio esquivava-se, fazendo
cerimônia; mas o outro, com o segredo da hospitalidade que em geral possui o
cearense, obrigou-o a entrar para um quarto e mudar de roupa.
O jantar, como sempre, correu frio e contrafeito. Amâncio não
tinha apetite, porque pouco antes comera mães-bentas em um café; Campos, porém,
desfazia-se em obséquios e empregava todos os meios de lhe ser agradável.
— Vá, mais uma fatia de pudim,
insistia ele a tentá-lo.
— Não, não é possível, respondia o
hóspede, limpando sempre o rosto com o lenço.
À sobremesa falou-se no velho
Vasconcelos e mais no irmão. O negociante lembrou ainda as obrigações que devia
à família de Amâncio, citou pormenores de sua vida no Maranhão; elogiou muito a
província; disse que havia lá mais sociabilidade que no Rio de Janeiro, e
acabou brindando a memória de seu benfeitor, de seu segundo pai.
Maria Hortênsia parecia tomar parte
no reconhecimento do marido e, sempre que se dirigia ao estudante, tinha nos
lábios um sorriso de amabilidade.
Carlotinha não dera uma palavra
durante o jantar. Comia vergada sobre o seu prato e só ergueu a cabeça na
ocasião de deixar a mesa.
Amâncio, todavia, não a perdera de
vista.
Às sete horas da tarde, quando se
despediu, estava já combinado que no dia seguinte ele voltaria com as malas,
para hospedar-se em casa do Campos.
— É melhor... disse este — é muito
melhor! Ali o senhor não pode estar bem; sempre é vida de hotel! venha para cá;
faça de conta que minha família é a sua!
Amâncio prometeu, e saiu,
reconsiderando pelo caminho todas as impressões desse dia.
Mais tarde, deitado na cama do Coroa
de Ouro, com o corpo moído, o espírito saturado de sensações, procurava
recapitular o que tinha a fazer no dia seguinte; e, bocejando, via, de olhos
fechados, o vulto amoroso de Hortênsia a sorrir para ele, estendendo-lhe no ar
os belos braços, palpitantes e carnudos.
II
No dia seguinte mudava-se Amâncio
para a casa do Campos. Seria por pouco tempo —
até que descobrisse um “cômodo definitivo”.
Deixou com algum pesar o hotel.
Aquela vida boêmia, com os seus almoços em mesa-redonda, o seu quartinho, uma
janela sobre os telhados, e a plena liberdade de estar como bem entendesse,
tinha para ele um sedutor encanto de novidade.
Nunca saíra do Maranhão; vira de
longe a Corte através do prisma fantasmagórico de seus sonhos. O Rio de
Janeiro, afigurava-se-lhe um Paris de Alexandre Dumas ou de Paulo de Kock, um
Paris cheio de canções de amor, um Paris de estudantes e costureiras, no qual
podia ele à vontade correr as suas aventuras, sem fazer escândalo como no diabo
da província.
Há muito tempo ardia de impaciência
por tal viagem: pensara nisso todos os dias; fizera cálculos, imaginara futuras
felicidades. Queria teatros bufos, ceias ruidosas ao lado de francesas,
passeios fora de horas, a carro, pelos arrabaldes. Seu espírito, excessivamente
romântico, como o de todo maranhense nessas condições, pedia uma grande cidade,
velha, cheia de ruas tenebrosas, cheias de mistérios, de hotéis, de casas de
jogo, de lugares suspeitos e de mulheres caprichosas; fidalgas encantadoras e
libertinas, capazes de tudo, por um momento de gozo. E Amâncio sentia
necessidade de dar começo àquela existência que encontrara nas páginas de mil
romances. Todo ele reclamava amores perigosos, segredos de alcova e loucuras de
paixão.
Entretanto, o seu tipo franzino,
meio imberbe, meio ingênuo, dizia justamente o contrário. Ninguém, contemplando
aquele insignificante rosto moreno, um tanto chupado, aqueles pômulos
salientes, aqueles olhos negros, de uma vivacidade quase infantil, aquela boca
estreita, guarnecida de bons dentes, claros e alinhados, ninguém acreditaria
que ali estivesse um sonhador, um sensual, um louco.
Sua pequena testa, curta e sem espinhas,
margeada de cabelos crespos, não denunciava o que naquela cabeça havia de
voluptuoso e ruim. Seu todo acanhado, fraco e modesto, não deixava transparecer
a brutalidade daquele temperamento cálido e desensofrido.
Amâncio fora muito mal-educado pelo
pai, português antigo e austero, desses que confundem o respeito com o terror.
Em pequeno levou muita bordoada; tinha um medo horroroso de Vasconcelos; fugia
dele como de um inimigo, e ficava todo frio e a tremer quando lhe ouvia a voz
ou lhe sentia os passos. Se acaso algumas vezes se mostrava dócil e amoroso,
era sempre por conveniência: habituou-se a fingir desde esse tempo.
Sua mãe, D. Ângela, uma santa de
cabelos brancos e rosto de moço, não raro se voltava contra o marido e
apadrinhava o filho. Amâncio agarrava-se-lhe às saias fora de si, sufocado de
soluços.
Aos sete anos entrou para a escola.
Que horror!
O mestre, um tal de Antônio Pires,
homem grosseiro, bruto, de cabelo duro e olhos de touro, batia nas crianças por
gosto, por um hábito de ofício. Na aula só falava a berrar, como se dirigisse
uma boiada. Tinha as mãos grossas, a voz áspera, a catadura selvagem; e quando
metia para dentro um pouco mais de vinho, ficava pior.
Amâncio, já na Corte, só de pensar
no bruto, ainda sentia os calafrios dos outros tempos, e com eles vagos desejos
de vingança. Um malquerer doentio invadia-lhe o coração, sempre que se lembrava
do mestre e do pai. Envolvia-os no mesmo ressentimento, no mesmo ódio surdo e
inconfessável.
Todos os pequenos da aula tinham
birra ao Pires. Nele enxergavam o carrasco, o tirano, o inimigo e não o mestre;
mas, visto que qualquer manifestação de antipatia redundava fatalmente em
castigo, as pobres crianças fingiam-se satisfeitas; riam muito quando o
beberrão dizia alguma chalaça, e afinal, coitadas! iam-se habituando ao
servilismo e à mentira.
Os pais ignorantes, viciados pelos
costumes bárbaros do Brasil, atrofiados pelo hábito de lidar com escravos,
entendiam que aquele animal era o único professor capaz de “endireitar os
filhos”.
Elogiavam-lhe a rispidez,
recomendavam-lhe sempre que “não passasse a mão pela cabeça dos rapazes” e que,
quando fosse preciso, “dobrasse por conta deles a dose de bolos”.
Ângela, porém, não era dessa
opinião: não podia admitir que seu querido filho, aquela criaturinha fraca,
delicada, um mimo de inocência e de graça, um anjinho, que ela afagava com
tanta ternura e com tanto amor, que ela podia dizer criada com os seus beijos —
fosse lá apanhar palmatoadas de um brutalhão daquela ordem! “Ora! isso não tinha
jeito!”
Mas o Vasconcelos saltava-lhe logo
em cima: Que deixasse lá o pequeno com o mestre!... Mais tarde ele havia de
agradecer aquelas palmatoadas!
Assim não sucedeu. Amâncio alimentou
sempre contra o Pires o mesmo ódio e a mesma repugnância. Verdade é que também
fora sempre tido e havido pelo pior dos meninos da aula, pelo mais atrevido e
insubordinado. Adquiriu tal fama com o seguinte fato:
Havia na escola um rapazito,
implicante e levado dos diabos, que se assentava ao lado dele e com quem vivia sempre
de turra.
Um dia pegaram-se mais seriamente.
Amâncio teria então oito anos. Estava a coisa ainda em palavras, quando entrou
o professor, e os dois contendores tomaram à pressa os seus competentes
lugares.
Fez-se respeito. Todos os meninos
começaram a estudar em voz alta, com afetação. Mas, de repente, ouviu-se o
estalo de uma bofetada.
Houve rumor. Pires levantou-se,
tocou uma campainha, que usava para esses casos, e sindicou do fato.
Amâncio foi único acusado.
— Sr. Vasconcelos! — gritou o mestre
— por que espancou aquele menino?
Amâncio respondera humildemente que
o menino insultara sua mãe.
— É mentira! protestou o novo
acusado.
— Que disse ele?! perguntou Pires.
Amâncio repetiu o insulto que
recebera. Toda a escola rebentou em gargalhadas.
— Cale-se atrevido! berrou o
professor encolerizado a tocar a campainha. — Mariola! Dizer tal coisa em pleno
recinto de aula!
E, puxando a pura força o
delinqüente para junto de si, ferrou-lhe meia dúzia de palmatoadas.
Amâncio, logo que se viu livre, fez
um gesto de raiva.
— Ah! ele é isso? exclamou o
professor. — Tens gênio, tratante?! Ora espera! isso tira-se.
E voltando-se para o rapazito que
levou a bofetada, entregou-lhe a férula e disse-lhe que aplicasse outras tantas
palmatoadas em Amâncio.
Este declarou formalmente que não se
submetia ao castigo. O professor quis submetê-lo à força; Amâncio não abriu as
mãos. Os dedos pareciam colados contra a palma.
O professor, então, desesperado com
semelhante contrariedade, muito nervoso, deixou escapar a mesma frase que pouco
antes provocara tudo aquilo.
Amâncio recuou dois passos e soltou
uma nova bofetada, mas agora na cara do próprio mestre. Em seguida deitou a
fugir, correndo.
Um “Oh!” formidável encheu a sala.
Pires, rubro de cólera, ordenou que prendessem o atrevido. A aula ergueu-se em
peso, com grande desordem. Caíram bancos e derramaram-se tinteiros. Todos os
meninos abraçaram sem hesitar a causa do mestre, e Amâncio foi agarrado no
corredor quando ia alcançar a rua.
Mas quatro pontapés puseram em
fugida os dois primeiros rapazes que lhe lançaram os dedos. Dois outros
acudiram logo e o seguraram de novo, depois vieram mais três, mais oito, vinte,
até que todos os quarenta ou cinqüenta estudantes o levaram à presença do
Pires, alegres, vitoriosos, risonhos, como se houvessem alcançado uma glória.
Amâncio sofreu novo castigo; serviu
de escárnio aos seus condiscípulos e, quando chegou a casa, o pai, informado do
que sucedera na escola, deu-lhe ainda uma boa sova e obrigou-o a pedir perdão,
de joelhos, ao professor e ao menino da bofetada.
Desde esse instante, todo o
sentimento de justiça e de honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio
sistemático pelos seus semelhantes. Ficou fazendo um triste juízo dos homens:
— Pois se até seu próprio pai,
diretamente ofendido na questão, abraçara a causa mais forte!...
Só Ângela, sua adorada, sua santa
mãe, à noite, ao beijá-lo antes de dormir, depois de lhe perguntar se ficara
muito magoado com o castigo, segredara-lhe entre lágrimas que “ele fizera muito
bem...”
Como aquele, outros fatos se deram
na meninice de Amâncio. Todas às vezes que lhe aparecia um ímpeto de coragem,
sempre que lhe assistia um assomo de
dignidade, sempre que pretendia repelir uma afronta, castigar um insulto, o
pai, ou professor, caía-lhe em cima, abafando-lhe os impulsos pundonorosos.
Ficou medroso e descarado.
No fim de algum tempo já podiam na
escola insultar a mãe quantas vezes quisessem que ele não se abalaria; podiam
lançar-lhe em rosto as ofensas que entendessem porque ele se conservaria
impossível. Temia as conseqüências de qualquer desafronta. “Estava
domesticado”, segundo a frase do Pires.
Todavia, esses pequenos episódios da
infância, tão insignificantes na aparência, decretaram a direção que devia
tomar o caráter de Amâncio. Desde logo habituou-se a fazer uma falsa idéia de
seus semelhantes; julgou os homens por seu pai, seu professor e seus
condiscípulos. — E abominou-os. Principiou a aborrecê-los secretamente, por uma
fatalidade de ressentimento; principiou a desconfiar de todos, a prevenir-se
contra tudo, a disfarçar, a fingir que era o que exigiam brutalmente que ele
fosse.
Nunca lhe deram liberdade de espécie
alguma: Se lhe vinha uma idéia própria e desejava pô-la em prática,
perguntavam-lhe “a quem vira ele fazer semelhante asneira”.
Convenceram-mo de que só devemos
praticar aquilo que outros já praticaram. Opunham-lhe sempre o exemplo das
pessoas mais velhas; exigiam que ele procedesse com o mesmo discernimento de
que dispunham seus pais.
E os rebentões da individualidade, e
o que pudesse haver de original no seu caráter e na sua inteligência, tudo se
foi mirrando e falecendo, como os renovos de uma planta que regassem
diariamente com água morna.
À mesa devia ter a sisudez de um
homem. Se lhe apetecia rir, cantar, conversar, gritavam-lhe logo: “Tenha modo,
menino! Esteja quieto! comporte-se!”
E Amâncio, com medo da bordoada,
fazia-se grave, e cada vez ia-se tornando mais hipócrita e reservado. Sabia
afetar seriedade, quando tinha vontade de rir; sabia mostrar-se alegre, quando
estava triste; calar-se, tendo alguma recriminação a fazer; e, na igreja, ao
lado da família, sabia fingir que rezava e sabia agüentar por mais de uma hora
a máscara de um devoto.
Como o pai o queria inocente e
dócil, ele afetava grande toleima, fazia-se um ingênuo, muito admirado com as
coisas mais simples.
— É uma menina!... dizia a mãe,
convicta — Amâncinho tem já dez anos e conserva a candura de um anjo!
Vasconcelos nunca o puxava para
junto de si, nem conversava com ele, o interrogava; e quando a infeliz criança,
justamente na idade em que a inteligência se desabotoa, ávida de fecundação,
fazia qualquer pergunta, respondiam-lhe com um berro: “Não seja bisbilhoteiro,
menino!”
Amâncio emudecia e abaixava os
olhos, mas logo que o perdiam de vista, ia escutar e espreitar pelas portas.
Com semelhante esterco não podia
desabrochar melhor no seu temperamento o leite, que lhe deu a mamar uma preta
da casa.
Diziam que era uma excelente
escrava: tinha muito boas maneiras; não respingava aos brancos, não era
respondona: aturava o maior castigo sem dizer uma palavra mais áspera, sem
fazer um gesto mais desabrido. Enquanto o chicote lhe cantava nas costas, ela
gemia apenas e deixava que as lágrimas lhe corressem silenciosamente pelas faces.
Além disso — forte, rija para o
trabalho. Poderia nesse tempo valer bem um conto de réis.
Vasconcelos a compara, todavia,
muito em conta, “uma verdadeira pechincha!”, porque o demônio da negra estava
então que valia duas patacas; mas o senhor a metera em casa, dera-lhe algumas
garrafadas de laranja-da-terra, e a preta em breve começou a deitar corpo e a
endireitar, que era aquilo que se podia ver!
O médico, porém, não ia muito em que
a deixassem amamentar o pequeno.
— Esta mulher tem reuma no sangue,
dizia ele — e o menino pode vir a sofrer para o futuro.
Vasconcelos sacudiu os ombros e não
quis outra ama.
— O doutor que se deixasse de
partes!
A negra tomou muita afeição à cria.
Desvelava por ela noites consecutivas e, tão carinhosa, tão solícita se
mostrou, que o senhor, quando o filho deixou a mama, consentiu em passar-lhe a
carta de alforria por seiscentos mil-réis, que ela ajuntara durante quinze
anos. Mas a preta não abandonou a casa de seus brancos e continuou a servir,
como dantes; menos, está claro, no que dizia respeito aos castigos, porque a
desgraçada, além de forra, ia já caindo na idade.
Amâncio dera-lhe bastante que fazer.
Fora um menino levado da breca; só não chorava enquanto dormia e quando se
punha a espernear, não havia meio de contê-lo.
Era muito feio em pequeno. Um nariz
disforme, uma boca sem lábios e dois rasgões no lugar dos olhos. Não tinha um
fio de cabelo e estava sempre a fazer caretas.
A princípio — muito achacado de
feridas, coitadinho! Os pés frios, o ventre duro constantemente.
Levou muito para andar e custou-lhe
a balbuciar as primeiras palavras. Ângela adorava-o com entusiasmo do primeiro
parto; por duas vezes supôs vê-lo morto e deu promessas aos santos da sua
devoção.
Conseguiram faze-lo viver, mas
sempre fraquinho, anêmico, muito propenso aos ingurgitamentos escrofulosos.
Quando acabou as primeiras letras, não era, entretanto, dos
rapazes mais débeis da aula do Pires. Para isso contribuíram em grande parte
uns passeios que costumava dar, pelas férias, à fazenda de sua avó materna, em
São Bento.
Esses passeios representavam para
Amâncio a melhor época do ano. A avó, uma velha quase analfabeta, supersticiosa
e devota, permitia-lhe todas as vontades e babava-se de amores por ele. O
rapaz, escondia-lhe o cachimbo, pisava-lhe os canteiros da horta, divertia-se
em quebrar a pedradas as lamparinas dos santos suspensas na capela, e, às
vezes, quando não estava de boa maré, atirava com os pratos nos escravos que
serviam à mesa.
A avó ralhava, mas não podia conter
o riso. O netinho era o seu encanto, o fraco de sua velhice; só um pedido
daquele diabrete faria suspender o castigo dos negros e desviar do serviço da
roça algum dos moleques — para ir brincar com Nhôzinho. Estava sempre a dizer
que se queixava ao genro e que o devolvia para a cidade; mas no ano seguinte,
se Amâncio não aparecia logo no começo das férias, choviam os recados da velha
em casa de Vasconcelos, rogando que lhe mandassem o neto.
— Mande! mande o pequeno!
aconselhava o médico.
E lá ia Amâncio.
Só aos doze anos fez o seu exame de
português na aula do Pires.
Houve muita formalidade. A
congregação era presidida pelo Sotero dos Reis; havia vinte e tantos
examinandos. Amâncio tremia naqueles apuros. Não tinha em si a menor confiança.
Foi, contudo, “aprovado plenamente”.
Mas não sabia nada, quase que não sabia ler. Da gramática apenas lhe ficaram de
cor algumas regras, sem que ele compreendesse patavina do que elas definiam.
Pires nunca explicava: — se o pequeno tinha a lição de memória, passava outra,
e, se não tinha, dava-lhe algumas palmatoadas e dizia-lhe que trouxesse a mesma
para o dia seguinte.
Mas, enfim, estava habilitado a
entrar para o Liceu onde iria cursar as aulas de francês e geografia.
O Liceu, que bom! — oh! Aí não havia
castigos, não havia as pequenas misérias aterradoras da escola! Não poderia
faltar às aulas, é certo; mas, em todo o caso, estudaria quando bem entendesse
e, lá uma vez por outra, havia de “fazer a sua parede”!
E, só com pensar nisso, só com se
lembrar de que já não estava ao alcance das garras do maldito Pires, o coração
lhe saltava por dentro, tomado de uma alegria nervosa.
*
* *
O Vasconcelos quis festejar o exame do filho, com um jantar
oferecido aos senhores examinadores e aos velhos amigos da família.
À noite houve dança. Amâncio
convidou os companheiros do ano; compareceram somente os pobres — os que não
tinham em casa também a sua festa.
O pai, por instâncias de Ângela,
fizera-lhe presente de um relógio com a competente cadeia, tudo de ouro. A avó,
que se abalara da fazenda para assistir ao regozijo do seu querido mimalho,
trouxera-lhe de presente um moleque o Sabino.
Amâncio, todo cheio de si, a
rever-se na sua corrente e a consultar as horas de vez em quando, foi nesse dia
o alvo de mil felicitações, de mil brindes e de mil abraços.
Alguns amigos do pai profetizavam
nele uma glória da pátria e diziam que o João Lisboa, o Galvão e outros, não
tinham tido melhor princípio.
Lembraram-se todas as partidas
engraçadas de Amâncio, vieram à baila os repentes felizes que o diabrete tivera
até aí. Na cozinha a mãe preta, a ama, contava às parceiras as
travessuras do menino e, com os olhos embaciados de ternura, com uma espécie de
orgulho amoroso, referia sorrindo os trabalhos que ele lhe dera, as noites que
ela desvelara.
— Já em pequeno, diziam — era muito
sabido, muito esperto! enganava os mais velhos; tinha lábias, como ninguém,
para conseguir as coisas, e sabia empregar mil artimanhas para obter o que
desejava! — Não! definitivamente não havia outro!
Ângela, a um canto da varanda,
assentada entre as suas visitas, seguia o filho com um olhar temperado de mágoa
e doçura.
— O que lhe estaria reservado?... o
que o esperaria no futuro?... cismava a boa senhora, meneando tristemente a
cabeça — oh! às vezes cria-se um filho com tanto amor, com tanto amor, com
tanta lágrima, para depois vê-lo andar por aí aos trambolhões, nesse mundo de
Cristo!... E a idéia de que, talvez, nem sempre o teria perto de si, que nem
sempre o poderia obrigar a mudar a camisa quando estivesse suado; obrigá-lo a
tomar o remédio quando estivesse doente; obrigá-lo a comer, a dormir com
regularidade; a evitar, enfim, tudo que lhe pudesse prejudicar a saúde; oh! a
idéia de tudo isso lhe entrava no coração como um sopro gelado, e fazia tremer
a pobre mãe.
— Ai! ai! disse ela.
— Que suspiros são esses, D. Ângela?
perguntou o Dr. Silveira, que estava ao seu lado. Homem íntimo da casa e figura
conhecida na política da terra.
— Malucando cá comigo... respondeu a
senhora. E como o outro estranhasse a resposta: — Quem tem filho, tem cuidados,
senhor doutor!...
— Oh! oh! exclamou este, com um
gesto autorizado, abrindo muito a boca e os olhos. — A quem o diz, Sr.ª D.
Ângela, a quem o diz... Só eu sei o que me custam esses quatro pecados que aí
tenho!...
E para provar que dizia a verdade,
teria falado nos seus cabelos brancos, se não os pintasse.
Quando Ângela se afligia daquele
modo, sendo rica; quanto mais ele — pobre jurisconsulto, com pequenos
vencimentos e uma família enorme!...
— Ah os tempos vão muito maus...
Puseram-se logo a falar na ruindade
dos tempos. “Estava tudo pela hora da morte! — Comia-se dinheiro!”
Mas Silveira voltara-se rapidamente
para dar atenção a Amâncio, que acabava de aproximar-se, em silêncio, com o ar
presumido de quem tinha consciência de que toda aquela festa lhe pertencia.
— Então, meu estudante! — disse o
jurisconsulto, empinando a cabeça. — Já escolheu a carreira que deseja seguir?
— Marinha, respondeu Amâncio
secamente.
A farda seduzia-o. Nada conhecia
“tão bonito” como um oficial de marinha.
A mãe riu-se com aquela resposta, e
olhou em torno de si, chamando a atenção dos mais para o desembaraço do filho.
À meia-noite foram todos de novo
para a mesa. Vasconcelos era muito rigoroso quando recebia gente em casa; queria
que houvesse toda a fartura de vinhos e comidas. Os brindes reapareceram.
Abriram-se garrafas de Moscato d’Asti, Chateau Yquem e Champagne.
Conversou-se a respeito dos vinhos
de Vasconcelos. “O Maranhão era incontestavelmente uma das províncias onde melhor
se bebia!”
Do meio para o fim da ceia, Amâncio
sentiu-se outro.
Em uma ocasião que o pai se afastara
da mesa, ele pediu um brinde e cumprimentou as “pessoas presentes”.
Este fato causou delírios. O próprio
pai não se pôde conter e disse entredentes, a rir:
— Ora o rapaz saiu-me vivo!
Ângela abraçou o filho, chorando de
comovida.
— Que lhe disse eu?... resmungou
delicadamente Silveira ao ouvido dela. — Este menino promete! Dêem-lhe asas e
hão de ver... dêem-lhe asas!...
Amâncio foi coberto de ovações.
Batiam-se no copo, faziam-lhe saúdes. Ele a todos respondia, rindo e bebendo.
Daí a uma hora recolheram-no à cama
da mãe, porque lhe aparecera uma aflição na boca do estômago; mas vomitou logo
e adormeceu depois, completamente aliviado.
Foi a sua primeira bebedeira.
*
* *
Aos quatorze anos prestou exame de
francês e geografia e matriculou-se na aulas de gramática geral e inglês.
Já eram válidos felizmente, os
exames do Liceu do Maranhão, e com as cartas que daí houvesse, podia entrar nas
academias da Corte.
Amâncio, depois da escola do Pires,
nunca mais voltou a passar férias na fazenda da avó. Preferia ficar na cidade:
tinha namoros, gostava loucamente de dançar, já fumava e já fazia pândegas
grossas com os colegas do Liceu.
Como o pai não lhe dava liberdade,
nem dinheiro, e como exigia que ele às nove horas da noite se recolhesse à
casa, Amâncio arranjava com a mãe os cobres que podia e, quando a família já
estava dormindo, evadia-se pelos fundos do quintal. Era Sabino quem lhe abria e
fechava o portão.
O moleque gostava muito dessas
patuscadas. O senhor-moço levava-o às vezes em sua companhia. Amigos esperavam
por eles lá fora, reuniam-se; tinham um farnel de sardinhas, pão, queijo,
charutos e vinhos. Era pagodear até pela madrugada!
Se havia chinfrim — entravam,
ou então iam tomar banho no Apicum ou cear ao Caminho Grande. Em
noites de luar faziam serenatas; aparecia sempre alguém que tocasse violão ou
flauta ou soubesse cantar chulas e modinhas. Aos sábados o passeio era maior;
no dia seguinte Amâncio estava a cair de cansaço, aborrecido, necessitando de
repouso.
Mas não deixava de ir — Era tão bom
passear pela rua, quando toda a população dormia, fumar, quando tinha certeza
de que nenhum dos amigos de seu pai o pilharia com o charuto no queixo; era tão
bom beber pela garrafa, comer ao relento e perseguir uma ou outra mulher que
encontrassem desgarrada, a vagar pelos becos mal iluminados da cidade!
Tudo isso lhe sorria por prisma
voluptuoso e romanesco.
Às vezes entrava em casa ao amanhecer.
Não podia dormir logo; vinha excitado, sacudido pelas impressões e pela
bebedeira da noite. Atirava-se à rede, com uma vertigem impotente de conceber
poesias byronianas, escrever coisas no gênero de Álvares de Azevedo, cantar
orgias, extravagâncias, delírios.
E afinal adormecia, lendo Mademoiselle
de Maupin, Olympia de Clèves ou Confession d’un enfant du siècle.
Não penetrava bem na intenção deste
último livro, mas tinha-o em grande conta e, visto conhecer a biografia de
Musset, embriagava-se com essa leitura; ficava a sonhar fantasias estranhas,
amores céticos, viagens misteriosas e paixões indefinidas.
As criadas da casa ou as mulatinhas
da vizinhança já o enfaravam; era preciso descobrir amores mais finos, mais
dignos, que, nem só lhe contentassem a carne, como igualmente lhe socorres sem
as ânsias da imaginação.
Por esse tempo leu a Graziella
e o Raphael de Lamartine. Ficou possuído de uma grande tristeza; as
lágrimas saltaram-lhe sobre as páginas do livro. Sentiu necessidade de amar por
aquele processo, mergulhar na poesia, esquecer-se de tudo que o cercava, para
viver mentalmente nas praias de Nápoles, ou nas ilhas adoráveis da Sicília,
cujos nomes sonoros e musicais lhe chegavam ao coração como o efeito de uma
saudade, de uma nostalgia inefável, profunda, sem contornos, que o atraía para
um outro mundo desconhecido, para uma existência que lhe acenava de longe, a
puxá-lo com todos os tentáculos do seu mistério e da sua irresistível
melancolia.
Uma ocasião, deitado ao pé da janela
de seu quarto, pensava em Graziella.
À tarde precipitava-se no
crepúsculo, e enchia a natureza de tons plangentes e doloridos. A um canto da
rua um italiano tocava uma peça no seu realejo. Era a Marselhesa.
Amâncio conhecia algumas passagens
da revolução de França: lera os Girondinos, de Lamartine. E a
reminiscência do sentimentalismo enfático dessa obra, coada pela retórica
poderosa da música de Lisle, trouxe-lhe aos nervos um sobressalto muito mais
veemente que das outras vezes.
Julgou-se infeliz, sacrificado nas
suas aspirações, no seu ideal. Precisava viver, gozar, gozar sem limites!...
Não ali, perto da família, estudando miseráveis lições do Liceu, mas além,
muito além, onde não fosse conhecido, onde tudo para ele apresentasse surpresas
de uma outra vida, atrativos de um mundo vasto, enorme, que sua imaginação mal
podia delinear.
Por isto estimou deveras ter de
seguir para o Rio de Janeiro. A Corte era “um Paris”, diziam na província, e
ele, por conseguinte, havia de lá encontrar boas aventuras, cenas imprevistas,
impressões novas e amores, — oh! amores principalmente!
E, com efeito, desde que pôs o pé a
bordo, principiou a gozar a impressão de novidade, produzida no seu espírito
pela viagem.
A circunstância de achar-se em um
paquete sozinho, ouvindo o ronrom monótono da máquina e sentindo, como
nos romances, as vozes misteriosas dos elementos sussurrarem à volta de seus
ouvidos — encantava-o. Prestava muita atenção ao mais pequeninos episódios de
bordo: olhava interessado para a grossa figura dos marinheiros que baldeavam
pela manhã o tombadilho, a dançar com a vassoura aos pés; estudava o tipo dos
outros passageiros, procurando descobrir em cada qual um personagem de seus
livros favoritos; ao abrir e fechar das portas do camarotes, espiava sempre, e
às vezes lobrigava de relance, ao fundo no beliche, uma figura pálida,
ofegante, toda descomposta na imprudência do enjôo.
Ele é que nunca enjoava. À noite ia
fumar para a tolda, estendido sobre um banco, as pernas cruzadas, os olhos
perdidos pelo oceano.
Vinham-lhe então as nostalgias da
província: o coração dilatava-se por um sentimento morno de saudade. Via
defronte de si o vulto carinhoso de sua mãe, a chorar, com o rosto escondido no
lenço, o corpo sacudido pelos soluços.
Quanto não custou à pobre mulher separar-se
ao filho?... Que violência não foi preciso para lho arrancarem dos braços! foi
como se pela segunda vez lho tirassem a ferro das entranhas.
Antes mesmo da partida de Amâncio,
muito sofrera a mísera com a idéia daquela separação. Pensava nisso a todo
instante, sem se poder capacitar de que ele devia ir, atirado a bordo de um
vapor, tão sozinho, tão em risco de perigos. “Oh! era muito duro! Era muito
duro!...” Mas Vasconcelos opunha-lhe argumentos terríveis: — O rapaz precisava
fazer carreira, ter uma posição! Não seria agarrado às saias da mãe que iria
pra diante! Há muito mais tempo devia ter seguido — o filho de fulano fora aos quinze anos; o de beltrano voltara com
vinte e três, e Amâncio já tinha vinte. Ia tarde! Ângela que se deixasse de
pieguices. Justamente por estimá-lo é que devia ser a primeira a querer que ele
fosse, que se instruísse, que se fizesse homem! além disso o rapaz poderia
visitá-la pelas férias, nem sempre, mas de dois em dois anos.
Ângela parecia resignar-se com as
palavras de Vasconcelos; fazia-se forte: jurava que “não era egoísta”, que “não
seria capaz de cortar a carreira de seu filho”; mal porém, o marido lhe dava as
costas, voltava-lhe a fraqueza; vinham-lhe as lágrimas, tornavam as agonias.
Por vezes, no meio do jantar, enquanto os outros riam e conversavam, ela, que
até aí estivera a pensar, abria numa explosão de soluços e retirava-se para o
quarto, aflita, envergonhada de não poder dominar aquele desespero. Outras
vezes acordava por alta noite, a gritar, a debater-se, a reclamar o filho, a
disputá-lo contra os fantasmas do pesadelo.
No dia da viagem não se pôde
levantar da cama, tinha febre, vertigens; a cabeça andava-lhe à roda. E não
queria mais ninguém perto de si, além do filho, só ele! “Não a privassem de
Amâncio ao menos naquele dia!” E tomava-o nos braços, procurava agasalhá-lo ao
colo, com fazia dantes, quando ele era pequenino. Afagava-lhe a cabeça,
beijava-lhe os cabelos, prendia-o contra o seio. Depois, voltava a acarinhá-lo,
beijava-lhe de novo as mãos, os olhos, o pescoço, envolvia-o tudo em mimos,
como, se, na santa loucura de seu amor, imaginasse que eles lhe preservariam o
filho contra os escolhos da jornada e contra os futuros perigos que o
ameaçavam.
— Minha pobre mãe!... suspirava
Amâncio no tombadilho, derramando o olhar lacrimoso pela inconstante planície
das águas.
— Minha pobre mãe!...
E vinham-lhe então fundas saudades
de sua terra, de sua casa e de seus parentes. As palavras de Ângela
palpitavam-lhe em torno da cabeça, com uma expressão de beijos estalados.
Lembrava-se dos últimos conselhos que ela lhe dera, das suas recomendações, das
suas pequeninas providências; de tudo isso, porém, o que mais lhe ficara
grudado à memória foi o que lhe disse a boa velha, muito em particular, a
respeito de dinheiro. “Se te não chegar
a mesada, ou se te vierem a faltar os recursos, escreve-me logo duas linhas,
que eu te mandarei o que precisares. Mas não convém que teu pai saiba disto...”
Para as primeiras despesas na corte
e para os gastos nas províncias, juntem, ao que dera Vasconcelos ao filho, mais
quinhentos mil-réis; não achava bom, entretanto, que Amâncio saltasse em todos
os portos. “Era muito arriscado! Ele não se devia expor de semelhante forma!”
E a lembrança do dinheiro puxou logo
outras consigo e arremessou-o no frívolo terreno de seus devaneios voluptuosos.
Vieram as recordações; começou a desenfiar mentalmente o rosário dos amores que
acumulara dos quinze anos até ali.
Era um rosário extravagante; havia
contas de todos os matizes e de todos os feitios.
Entre elas, porém, só três se
destacavam, três belas contas de marfim: a filha mais velha do Costa Lobo, a
mulher de um comendador, amigo de seu pai, e uma viúva de um oficial do
Exército.
E só. Todas as suas outras
conquistas não valiam nada; de algumas tinha, contudo, bem boas recordações: a
Francisca de Vila do Paço, por exemplo — uma caboclinha, que se apaixonou por
ele e vinha persegui-lo até à cidade, uma espanhola, mulher de um tipo barbado
e calvo, que andava a mostrar figuras de cera pelas províncias do Norte, uma
senhora gorda, amasiada com um boticário, da qual elogiavam muito as virtudes,
mas que um dia atirou-se brutalmente sobre Amâncio, dizendo que o amava e
trincando-lhe os beiços.
E como estas, outras e outras
recordações foram-se enfiando e desenfiando pelo espírito sensual e mesquinho
do vaidoso, até deixá-lo mergulhado na apatia dos entes sem ideais e sem
aspirações.
Mas, já não queria pensar nesses
amores da província; tudo isso agora se lhe afigurava ridículo e acanhado. A
Corte, sim! é que lhe havia de proporcionar boas conquistas. “Ia principiar a
vida!!”
E, nessa disposição, chegou ao Rio
de Janeiro.
III
Estava hospedado havia dois dias em
Casa do Campos; esse tempo levara ele a entregar cartas e encomendas. À noite,
fatigado e entorpecido pelo calor, mal tinha ânimo para dar uma vista de olhos
pelas ruas da cidade.
Entretanto, a vida externa o atraía de um modo desabrido;
estalava por cair no meio desse formigueiro, desse bulício vertiginoso, cuja
vibração lhe chegava aos ouvidos como os ecos longínquos de uma saturnal.
Queria ver de perto o que vinha a ser essa grande Corte, de que tanto lhe
falavam; ouvira contar maravilhas a respeito das cortesãs cínicas e formosas,
ceias pela madrugada, passeios pelo Jardim Botânico, em carros descobertos, o
champanha ao lado, o cocheiro bêbado; — e tudo isso o atraía em silêncio, e
tudo isso o fascinava, o visgava com o domínio secreto de um vício antigo.
Mas por onde havia de principiar?...
Não tinha relações, não tinha amigos que o encaminhassem!... Além disso, Campos
estava sempre a lhe moer o juízo com as matrículas, com a entrada na academia,
com um inferno de obrigações a cumprir, cada qual mais pesada, mais antipática,
mais insuportável!
— Olhe, seu Amâncio, que o tempo não
espicha — encolhe!... É bom ir cuidando disso!... repetia-lhe o negociante,
fazendo ar sério e compenetrado. Veja agora se vai perder o ano! Veja se quer
arranjar por aí um par de botas!...
Amâncio fingia-se logo muito
preocupado com os estudos e falava calorosamente na matrícula.
— Mexa-se então, homem de Deus!
bradava o outro. Os dias estão correndo!...
Afinal, graças aos esforços do
Campos, conseguiu matricular-se na academia, duas semanas depois, de ter
chegado ao Rio de Janeiro.
O medo às matemáticas levara-o a
desistir da Marinha e agarrar-se à Medicina, como quem se agarra a uma tábua de
salvação: pois o Direito, se bem que, para ele, fosse de todas as formaturas as
mais risonha, não lhe servia igualmente, visto que Amâncio não estava disposto
a deixar a Corte e ir ser estudante na província.
A Medicina, contudo, longe de
seduzi-lo, causava-lhe um tédio atroz. Seu temperamento aventuroso e frívolo
não se conciliava com as frias verdades da cirurgia e com as pacientes
investigações da terapêutica. Pressentia claramente que nunca daria um bom
médico, que jamais teria amor à sua profissão.
Esteve a desistir logo nos primeiros
dias de aula: o cheiro nauseabundo do anfiteatro da escola, o aspecto nojento
dos cadáveres, as maçantes lições de Química, Física e Botânica, as troças dos
veteranos, a descrição minuciosa e fatigante da Osteologia, a cara insociável
dos explicadores; tudo isso, o fazia vacilar; tudo isso lhe punha no coração um
duro sentimento de má vontade, uma antipatia angustiosa, um não querer doloroso
e taciturno.
Às vezes, no entanto, pretendia
reagir: atirava-se ao Baunis Bouchard e ao Vale, disposto a ler durante horas
consecutivas, disposto a prestar atenção, a compreender; mal, porém, ele se
entregava aos compêndios, o pensamento, pé ante pé, ia-se escapando da leitura,
fugia sorrateiramente pela janela, ganhava a rua, e prendia-se ao primeiro
frufru de saia que encontrasse.
E Amâncio continuava a ler a
estranha tecnologia da ciência, a repetir maquinalmente, de cor, os caracteres
distintivos das vértebras, ou a cismar abstrato nas propriedades do cloro e do
bromo, sem todavia conseguir que patavina daquilo lhe ficasse na cabeça.
— Não haver uma academia de Direito
no Rio de Janeiro! lamentava ele, bocejando, a olhar vagamente a sua enfiada de
vértebras, que havia comprado no dia anterior.
Porque, no fim de contas, tudo que
cheirasse a ciência de observação o enfastiava: “Deixassem lá, que a tal
Osteologia e a tal Química nada ficavam a dever às Matemáticas!...”
Ah! o Direito, o Direito é que,
incontestavelmente, devia ser a sua carreira. Preferia-o por achá-lo menos
áspero, mais tangível, mais dócil, que outra qualquer matéria. E esse
mesmo...Valha-me Deus! tinha ainda contra si o diabo do latim, que era bastante
para o tornar difícil.
E lembrar-se Amâncio de que havia
por aí criaturas tão dotadas de paciência, tão resignadas, tão perseverantes,
que se votavam de corpo e alma ao cultivo das artes... das artes, que, segundo
várias opiniões, exigiam ainda mais constância e mais firmeza do que as
ciências!... Com efeito! Era preciso ter muita coragem, muito heroísmo, porque
as tais belas-artes, no Brasil, nem sequer ofereciam posição social, nem davam
sequer um titulozinho de doutor!
— Qual! Não seria com ele!... Fosse
gastando quem melhor quisesse a existência na concepção de um bom quadro, de
uma boa estátua, de uma ópera genial ou de um bom livro de literatura, que ele
ficava cá de fora — para apreciar. O mais que podia fazer, era — aplaudir;
aplaudir e pagar! — E já não fazia pouco!...
Isso justamente ouviu, por mais de
uma vez, da boca de seu pai. O velho Vasconcelos nunca tomou a sério os
artistas “Uns pedaço-d’asnos!” qualificava ele, e, de uma feita em que o Franco
de Sá lhe comunicou os seus projetos de estudar pintura na Europa, o negociante
fez uma careta e exclamou, batendo-lhe no ombro: “Homem, seu Sazinho! não seria
eu que lhe aconselhasse semelhante cabeçada... porque, meu amigo, isto de artes
é uma cadelagem! Procures meios de obter cobres, e o senhor terá à sua disposição
os artistas que quiser!”
— E nisto tinha o velho toda a
razão, pensava Amâncio. Acho apenas que devia estender a sua teoria até o
estudo de certas ciências... como a Medicina... Sim! porque, afinal, com
dinheiro também obtemos os médicos de que precisamos, e não vale a pena, por
conseguinte, gramar seis anos de academia e curtir as maçadas que estou aqui
suportando, sabe Deus como!
— Mas, neste caso, a questão muda
muito de figura!... dizia-lhe em resposta uma voz que vinha de dentro do seu
próprio raciocínio. Não se trata aqui de fazer um “médico”, trata-se de fazer
um “doutor”, seja ele do que bem quiser! Não se trata de ganhar uma
“profissão”, trata-se de obter um “título”. Tu não precisas de meios de vida,
precisas é de uma posição na sociedade.
— Visto isso, porém, objetava
Amâncio, quero crer que o mais acertado seria comprar uma carta na Bélgica ou
na Alemanha, e mandar ao diabo, uma vez por todas, aquela peste de Medicina!
Ora, Medicina! Medicina servia para
algum moço pobre que precisasse viver da clínica; ele não estava nessas
circunstâncias. Era rico! só com o que lhe tocava por parte materna, podia
passar o resto da vida sem se fatigar!... Por que, pois, sofrer aquelas
apoquentações do estudo? Por que razão havia de ficar preso aos livros, entre
quatro paredes, quando dispunha de todos os elementos para estar lá fora, em
liberdade, a divertir-se e a gozar?!...
Mas uma idéia sustinha-lhe o vôo do
pensamento; o vulto angélico de sua mãe vinha colocar-se defronte dele, abrindo
os braços, como se o quisesse proteger de um abismo.
Ah! quanto empenho não fazia a pobre
velha em vê-lo formado às direitas, numa faculdade do Brasil... Vê-lo
doutor!...
— Doutor, hein?! repetia Amâncio,
meio animado com o prestígio que ao nome lhe daria o título.
E ligava-os mentalmente, para ver o
efeito que juntos produziam:
— Doutor Amâncio! Doutor Amâncio de
Vasconcelos! Não fica mal! não fica! A mãe tinha razão. Era preciso ser doutor!
E quanto gosto, que prazer, não
sentiria nisso a querida velha!... Oh! ele agora pensava em Ângela com muito
mais ternura; nela resumia toda a família e tudo que houvesse de bom no seu
passado. Só com a ausência pôde avaliar o muito que a respeitava e o muito que a estremecia. Ele, que não chorara
ao despedir-se da mãe; ele, que algumas vezes chegou até a aborrecer-se de seus
desvelos e da insistência de seus carinhos — agora não a podia ter na memória,
sem ficar com o coração opresso e os olhos relentados de pranto. Pungia-lhe a
consciência uma espécie de remorso por não se ter mostrado mais afetuoso e mais
amigo, enquanto a possuiu perto de si, por não ter melhor aproveitado essa
ocasião para deixar bem patente que sabia ser “bom filho”.
E punha-se então a mentalizar planos
de melhor conduta para quando voltasse ao lado de Ângela; considerava os mimos
que teria com ela, os afagos que lhe havia de dispensar, os beijos que lhe
havia de pedir.
— Ah! Se naquele momento ele a
tivesse ali, o que não lhe diria!
E, por uma necessidade urgente de
expansão, levantou-se da cadeira em que estava e correu à secretária, disposto
a escrever uma carta, longa, à sua mãe. Precisava queixar-se do isolamento em
que vivia, contar-lhe as suas tristezas, as suas contrariedades, justamente
como fazia dantes, em pequeno, ao voltar da aula de Pires. Sua alma tornava
atrás, fazia-se muito infantil, muito criança, muito ingênua e carecida de
amparo.
A mãe, enquanto esteve ao lado dele,
foi sempre um coração aberto para lhe receber as lágrimas e os queixumes.
Também, só elas, só as mães, podem
servir a tão delicado mister. O que se lança ao peito da amante desde logo arde
e se evapora, porque aí o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um
estranho gela-se de pronto na indiferença e na aridez; mas, tudo aquilo que um
filho semeia no coração materno — brota, floreja e produz consolações. Neste
não há chama que devore, nem frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e
fecundo, como a palidez de um seio intumescido e ressumbrante de leite.
E escreveu: “Mamãe.”
Hesitou logo. Aquele modo de tratar
não lhe pareceu conveniente; queria uma carta de efeito, com estilo, uma carta
a primor, que desse idéia de seu talento e ao mesmo tempo de sua afeição:
... “Minha querida mãe.
Eis-me na grande Corte, que aliás me parece estúpida e
acanhada por achar-me longe de
vosse-mecê...”
Vinham, em seguida, muitos protestos
de amor filial e depois uma extensa descrição da cidade, a qual ocupava duas
laudas da carta. Na terceira escreveu o seguinte:
“Desde que vim daí, o Sabino só me
tem dado maçadas; a bordo vivia a brigar com os outros criados; aqui nunca me
aparece; sai pela manhã e já faz muito quando volta à noite. Pilhou-se sem
castigo e abusa desse modo. Ainda não lhe consegui arranjar a matrícula no
Tesouro e nem sei como isso se obtém: o Campos é que há de ver.
“Como sabe, há mês e meio que me
acho hospedado em casa deste. Aqui nada me falta, é certo, mas igualmente nada
me satisfaz, porque estou muito isolado e aborrecido. A família é atenciosa o
quanto pode ser comigo; eu, porém, apesar disso, não deixo de ser para eles um
estranho, como tal, apenas recebo cortesias e hospitalidade. D. Maria Hortênsia
é amável, mas por uma simples questão de delicadeza; da irmã, D. Carlotinha,
nem é bom falar! Esta, se já me dispensou duas palavras, foi o máximo, parece
até que tem medo de olhar para mim; talvez com receio de desagradar ao
guarda-livros, que, pelos modos, é lá o seu namorado. O que não resta dúvida é
que o tal guarda-livros é de todos o mais antipático e difícil de suportar. Um
hipócrita! Está sempre com a carinha na água e já, por várias vezes, se tem
querido meter a espirituoso cá para o meu lado. — São ditinhos, indiretas de
instantes a instante. Eu, qualquer dia destes, o chamo à ordem! Ainda não há
uma semana, veja isto! fui a um espetáculo dramático no São Pedro de Alcântara
e à volta, quando cheguei a casa, quis acender a vela para estudar. Quem
disse?... o fogo não se comunicava ao pavio. Verifico: no lugar da torcida
haviam posto um prego; fiquei com os dedos queimados. E esta graça não foi de outro
senão do tal cara de mono!
“Já me lembrou mudar-me; o Campos,
porém, acha que o não devo fazer enquanto não descobrir por aí um bom cômodo,
em alguma casa de pensão.”
E no mesmo teor ia por diante, até
encher duas folhas de papel marca pequena. Amâncio narrava à mãe todos os seus
passos e todos os seus desgostos, sem lhe confessar, todavia, que o principal
motivo daquele descontentamento estava em não se poder recolher de noite às
horas que entendesse; em ter por único companheiro de passeios o Luís Campos,
cuja sobriedade nos gestos e costumes, cuja discrição nos termos, cujo aspecto
repreensivo e pedagógico de mentor faziam-no já perfeitamente insuportável aos
olhos do estudante.
— Ora adeus! considerava este,
deveras enfiado. — Não foi para me fazer santo que vim ao Rio de Janeiro!
Boas! Podia lá estar disposto a
sofrer aquele maçante do Campos!... Mas também não seria muito divertido andar
sozinho pela cidade, a trocar pernas, sem um companheiro, sem um amigo. Além
disso temia do seu provincialismo, receava “fazer figura triste”; ainda não
conhecia o preço das coisas e o nome das ruas. No Maranhão falavam com tanto
assombro dos gatunos da Corte! — os tais capoeiras! E Amâncio sobressaltava-se
pensando num encontro desagradável, em que lhe cambiassem o dinheiro e as jóias
por uma navalhada.
Seu maior desejo era ter ali um dos
amigos da província, a quem confiasse as impressões recebidas e com quem pudesse conversar livremente, à franca, sem
maior palavras, nem tomar as enfadonhas reservas e composturas, que lhe impunha
a censória presença do negociante.
Por isso, numa ocasião, em que
atravessava pela manhã o Beco do Cotovelo, sentiu grande alegria ao dar cara a
cara com Paiva Rocha. O Paiva era seu comprovinciano e fora seu condiscípulo;
pertenceram à mesma turma de exames na aula do Pires e matricularam-se juntos
no Liceu. Mas, enquanto o filho de Vasconcelos estudou as três primeiras
matérias, o outro fez todos os preparatórios.
Abraçaram-se. Houve exclamações de
parte a parte.
— Ora Paiva! disse Amâncio afinal,
encarando o amigo com um olhar muito satisfeito. — Não te fazia aqui na Corte!
— Estou na Politécnica.
— Ah! exclamou Amâncio, com
interesse. — Que ano?
— Terceiro.
— Bom. Estás quase livre!
— Qual! resmungou Paiva, mascando o
cigarro. — Tenho ainda muito que aturar!
E passaram então a falar de estudos.
Amâncio fazia recriminações: “Só encontrara dificuldades”. Disse a sua
antipatia pelas ciências práticas; queixou-se de alguns veteranos, que, por
serem mais antigos na escola, se julgavam com direito de maltratar os outros.
“Era estúpido! simplesmente estúpido!”
— Tradições respondeu Paiva, com a
indiferença de quem não preocupam tais bagatelas. — Isso há de acabar... A
natureza não dá saltos!
Amâncio, como qualquer provinciano
que ainda não tivesse ocasião de apreciar o Rio de Janeiro, julgava-se tão
desiludido a respeito dele, quanto a respeito de estudos.
— Sempre imaginei que fosse outra
coisa!... disse. — A tal Rua do Ouvidor, por exemplo!...
Paiva já não o ouvia, era todo
atenção para um cartaz de teatro que um sujeito pregava na parede defronte.
Amâncio prosseguiu, declarando que,
até ali, nada encontrara de extraordinário na Corte.
— Com franqueza — antes o Maranhão!
Com franqueza que antes! Não achas?... perguntou.
— É! respondeu o outro, distraído.
Mas Amâncio precisava desabafar e
não se contentou com aquela resposta. Insistiu na pergunta; chamou a atenção do
Paiva, agarrando-lhe à gola esgarçada do fraque.
— Não, filho, deixa-te disso,
retorquiu o interrogado. A Corte sempre é Corte!...
— Ora qual!
— É porque ainda não estás
acostumado, ainda não conheces o Rio! Hás de ver depois!...
Amâncio duvidava.
— Verás! repetia Paiva. Daqui a um
ou dois anos é que te quero ouvir!
E passaram de novo a falar de estudos,
de matrícula e de exames.
Paiva bocejou; o outro estava
“caceteando”. Quis safar-se.
— Espera! implorou Amâncio,
apoderando-se-lhe de novo da gola do fraque. — Espere! Onde vais tu?...
Conversa mais um pouco! suplicava ele com voz infeliz de quem pede uma esmola.
Não te vás ainda! Que pressa!
Paiva tinha de ir almoçar com um
amigo. Estava muito ocupado! “Naquele dia não dispunha de um momento de seu!”
Depois, depois se encontrariam!
— Não! Vem cá! Espera!
Paiva levantou as sobrancelhas,
impacientando-se.
— Mas, vem cá, dize-me uma coisa: o
que é que tanto tens hoje a fazer?... inquiriu o outro.
— Filho, questões de interesse
respondeu aquele, procurando abreviar explicações. Veio-lhe, porém, um ímpeto
de raiva e começou a falar alto sobre dinheiro; havia brigado na véspera com o
seu correspondente.
— Um burro! exclamava — um vinagre!
Imagina tu que o malvado sabe perfeitamente que não tenho ninguém por mim aqui
no Rio, e põe-se com dúvidas para me dar a mesada!... Como se aquele dinheiro
lhe saísse do bolso! Diabo da peste!
— Ele então não te quis dar a
mesada?... perguntou Amâncio muito espantado.
— É o costume aqui! retrucou Paiva
desabridamente. — Eles julgam que nos fazem grande obséquio em dar-nos aquilo
que nos pertence!
E, olhando para Amâncio com os olhos
apertados:
— Mas também, filho, disse-lhe meia
dúzia de desaforos, como ele nunca ouviu em sua vida! Cão!
E expôs a descompostura por inteiro,
na qual as palavras galego, ladrão, cachorro entravam repetidas
vezes.
— De sorte que, terminou o estudante
mais tranqüilo, como se houvesse despejado um peso das costas — não tenho lá
ido! Questão de capricho, sabes? olha, estou assim!
E bateu nas algibeiras.
— Isso arranja-se... disse Amâncio
timidamente, receoso de humilhar o colega. E depois, com um vislumbre: Vamos
almoçar a um hotel?!
Paiva concordou, sacudindo os
ombros. E, como Amâncio perguntasse onde deviam ir, começou a citar os melhores
hotéis, já sem deixar transparecer o menor indício de pressa.
Fazia-se grande conhecedor da Corte,
muito carioca, saboreando voluptuosamente o efeito de pasmaceira, que a sua
superioridade causava no amigo. Deu-se logo ares de cicerone; mostrou-se
habituadíssimo com tudo aquilo que pudesse causar admiração a um provinciano
recém-chegado; fingiu desdém por umas tantas coisas, que à primeira vista
pareciam boas e falou de outras, menos conhecida, com entusiasmo, com interesse
pessoal e com orgulho.
Amâncio escutava-o em recolhido
silêncio, mas, como estivesse a cair de apetite, voltou logo à idéia do almoço:
lembrou que poderiam ir ao Coroa de Ouro.
Paiva fitou-o espantado, e espocou depois uma risada
falsa:
— Aquela era mesma de quem vinha do
norte! Almoçar no Coroa de Ouro! Vade retro!
Amâncio não teve ânimo de defender a
sua proposta, e seguiu o companheiro que se pusera a andar com ímpeto.
Entraram na Rua do Carmo,
atravessaram a de São José e, ao caírem na da Assembléia, Paiva, que ia a
pensar, voltou-se de súbito para Amâncio e perguntou-lhe decisivamente.
— Tu queres almoçar bem?!
E feriu a última palavra.
— É! respondeu o outro.
— Pois então vamos ao Hotel dos
Príncipes!
E seguiram pela Rua Sete de Setembro até o Rocio.
Ao penetrarem no largo, uma menina
italiana, de alguns dez anos de idade, toda vestida de luto, morena, e ar
suplicantemente risonho e cheio de miséria, abraçou-se às pernas de Amâncio,
pedindo-lhe dinheiro — para levar à mãe que estava em casa morrendo de fome.
— Sai gritou-lhe o Paiva, procurando
arredá-la.
Mas a pequena ajoelhou-se, sem
largar as pernas do calouro, de cujas mãos já se tinha apoderado e cobria de
beijos.
— Então, papai! papaizinho bonito!
uma esmolinha sim?... dizia ela, voltando para o moço seus belos olhos de
criança, e rindo com uns dentes muito brancos que se lhe destacavam vivamente
da cor morena do rosto.
— Coitadinha! lamentou Amâncio,
fazendo-lhe uma festa no queixo e procurando dinheiro na algibeira das calças.
Puxou um maço grosso de cédulas.
— Não seja tolo! gritou-lhe o
companheiro. — Isto é especulação de algum vadio! Vestem por aí essas bichinhas
de luto e mandam-nas perseguir a humanidade! É uma esperteza, não seja tolo!
A pequena lançou ao Paiva um gesto
de raiva e sorriu para Amâncio, suplicando.
— Em todo o caso faz dó, coitada!
murmurou este dando-lhe uma cédula de dois mil-réis.
A italianinha agarrou-se ao dinheiro
e olho surpresa para o calouro. Depois beijou-lhe novamente as mãos e fugiu,
atirando-lhe beijos.
— Coitada! repetiu ele.
— Ainda estás muito peludo!
resmungou o Paiva. Olha que isto por cá não é o Maranhão!...
E pôs-se logo a falar nas
especulações do Rio de Janeiro. Contou fatos horrorosos de cinismo e gatunagem.
“Amâncio que se acautelasse: no caminho em que ia, haviam de arrancar-lhe até
os olhos. — Ali, a ciência de cada um consistia em fazer com que o dinheiro
passasse das algibeiras dos outros para
as próprias algibeiras.” Estava indignado! “Não podia, a sangue frio, ver assim
se atirar à rua — dois mil-réis! Ah! se o outro soubesse quanto o dinheiro
custava a ganhar, não teria as mãos tão rotas!”
E mostrava-se extremamente empenhado
nos interesses do colega: dava-lhe conselhos; havia de abrir-lhe os olhos,
indicar-lhe o verdadeiro caminho a seguir. “Não! Que ele não era desses, que só
querem desfrutar!... Quando simpatizava com um rapaz, sabia ser amigo! Amâncio
o veria no futuro!...”
— Olha! segredou-lhe, passando-lhe
um braço nas costas. — Hás de encontrar por aí muito artista! Acautela-te,
filho! acautela-te, que os cabras sabem levar água ao seu moinho! Digo-te isto,
porque te estimo, porque sou teu amigo, percebes?
Amâncio percebia e jurava muito
grato àquela dedicação. Tiveram, porém, de interromper o diálogo: dois outros
estudantes acabavam de parar defronte deles.
Eram amigos do Paiva. Houve logo
novas exclamações e cumprimentos rasgados.
— Meus senhores, exclamou aquele,
apresentando Amâncio. O nosso colega, Amâncio de Vasconcelos, estudante de
medicina. Escuso dizer que é muito talentoso e um caráter excelente.
Os dois
apertaram a mão de Amâncio com solenidade, e afiançaram que tinham imenso gosto
em conhecê-lo.
— João Coqueiro e Salustiano Simões!
nomeou o Paiva, indicando os dois. — São ambos da Politécnica.
E acrescentou em voz baixa, ao
ouvido de Amâncio, mas de modo que fosse ouvido por todos:
— Muitos distintos!...
O Coqueiro observava em silêncio o
novo colega, enquanto o Paiva e o Salustiano reatavam um velho colóquio,
interrompido à última vez que estiveram juntos; aquele saiu do seu recolhimento
para indagar de que província era Amâncio, como se ia dando nos estudos e onde estava
hospedado. Entretanto o Simões afrouxava lentamente na conversa com o outro e
caía aos poucos na sua habitual concentração; já respondia apenas por
monossílabos e só despregava o cigarro dos dentes para bocejar. Afinal, sem
conter a impaciência, quis dissolver o grupo; mas Amâncio tolheu-lhe a idéia
perguntando-lhe e mais ao Coqueiro se já tinham almoçado e, visto que não,
pediu-lhes que lhe fizessem companhia.
Aceitaram, depois de alguma
resistência por parte do último; e os quatro rapazes seguiram imediatamente
caminho do hotel, a rir e a dar língua, como se fossem todos amigos de muito
tempo.
Paiva Rocha pediu um gabinete
particular e aí se instalou com os outros.
Amâncio estava maravilhado. O
aspecto daquelas salas afestoadas, cheias de espelhos, de cortinas e
douraduras, no gênero pretensioso dos hotéis, o ar parisiense dos criados,
vestidos de preto e avental branco; a
cor estridente do gabinete; o perfume das flores que guarneciam jarras de
proporções luxuosas; o alvoroço palavroso e alegre dos que faziam a sobremesa;
o crepitar do riso das mulheres, cujos penteadores branquejavam sobre o escuro
dos tapetes; a reverberação dos cristais; a expectativa de um bom almoço, que
seria devorado com apetite, e finalmente a circunstância de que Amâncio, havia
muito não gozava uma pândega; tudo isso lhe refrescava o humor e o fazia feliz
naquele momento.
— Garçom! gritou o Paiva,
entrando no gabinete com um ar sem-cerimônia. La carte!
O criado disparou.
— Tu falas francês?... inquiriu
Amâncio, já com admiração na voz.
— Ora respondeu Paiva, levantando os
ombros. Aqui na Corte será difícil encontrar alguém que não fale francês!...
— Pois eu ainda não sei... disse
aquele tristemente.
— Questão de prática! observou o
outro.
Coqueiro, que acabava nesse momento
de entrar no gabinete, conversando com Simões, propôs que se despissem os
paletós.
Principiaram a comer.
O Paiva encarregara-se do menu.
Estava radiante; parecia empenhado na direção do almoço, como se tratasse de um
trabalho difícil e glorioso. Escolhia pratos esquisitos e determinava os vinhos
que os deviam acompanhar.
— Este Paiva é terrível para um menu!
observou Simões em ar de troça.
— Não! disse aquele. — Não admito
que ninguém dirija um almoço melhor do que eu!
— Sim, considerou Coqueiro — mas
vais ver por que preço sai tudo isso!...
— Não faz mal!... apressou-se
Amâncio a declarar. — Sinto-me tão bem entre os senhores... há tanto tempo não
tinha um momento livre, que...
— Bem, de acordo, respondeu
Coqueiro, mas é preciso deixar esse tratamento de “senhor”. Entre rapazes não
deve haver cerimônias, mal-entendidos; somos colegas, temos de ser amigos, por
conseguinte tratemo-nos desde já por “tu”. Não és da mesma opinião, ó Paiva?
— In totum! respondeu este,
abraçando Amâncio pela cintura. — Nós cá somos camaradas velhos! Vem de longe!
E parecia querer provar que os seus direitos sobre o
comprovinciano eram muito mais legítimos que os dos outros dois; que Amâncio
lhe pertencia quase exclusivamente, como um tesouro, como uma fortuna que se
traz do berço. E para deixar isso bem patente, fazia-se muito íntimo com ele:
batia-lhe nas pernas; evocava recordações; lembrava-lhes as correrias da
província:
— Ah! nós éramos muito camaradas!
Lembras-te, Amâncio, daquele passeio que fizemos ao Portinho?...
— Em que Malheiros tomou uma
bebedeira de charuto? Perguntou o interrogado a rir. — Naquele dia do barulho
no Liceu; quando o Chico moleque foi expulso!...
— É verdade! que fim levou esse
rapaz! quis saber Paiva — Era um bom tipo. Inteligente!
— Morreu, coitado! de bexigas.
Ultimamente estava no comércio.
E aquele pequeno, o...
— Qual?
— Aquele bonito, de cabelos
grandes... ora, como se chamava ele?... o...
— Ah! exclamou Amâncio, soltando uma
risada — o Dominguinhos?
— Isso! isso! Dominguinhos
justamente! Que fim levou?
— Não sei, não! Creio que seguiu
para Manaus com a família. Um bobo! Lembra-se da troça que lhe fizemos no
convento?...
E os dois riram-se muito com a mesma
idéia.
Simões, que até aí parecia pouco
disposto à pândega, foi-se animando na proporção das garrafas que se enxugavam.
O almoço aquecia. João Coqueiro propôs um brinde a Amâncio e declarou, depois
de lhe fazer muitos elogios, que folgaria imenso em ser recebido no rol de seus
amigos.
Amâncio abraçou-o e prometeu que o
iria visitar no primeiro domingo.
— Vá feito! sustentou Coqueiro. Ali
não há cerimônia, minha família é muito despida dessas coisas.
— Ah! mora com a família? interrogou
o provinciano.
— Sou casado, respondeu o outro. —
Isso, porém, nada quer dizer. Apareça.
Ficou decidido que Amâncio iria sem
falta no próximo domingo.
Simões principiou então a falar
sobre casamento; daí passou às mulheres: descreveu a sua indiferença por elas.
Só lhe conhecia dois gêneros: “a mulher cínica e a mulher hipócrita.”
Paiva Rocha protestava: — Havia
muita mulher honesta, verdadeiros anjos de virtude! E que deixassem lá falar!
em certas ocasiões uma boa rapariga tinha o seu cabimento! Sim! Quem não
gostava da estética?...
Amâncio era da mesma opinião, e
queixou-se de sua infelicidade no Rio a esse respeito.
— Ainda é cedo elucidou o
Salustiano. — Quando te começarem as aventuras, há de ver o que vai por essa
sociedade!
— Não é tanto assim! opôs Coqueiro.
— Vocês são todos homens dos extremos!
E voltando-se confidencialmente para
Amâncio:
— O Doutor, decerto, encontrará
muita mulher perigosa, de quem deve fugir como o diabo da cruz; mas terá também
ocasião de ver algumas raparigas bem educadas, honestas e inteligentes. Não as
vá procurar na alta sociedade, não, que aí se escondem as piores! mas
indague-as cá por baixo, na mediocracia, que as há de descobrir. E olhe, se
quer aceitar um conselho de amigo, case-se! Não há melhor vidinha! Estou casado
há três anos e ainda não tive um segundo de arrependimento!... Ao menos
conserva-se a saúde, desenvolve-se o espírito e trabalhe-se mais... O método,
homem! o método é o segredo da existência!
E, puxando a cadeira para mais perto
de Amâncio falou-lhe em voz baixa. Que no Rio de Janeiro era preciso ter um
amigo sincero, não que “primasse nos menus”, mas que fosse capaz, que
tivesse imputabilidade moral! — Amâncio estava defronte de duas estradas; uma
que conduzia à verdadeira felicidade e outra que conduzia à desordem, ao vício
e à completa desmoralização! Que se não deixasse levar pelos pândegos!... E
olhava à esconsa os dois outros companheiros. Aquilo era gente sem nada a
perder!... Amâncio, enfim, que aparecesse no domingo e teriam ocasião de falar
mais de espaço. Não deixasse de ir: havia muito o que dizer e conversar.
Amâncio prometeu de novo.
O almoço chegara ao ponto em que os
comensais falam todos ao mesmo tempo e em voz alta. Havia agitação;
afogueavam-se as faces ao reflexo vermelho das paredes do gabinete. Simões
discutia com Paiva a incompetência dos professores da Politécnica.
— Uma súcia! uma cambada!
sintetizava ele. — Se fosse preciso despedir dali os que não prestam, não
ficaria nenhum!
O outro protestava, gritando e
batendo punhadas sobre a mesa. Havia já dois copos quebrados.
O criado trouxera a sobremesa — uma
salada russa.
Paiva pediu gelados e quis que lhe
dessem uma omelete ao rum. “Não podia passar sem isso no almoço!”
Suavam.
Amâncio tornava-se expansivo: falou
de seus amores na província; contou as suas intenções a respeito da mulher do
Campos.
— Ela parece que tem medo, dizia. —
Mas eu sou perseverante! Espero!
— Menino segredou-lhe Paiva. — Vai
aproveitando, vai aproveitando, porque é isso o que se leva deste mundo!
— E o mais são histórias... concluiu
o filho de Vasconcelos.
E fazia-se muito fino, perigoso, e
continuava a parolar com embófia, loquaz, um pouco sacudido pelo almoço.
Coqueiro estudava-o de socapa, a
seguir-lhe os gestos, a fariscar-lhe as intenções. Dos quatro era o único que
não estava tonto: seus olhos, pequenos e de cor duvidosa, conservavam a mesma
penetração e a mesma fixidez incisiva de ave de rapina; sua boca, estreita, bem
guarnecida e quase sem lábios, tinha o mesmo riso arqueado, mal seguro e frio,
de quem escuta e observa.
Era de altura regular, compleição
ética, rosto comprido, de um moreno embaciado, pouca barba, pescoço magro,
nariz agudo, mãos pálidas e secas, voz doce e cabelo muito crespo, de colorido
incerto, entre castanho e fulvo. Tinha vinte e sete anos, mas aparentava,
quanto muito, vinte e dois.
Paiva erguera-se para fazer um bestialógico,
e soltava de enfiada frases sonoras e ocas de sentido: ouvia-se-lhe falar em
“gazofiliáceos, camelos da Patagônia e constelações híbridas do mapa-mundi”.
Simões, o macambúzio, derreara a cadeira contra a parede, e jazia palitar a
boca, estendido para trás, em uma posição de homem farto: barriga ao vento,
braços moles e um olhar muito pando, que se lhe entornava por todo o rosto em
sorrisos de preguiça. Amâncio reatava a sua conversa com Coqueiro.
— É como lhe digo, recapitulava
este. — Aquilo não é um hotel, é uma — casa de família! Não temos hóspedes,
temos amigos! Minha mulher é quem toma conta de tudo!... E dando à voz um tom
grave: — Ela é muito asseada, muito exigente em questões de comida! Você não
imagina!... Ao almoço temos três pratos a escolher, leite, chá ou café, e
vinho; pelo almoço pode calcular o que não será o jantar! — E depois é preciso
observar a qualidade dos gêneros!... enfim, só mesmo você indo ver!
Amâncio reprometia.
— Fica-se muito melhor em uma casa
de família, continuava o outro. A vida em hotel ou a vida em república é o diabo: estraga-se tudo — o
estômago, o caráter, a bolsa; ao passo que ali, você têm o seu banho frio pela
manhã, torradas à noite e, se cair doente (o que lhe não desejo), há quem o
trate, quem lhe prepare um remédio, um caldo, um suadouro, um escalda-pés...
Olhe! até, se você quiser, eu...
Mas a porta abriu-se com violento
empurrão, e uma mulher loura, gorda, vestida de seda amarela, precipitou-se no
gabinete, espavorida, a soltar gritos. Vinha-lhe no encalço um sujeito idoso,
cheio de corpo, o chapéu à ré, o olhar desvairado e convulso.
— Podes ir para onde quiseres, que
eu não te deixo! berrava ele com fúria, a dardejar o guarda-chuva sobre as
costas da perseguida. Esta corria de uma lado para outro, procurando
escapar-lhe, mas o sujeito agarrou-a pelos cabelos e conseguiu arrebatá-la,
levando os dois, aos trambolhões, tudo o que encontravam no caminho.
Em menos de um segundo era completa
a desordem no gabinete. Caíram
cadeiras; a mesa estremeceu com um encontrão e a saleira e duas garrafas
perderam o equilíbrio e tombaram, varrendo copos e esmagando pratos. O
guarda-chuva do sujeito havia com um só golpe espatifado os globos do candeeiro
e reduzido um espelho a mil pedaços.
— Isto não tem jeito! gritou Paiva
ao homem. — O senhor faz mal em invadir desta forma um gabinete ocupado!
Mas o invasor já não ouvia coisa
alguma e acabava de sair aos pescoções com a sujeita.
Paiva atirou-se-lhe à pista, armado
de uma garrafa. O gerente do hotel apareceu, porém, cortando-lhe o passo e
pedindo-lhe, por amor de Deus que não fizesse caso, que deixasse lá os dois se
esbordoarem à vontade!
— Era o costume! Acabariam por
entender-se perfeitamente!
— O senhor então acha que isto é
razoável?! perguntou Paiva furioso.
— Não, decerto!
E o gerente dava aos rapazes toda a
razão: — Deviam estar maçados, mas que tivessem paciência! que desculpassem!
Não fora possível evitar tão grande sensaboria: O Brás, em questões de
mulheres, perdia sempre a cabeça! E ele não sabia que diabo de rabicho tinha o
basbaque pelo demônio da Rita Baiana, que, de vez em quando, era aquilo!
— Pois que se vá enrabichar para o
diabo que o carregue!
— Decerto, decerto! apoiava o
gerente, procurando acalmar o estudante.
— Ajuste as suas contas onde quiser,
menos nos gabinetes ocupados pelos outros! Arre!
— É exato! Os senhores têm todo o
direito, mas por quem são, não façam caso! Não façam caso.
— E esta?! insistia Paiva. — Pois se
a gente paga muito mais para ficar em liberdade, como o diabo há de admitir
isto?!...
— Tem toda a razão! Tem toda a
razão!... repetia o gerente, erguendo as cadeiras e apanhando do tapete os
cacos de vidro.
Só então intervieram os outros
rapazes. Amâncio, até aí, parecia colado à cadeira. Estava lívido e as pernas
tremiam-lhe.
O gerente ia responder a todos, quando a porta se tornou a
abrir, e Brás, ainda transformado pela comoção da briga, ofegante e pálido,
quase sem poder falar, entre, dizendo — que ia pedir desculpa da grosseria por
ele praticada há pouco.
— Mas estava possesso!
Justificava-se ele. — Aquela não-sei-que-diga lhe fazia perder as estribeiras!
Que o desculpasse, porque um homem em certas ocasiões nem se podia conter! Uma
mulher, com quem já havia gasto para mais de dez contos de réis!... exclamava
ele fora de si. Uma mulher “que erguera da lama” podia assim dizer! Uma
desgraçada, que, antes de o conhecer, não podia ir a parte alguma por não ter
um vestido capaz!... Uma miserável, que dantes, para matar a fome, precisava
aviar encomendas de costura e se andar alugando na casa das modistas... Era
duro! Pois não achavam?!...
Os estudantes meneavam a cabeça,
afirmativamente.
— Ah! continuou o Brás. Aquelas
contas tinham-se de ajustar na primeira ocasião em que ele a encontrasse com o
tal troca-tintas! Ah! Já não podia! Era demais! Uf!
E passeava no gabinete, a empurrar
com o pé os cacos esquecidos no chão, e a sorver o ar em grandes haustos,
consoladamente, como se acabasse de alijar um peso da consciência.
As palavras do Brás tranqüilizaram
os rapazes, cuja embriaguez parecia ter fugido com o susto. Simões chegou mesmo
a rir do fato, jactando-se mais uma vez da sua eterna indiferença pelas
mulheres! Com ele é que nunca haveria de suceder semelhante coisa!... afirmava.
Amâncio convidou Brás a beber, e
vazou-lhe vinho num copo.
— Aquela descarada! resmungava o
ciumento, examinando uma arranhadura que vinha de descobrir na mão direita. —
Ela, porém, comigo está iludida! — ou me anda muito direitinha ou há de me
ficar debaixo dos pés! Pedaço de uma ingrata!
E, voltando-se para o gerente, que
acabava de entrar:
— O sujeitinho foi-se, hein?
— Ora!... respondeu aquele com um
riso servil. — Ganhou logo a rua e... por aqui é o caminho! Ela é que, pelos
modos, ficou bem convidada! Meteu-se no quarto a chorar.
— Pois que chore na cama, que é
lugar quente! Não fosse ordinária! Faça lá o que bem entender, mas, com os
diabos! não enquanto estiver comigo! Vá divertir-se com o boi! Sebo!
E passando logo em seguida para um
tom de voz calma e amiga, disse baixo ao gerente:
— Veja de quanto foi o prejuízo e
faça-me uma conta à parte.
Pediu ainda uma vez desculpa aos
rapazes, afiançou que eles tinham um criado na Ladeira da Glória, número tanto,
e saiu, sempre às voltas com a sua arranhadura da mão direita.
Amâncio quis condenar o fato, mas
Paiva observou-lhe que aquilo se dava todos os dias no Rio de Janeiro.
— Eu já não estranho, disse. — Falta
de educação!...
— Bem, meus senhores, são horas de
eu me ir também chegando, advertiu Coqueiro, erguendo-se e enfiando o paletó.
Simões fez igual movimento e
declarou que o acompanhava.
— Então, que é isto, já? exclamou
Amâncio, querendo detê-los.
— É. Está se fazendo tarde,
respondeu Coqueiro, a consultar o relógio. — Três horas.
— Impossível! negou Amâncio.
Era exato.
E Coqueiro, já de chapéu na cabeça e
guarda-chuva debaixo do braço, apertou-lhe a mãos com as duas, dizendo que
folgava em extremo haver travado relações com ele e que o esperava, sem falta,
no domingo. Simões fez igualmente as suas despedidas, e os dois saíram a
conversar sobre o quanto poderia custar a Amâncio aquele almoço.
— Também que diabo ficamos nós
fazendo aqui? lembrou Paiva, quando se viu a sós com o amigo. — Paga isso e
vamo-nos embora. Queres tu ir até lá a casa?...
— Mas eu já estou há muito tempo na
rua... considerou Amâncio.
— E o que tem isso?!... Deves contas
de ti a alguém?! Ora essa!
— É que Campos pode reparar!...
— Pois que repare! Manda plantar
batatas o tal Campos! Tu não és nenhum caixeiro dele... Eu, no teu caso, nem
ficava ali mais um dia! Que necessidade tens agora de passar às sopas de um
negociante, e sujeitar-te a regulamentos comerciais? É de mau gosto estar
hospedado em casa de negócio! Olha! Se quiseres, muda-te lá para a república.
Sempre é outra coisa morar com rapazes! Aprende-se!
O criado, a quem já tinham pedido a
conta, entrou com uma pequena salva na mão e foi, instintivamente, depô-la em
frente de Amâncio.
— Espere, disse este, tirando
dinheiro do bolso. E entregou-lhe uma nota de cem mil-réis.
O moço saiu correndo.
— Quanto foi? desejou saber Paiva.
— Oitenta e cinco mil-réis,
respondeu o outro.
— Oitenta e cinco mil-réis! Oh! que
grande ladroeira!
E logo que o criado voltou com o
troco:
— Tomem, faça o favor de dizer em
que se gastaram aqui oitenta e cinco mil-réis... Salvo se vossemecês metem
também na conta o que quebrou Brás!
— Não senhor! Eu só cobrei os copos,
que já estavam partidos antes do rolo.
— Que enorme ladroeira! insistia
Paiva, a sacudir a cabeça.
— Deixa lá! aconselhou Amâncio,
puxando-o para fora.
Precisava andar e tomar fresco.
Aqueles gabinetes eram um forno — sentia-se mal.
— É que não posso ver extorquir
desta forma o dinheiro de ninguém! disse Paiva indignado.
E principiou a fazer as contas pelo
que se lembrava de ter vindo à mesa.
Amâncio o puxou de novo:
— Deixa lá isso, homem!
— Nada! Pelo menos hei de vingar-me
aqui em alguma coisa!
O criado havia saído. Paiva Rocha
principiou a derramar o resto das garrafas no açucareiro, a emporcalhar o
damasco da cortina e a cuspir dentro das chávenas.
Amâncio ria-se formalmente, mas, no
íntimo, aborrecido:
— Agora podemos ir! disse afinal o
outro. — Ao menos deixo-lhes um prejuízo!
E ainda meteu no bolso um paliteiro
e duas colheres.
Lá na república precisava-se
daqueles objetos! acrescentou rindo.
Já na rua, Amâncio reparou que a
cabeça lhe estava muito pesada e queixou-se de suores frios. Paiva chamou um
carro, e, uma vez dentro com o colega, mandou tocar para a Rua de Mata-Cavalos.
— Esqueceste aquilo de que falamos?
perguntou em viagem ao companheiro.
Amâncio já não se lembrava.
Paiva respondeu, fazendo um sinal
com os dedos.
— Ah! Quanto queres?
— Dá cá daí uns cinqüenta ou
sessenta... depois te pagarei.
— Pois não, gaguejou Amâncio,
passando-lhe três notas de vinte mil-réis.
IV
Amâncio chegou à república muito
indisposto. Quase que não dava conta dos quatro lances de escada que a
precediam.
Também foi só chegar e atirar-se à
primeira cama, gemendo e resbunando ao peso de uma grande aflição. Estava mais
branco do que a cal da parede; o suor escorria-lhe por todo o corpo; respirava
com dificuldade, a abrir a boca e a retorcer os olhos.
— Então? disse Paiva, batendo-lhe no
ombro.
— Mal! respondeu Amâncio, sem levantar
a cabeça, que deixara cair sobre o peito. E com um gesto pediu água.
— Isso passa! afiançou o colega,
entregando-lhe o púcaro cheio. Estás é com um formidável pifão.
E riu-se.
— Eu quero vomitar! exclamou
Vasconcelos, apressado pela agonia, e mal teve tempo de erguer o rosto.
— És um fracalhão! ponderou o
companheiro, amparando-o pela testa — Que diabo! quem não pode com o tempo não
inventa modas!
Amâncio não respondia: os engulhos
vinham-lhe uns sobre os outros.
— Ai! ai! gemia oprimido.
— Ora que tipo! disse Paiva,
atirando-o sobre os travesseiros. — Vê se consegues dormir! Isto não é nada!
E narrou um caso idêntico que
experimentara.
Amâncio sentia-se um pouco mais
aliviado, continuava, porém, a suar frio; tinha a cabeça completamente ensopada
e não dispunha de forças para coisa alguma. Os olhos fechavam-se-lhe com um
entorpecimento pesado de sono. Pediu mais água. E, depois de a tomar, deu a
entender que era preciso que o despissem e descalçassem.
Paiva entrou a tirar-lhe a roupa,
safou-lhe com dificuldade as botinas, porque as meias estavam suadas.
Amâncio, muito prostrado, mole, a
virar-se de uma para outra banda, aiava sempre. Afinal sossegou, parecia
adormecido; mas, ergueu-se logo, com ímpeto, e começou a vomitar de novo, sem
dizer palavra.
— Que pifão! reconsiderava o colega,
encarando-o com as mãos cruzadas atrás.
— Homem! Vê se lhe dás um pouco de
amônia! lembrou do fundo do quarto uma voz arrastada e um pouco fanhosa.
Só então Amâncio percebeu que ali, a
seis ou sete passos distante dele, estava um rapaz magro, muito amarelo, em
ceroulas e corpo nu, estendido numa cama, a ler, todo preocupado, um grosso
volume que tinha sobre o estômago. Parecia deveras ferrado no seu estudo,
porque até aí não dera fé do que se lhe passava em derredor.
— Olha! disse ao Paiva. — Creio que
está acolá, sobre a mesa, por detrás do Comte. É um frasquinho quadrado, com
rolha de vidro.
Dito isto, recolheu-se de novo à
leitura, como se nada houvesse sucedido.
Amâncio serenou de todo com algumas
gotas de amoníaco em um copo d’água, e afinal pegou no sono profundamente.
Só acordou no dia seguinte, quando o
sol já entrava pela única janela do quarto.
Sentia a boca amarga e o corpo
moído. Assentou-se na cama e circunvagou em torno os olhos assombrados, com a
estranheza de um doido ao recuperar o entendimento.
O sujeito magro da véspera lá estava no mesmo sítio; agora,
porém, dormia, amortalhado a custo num insuficiente pedaço de chita vermelha.
Do lado oposto, no chão, sobre um
lençol encardido e cheio de nódoas, a cabeça pousada num jogo de dicionários
latinos, jazia Paiva, a sono solto, apenas resguardado por um colete de
flanela. Mais adiante, em uma cama estreita, de lona, viam-se dois moços,
ressonando de costas um para outro, com as nucas unidas, a disputarem
silenciosamente o mesmo travesseiro.
O quarto respirava todo um ar triste
de desmazelo e boêmia. Fazia má impressão estar ali: o vômito de Amâncio
secava-se no chão, azedando o ambiente; a louça, que servira ao último jantar,
ainda coberta de gordura coalhada, parecia dentro de uma lata abominável, cheia
de contusões e roída de ferrugem. Uma banquinha, encostada à parede, dizia com
o seu frio aspecto desarranjado que alguém estivera aí a trabalhar durante a
noite, até que se extinguira a vela, cujas últimas gotas de estearina se
derramavam melancolicamente pelas bordas de um frasco vazio de xarope Larose,
que lhe fizera as vezes de castiçal. Num dos cantos amontoava-se roupa suja; em
outro repousava uma máquina de fazer café, ao lado de uma garrafa de espírito
de vinho. Nas cabeceiras das três camas e ao comprido das paredes, sobre
jornais velhos e desbotados, dependuravam-se calças e fraques de casimira; em
uma das ombreiras da janela umas lunetas de ouro, cuidadosamente suspensas num
prego. Por aqui e por ali pontas esmagadas de cigarro e cuspalhadas
ressequidas. No meio do soalho, com o gargalo decepado, luzia uma garrafa.
A luz franca e penetrante da manhã
dava a tudo isso um relevo ainda mais duro e repulsivo; o coração de Amâncio
ficou vexado e corrido, como se todos os ângulos daquela imundície o espetassem
a um só tempo. Ergueu-se cautelosamente, para não acordar os outros, e foi à
janela. O vasto panorama lá de fora estremulhou-lhe os sentidos com o seu
aspecto.
A república era no alto, sobre três
andares, dominando uma grande extensão. Viam-se de cima as casas acavaladas
umas pelas outras, formando ruas, contornando praças. As chaminés principiavam
a fumar; deslizavam as carrocinhas multicores dos padeiros; as vacas de leite
caminhavam com o seu passo vagaroso, parando à porta dos fregueses, tilintando
o chocalho; os quiosques vendiam café a homens de jaqueta e chapéu desabado;
cruzavam-se na rua os libertinos retardios com os operários que se levantavam
para a obrigação; ouvia-se o ruído estalado dos carros d’água, o rodar monótono
dos bondes. Mais para além pressentiam-se os arrabaldes pelo verdejar das
árvores; ao fundo encadeavam-se cordilheiras, graduando planos esfumados de
neblina. O horizonte rasgava-se à luz do sol, num deslumbramento de cores
siderais. E lá muito longe, quase a perder de vista, reverberava a baía,
laminando as águas na praia.
Embaixo, na área da casa, uma ilhoa, de braços nus, a cabeça
embrulhada em um lenço de ramagens, lavava a um tanque de cimento romano; um
homem, em mangas de camisa, varrias as pedras do chão, cantarolando com os
dentes cerrados, para não deixar cair a ponta do cigarro. Numa janela, um
sujeito, de óculos azuis, areava os dentes e com a boca atirava duchas sobre um
papagaio, cuja gaiola pousava no balcão. Dentro de um cercado cacarejavam
galinhas, mariscando na terra; e o homem do lixo entrava e saía, familiarmente,
com o seu gigo às costas.
Um relógio da vizinhança bateu seis horas.
Amâncio reparou que estava com muita
sede, mas não descobria a talha d’água. Afinal encontrou-a, num sótão que havia
ao lado do quarto e onde só se entrava vergando o corpo.
Bebeu até à saciedade.
Depois lavou o rosto e a boca. E com
a idéia de sair antes que os mais acordassem, vestiu-se apressado, contou o dinheiro
que lhe restava, lamentando interiormente o que na véspera esbanjara; viu no
chão uma escova de fato, apanhou-a, escovou a roupa, e, todo cautela e ponta de
pé, abriu a porta e ganhou a escada.
Entre o primeiro e o segundo andar
encontrou uma rapariguita de alguns dezesseis anos, que subia com dois copos de
leite, um em cada mão, fazendo mil esforços para não os entornar. Ao ver
Amâncio ela emperrou, cosendo-se à parede, a fim de lhe dar passagem, e olhou-o
de esguelha, com medo de afastar a vista dos copos.
Era bonitinha, corada, os cabelos
castanhos apanhados na nuca. Parecia
portuguesa.
Amâncio, ao passar por ela, estacou
também, a fitá-la. De repente lançou-lhe as mãos.
A pequena, muito contrariada, fez
uma cara de raiva e gritou — que a soltasse! que não fosse atrevido!
E desviava o corpo, querendo
defender-se, mas sem se descuidar dos copos.
— Mau! mau! siga o seu caminho e
deixe os outros em paz!
Amâncio não fez caso e conseguiu
beijá-la a pura força. Derramaram-se algumas gotas de leite.
— Maus raios te partam! clamou a
rapariga, assim que o viu pelas costas. — Peste ruim de um estudante!
A peste ruim do estudante saiu, e só
interrompeu a caminhada para entrar num botequim, onde pediu café. Então,
defronte ao espelho, pôde admirar o belo estado em que se achava.
— Como diabo havia de apresentar-se
naquele gosto em casa do Campos?... Também que triste idéia a sua — de se
enterrar numa casa comercial! Não! com certeza estava mal hospedado... nem lhe
convinha permanecer ali! — Oh! Bastava já de ser governado, de ser vigiado a
todo instante! — Já era tempo de gozar um pouco de liberdade.
E enquanto sorvia compassadamente o
café, recapitulava na memória todo o seu passado de terror e submissão: — Antes
de entrar para a escola de primeira letras, nunca lhe deixaram transpor a porta da rua ou a porta do
quintal; os outros meninos de sua idade tinham licença para empinar papagaios,
brincar entrudo, queimar fogos pelo tempo de São Pedro; — ele não! depois caiu
nas garras no professor — aquela fera! Nunca saía de casa, sem levar atrás de
si um escravo para o vigiar, para o impedir de fazer travessuras e obrigá-lo a
caminhar com modo, direito, sério como um homem. Afinal escapou ao professor,
sim! mas continuou sob a dura vigilância do pai, do tio e das tias; todos o
rondavam; todos o traziam “num cortado”. Só na fazenda da avó conseguia
desfrutar alguma liberdade, mas essa mesma não era completa e, ai! durava tão
pouco tempo!...
Agora compreendia a razão pela qual,
no mês de férias que passava aí, se tornava tão travesso e tão maligno — é que
naturalmente queria desforrar o resto do ano, que levava coagido em casa do
pai. De sua infância eram aqueles meses privilegiados a coisa única que lhe
merecia verdadeira saudade; o mais estrangulavam tristes reminiscências de
castigos, de sustos, apoquentações de todo o gênero.
A própria idéia de sua mãe nunca lhe
vinha só; havia sempre ao lado da venerada imagem alguma recordação enfadonha e
constrangedora. — As poucas vezes em que estavam juntos, o pai chegava no
melhor da intimidade e Ângela se retraía, cortando em meio as carícias do
filho, como se as recebera de um amante, em plena ilegalidade do adultério.
E a memória desses beijos a furto e
medrosos, a memória desses carinhos cheios de sobressalto, relembravam-lhe às
vezes que ele em pequeno se metia no quarto dos engomados, de camaradagem com
as mulatas da casa que aí trabalhavam conjuntamente.
Era quase sempre pelo intervalo das
aulas, no meio do dia, quando o calor quebrava o corpo e punha nos sentidos uma
pasmaceira voluptuosa.
Em casa do velho Vasconcelos havia,
segundo o costume da província, grande número de criadas; só no “quarto da
goma” como lá se diz, reuniam-se quatro ou cinco. Umas costuravam; outras
faziam renda, assentadas no chão, defronte da almofada de bilros; outras,
vergadas sobre a “tábua de engomar”, passavam roupa a ferro.
Amâncio, quando criança, gostava de
meter-se com elas, participar de suas conversas picadas de brejeirice, e deixar
correr o tempo, deitado sobre as saias, amolentando-se ao calor penetrante das
raparigas, a ouvir, num êxtase mofino, o que elas entre si cochichavam com
risadinhas estaladas à socapa. Por outro lado, as mulatas folgavam em tê-lo
perto de si, achavam-no vivo e atilado, provocavam-lhe ditos de graça, mexiam
com ele, faziam-lhe perguntas maliciosas, só para “ver o que o demônio do
menino respondia”. E, logo que Amâncio dava a réplica, piscando os olhos e
mostrando a ponta da língua, caíam todas num ataque de riso, a olharem umas
para as outras com intenção.
De resto, ninguém melhor do que ele
para subtrair da despensa um punhado de açúcar ou de farinha, sem que Ângela
desse por isso.
— O demoninho era levado!
E assim se foi tornando mulherengo
fraldeiro, amigo de saias.
A mãe, quando ouvia da varanda as
risadas da criadagem, gritava logo pelo filho.
— Já vou, mamãe! respondia Amâncio.
— Lá estava o diabrete do menino às
voltas com as raparigas no quarto da goma! Oh! que birra tinha ela disso!...
Mas Amâncio não se corrigia. É que
ali ao menos não chegaria o pai.
Às vezes, quando ia passear à casa
de alguma família conhecida, arranjava-se com as moças, gostava de
acompanhá-las por toda parte, fazendo-se muito dócil e amigo de servir. Como
era ainda perfeitamente criança e bonitinho, elas lhe faziam festas e davam-lhe
doces, figurinos de papel recortado e caixinhas vazias. Algumas lhe perguntavam
brincando se ele as queria para mulher, se queria “ser seu noivo”. Amâncio
respondia que sim com um arrepio. E daí a pouco ficavam as moças muito surpreendidas
quando ao demônio do menino lhes saltava ao colo e principiava a beijar-lhes
sofregamente o pescoço e os cabelos ou a meter-lhes a língua pelos ouvidos.
— Credo! disse uma delas em situação
idêntica. — Que menino! Vá para longe com as suas brincadeiras!
Outras, porém, lhe achavam muita
graça e eram as primeiras a puxar por ele.
De todos os brinquedos o que Amâncio
em pequeno mais estimava, era o de “fazer casa”. A casa fazia-se sempre
debaixo de uma mesa, com um lençol em volta, figurando as paredes. Uma de suas
primas, filha do protetor Campos, ou alguma menina que estivesse passando o dia
com ele, representava de mulher; Amâncio de marido. A menina ficava debaixo da
mesa enquanto ele andava por fora, “a ganhar a vida” até que se recolhia também
à casa, levando compras e preparos para o almoço. Amarravam um lenço em
duas pernas da mesa, fingindo rede, e aí metiam uma boneca, que era o filho.
Gostava infinitivamente dessa
brincadeira. Mas um belo dia veio abaixo o lençol que servia de parede, e desde
então Ângela não consentiu que o filho se divertisse a fazer casa.
Muitos anos depois, aos quinze,
notou-se incomodado por um padecimento estranho. Não disse nada à família e
procurou um homem que havia na província com grande habilidade para curar
moléstias, viessem elas até do mau-olhado e do feitiço.
Santo homem! O mal do nosso
estudante desapareceu como por milagre; o que, aliás, não impediu que tivesse
daí a pouco de voltar à cama, debaixo de um novo e mais formidável carregamento
que o ia varrendo ao cemitério. Foram esses os três anos de sezões a que se
referia, quando pela primeira vez falou ao Campos.
E Amâncio, quanto mais rememorava tudo isso, quanto mais remexia no cinzeiro
do passado, tanto mais impacientes lhes rosnavam os sentidos e tanto mais
desabrida lhe vinha a necessidade de gozar, de viver em liberdade, de recuperar
o tempo que levou sopeado e preso.
— Enfim! concluiu ele erguendo-se
distraído e abandonando o café — a casa do Campos não me convém! de forma
alguma!
Mas a idéia de Hortênsia, que, para
se apresentar só esperava o termo daquelas considerações, invadiu-lhe o
espírito e foi a pouco e pouco se estendendo e se esticando por todo ele, até
ocupá-lo inteiramente com a sua imagem branca e palpitante, como uma bela mulher
que desperta e, entre voluptuosos espreguiçamentos, alonga pela cama os seus
membros ainda entorpecidos de sono.
E ele, quando deu por si, estava a
fazer conjecturas sobre o amor de Hortênsia:
— Seria ardente ou calmo? Meigo ou
arrebatador? Que atitude tomaria a bela mulher nos momentos supremos de
ventura? Quais seriam as suas palavras, as frases do seu delírio?...
E, aguilhoado pelos sentidos,
perdia-se em cálculos infames, em degradantes suposições; tentando, embalde,
adivinhar-lhe os pensamentos, penetrar-lhe nos escaninhos do coração e
devassar-lhe todos os segredos do
corpo.
— Oh! Como seria?...
E seu desejo vil começava a
despi-la, peça por peça, até deixá-la completamente nua.
— Mas não! não havia possibilidade!
contrapunha-lhe a razão. — Tudo aquilo era loucura, simples loucura! Hortênsia
não podia ser mais séria, mais amiga do marido! Qual fora a palavra, o gesto,
que lhe dera a ele o direito de pensar em semelhante coisa?... Sim! que fizera
a pobre senhora para autorizá-lo a tanto?... Onde estava o fundamento daqueles
sonhos, pelos quais queria trocar a liberdade, os seus prazeres, tudo, e ficar
encurralado em uma casa comercial, com obrigação de entrar às tantas, comer às
tantas, e guardar todas as conveniências ao lado de uma gente impossível!?...
Ora! que se deixasse de asneiras! Não fosse tolo!
Hortênsia Campos aparecia-lhe então
como em verdade o era: carinhosa e altiva, afável para todos igualmente, sem
dar a nenhum o direito de supor uma preferência. Amâncio já não a tinha
descomposta defronte dos olhos, mas respeitosamente restituída ao seu
vestidinho de chita, às suas botinas de duraque, quase sem salto, e às suas
tranças honestamente penteadas.
— Mudava-se! Que dúvida! Sim! Uma
vez que Hortênsia nada mais era do que uma senhora virtuosa, que diabo ficava
ele fazendo ali?... Não seria decerto pelos bonitos olhos do Campos!
*
* *
Às oito horas, quando entrou em casa tinha já resolvido não
ficar ali nem mais um dia. — Era fazer as malas e bater quanto antes a bela
plumagem!
Mas também, se por um lado não lhe
convinha ficar em companhia do Campos, por outro, a idéia de se manter na
república do Paiva não o seduzia absolutamente. Aquela miséria e aquela
desordem lhe causavam repugnância. Queria a liberdade, a boêmia, a pândega —
sim senhor! tudo isso, porém, com um certo ar, com uma certa distinção
aristocrática. Não admitia uma cama sem travesseiros, um almoço sem talheres, e
uma alcova sem espelhos. Desejava a bela crápula, — por Deus que desejava! mas
não bebendo pela garrafa e dormindo pelo chão de águas-furtadas! — Que diabo! —
não podia ser tão difícil conciliar as duas coisas!...
Pensando deste modo, subiu ao
quarto. Sobre a cômoda estava uma carta que lhe era dirigida; abriu-a logo:
“Querido Amâncio.
Desculpe tratá-lo com esta
liberdade; como porém, já sou amigo, não encontro jeito de lhe falar doutro
modo. Ontem, quando combinamos no Hotel dos Príncipes a sua visita para
domingo, não me passava pela cabeça que hoje era dia santo e que fazíamos
melhor em aproveitá-lo; por conseguinte, se o amigo não tem algum compromisso,
venha passar a tarde conosco, que nos dará com isso um grande prazer. Minha
família, depois que lhe falei a seu respeito, está impaciente para conhecê-lo e
desde já fica à sua espera.”
Assinava “João Coqueiro” e havia o
seguinte pós-escrito: “Se não puder vir, previna-mo por duas palavrinhas; mas venha.”
Amâncio hesitou em se devia ir ou
não. Coqueiro, com a sua figurinha de tísico, o seu rosto chupado e quase
verde, os seus olhos pequenos e penetrantes, de uma mobilidade de olho de
pássaro, com a sua boca fria, deslabiada, o seu nariz agudo, o seu todo seco,
egoísta, desenganado da vida, não era das coisas que mais o atraíssem. No
entanto, bem podia ser que ali estivesse o que ele procurava — um cômodo limpo,
confortável, um pouquinho de luxo, e plena liberdade. Talvez aceitasse o
convite.
— Esta gente onde está? perguntou,
indicando o andar de cima a um caixeiro que lhe apareceu no corredor com a sua
calça domingueira, cor de alecrim, o charuto ao canto da boca.
— Foram passear ao Jardim Botânico,
respondeu aquele, descendo as escadas.
— Todos? ainda interrogou Amâncio.
— Sim, disso o outro entre os
dentes, sem voltar o rosto. E saiu.
— Está resolvido! pensou o
estudante. — Vou à casa do Coqueiro. Ao menos estarei entretido durante esse
tempo!
E voltando ao quarto:
— Não! É que tudo ali em casa do
Campos já lhe cheirava mal!... Olhassem para o ar impertinente com que aquele
galeguinho lhe havia falado!... E tudo mais era pelo mesmo teor. — Uma súcia de
asnos!
Começou a vestir-se de mau humor, arremessando a roupa,
atirando com as gavetas. O jarro vazio causou-lhe febre, sentiu venetas de
arrojá-lo pela janela; ao tomar uma toalha do cabide, porque ela se não
desprendesse logo, deu-lhe tal empuxão que a fez em tiras.
— Um horror! resmungava, a
vestir-se, furioso sem saber do quê.
— Um horror!
E, quando passou pela porta da rua,
teve ímpetos de esbordoar o caixeiro, que nesse dia estava de plantão.
V
João Coqueiro era fluminense e
fluminense da gema. Nascera na Rua do Parto em uma das casas de seus pais,
quando estes eram ricos.
Que o foram. Viera-lhes a fortuna do
avô materno, um português ambicioso e econômico, que a conquistara no tráfico
dos negros africanos; ao morrer legou à filha, ainda criança, para cima de
quinhentos contos de réis. Esta, mais tarde, foi solicitada em casamento pelo
homem a quem pertenceu para sempre — Lourenço Coqueiro, os maiores bigodes que
nesse tempo negrejavam na Corte do Império.
Lourenço, todavia, era já um destroço
quando casou. Do que fora e do que possuíra, apenas lhe restava, além do
bigode, o hábito de não fazer coisa alguma; nos melhores grupos citava-se,
entretanto, o seu ar distinto de fidalgo e falava-se com boa vontade de seus
dotes pessoais e do seu belo espírito eternamente galhofeiro.
O casamento representou para ele uma
tábua de salvação. A mulher adorava-o; tinha-o na conta de um ente superior;
jamais vira homem tão lindo de rosto, tão insinuante no falar, tão delicado de
maneiras.
Mas, pouco depois de casado,
Lourenço começou a desgostá-la: era um nunca terminar de festas; a casa vivia
num rebuliço constante; os intervalos das pândegas não davam sequer para a
trazer arrumada e limpa. Quando não fossem bailes, eram passeios, piqueniques,
manhãs no campo, dias passados na Tijuca ou no Jardim Botânico. Lourenço, às
vezes, voltava ébrio, a cachimbar no fundo do carro, e a fazer carícias piegas
à mulher, que ao lado, chorava silenciosamente. Ela, coitada! tinha muito medos
sempre que o via nesse gosto, porque o demônio do homem dava então para brigar,
mexia com quem passava, metia a bengala nos cocheiros e quebrava com os pés
tudo que encontrasse no caminho.
Tiveram o primeiro filho — Janjão.
Criancinha feia, dessangrada, cheia de asma. Até aos cinco anos parecia idiota:
passavam os dois a babar-se debaixo da mesa de jantar ao pé de um moleque
encarregado de vigiá-la.
A mãe desfazia-se em mil
cuidadozinhos com a criança; era esta o seu enlevo, a sua vida. Mas o pai não
estava por isso: — temia que o rapaz lhe saísse um maricas. Desejava-o forte,
decidido!
E, com enormes sobressaltados da
mulher, tomava-o pelas perninhas magras e suspendia-o no ar.
— Os homens assim é que se fazem,
minha filha! dizia ele a rolar o pequeno entre as mãos.
E não admitia igualmente que o
menino tivesse outra cama que não fosse um enxergão. Não o queria calçado, nem
vestido e, em vez de estar ali a babar-se defronte do moleque, seria muito
melhor que fosse correr para a chácara.
— Ele pode machucar-se, Lourenço,
cair! observava a esposa timidamente.
— Pois deixa-o cair! deixa-o
machucar-se! Quanto mais trambolhões levar em pequeno, melhor, depois se
agüentará nas pernas!
— Mas ele é tão fraquito,
coitadinho!
— Por isso mesmo! por isso mesmo
precisamos torná-lo forte! E previno-te de que já é mais que tempo de acabar
com esse insuportável tratamento de “Janjão!” Aqui não há janjões! Meu filho
chama-se João! Tem o nome do avô, um herói, um fidalgo! Não desses que hoje se
fazem aí a três por dois, mas dos legítimos, dos bons! — Entendes tu? — dos
bons!
E inflamava-se, como sempre que se
referia à sua procedência. Vinha, com efeito, de fidalgos: era sobrinho
bastardo de um conde português.
À mesa exigia que o filho lhe
ficasse ao lado e obrigava-o a comer bifes sangrentos e tomar vinho sem água.
Um dia a esposa revoltou-se:
— Pois tu vais dar conhaque ao
menino, Lourenço?! exclamou ela escandalizada.
— Deixa-o cá comigo, senhora! Eu sei
o que faço!
— Olha que isso pode sufocá-lo,
homem de Deus!
— Qual sufocar o quê! Por essas e
outras é que, para os estrangeiros, não passamos de “uns macacos”!
A mulher que se desse ao trabalho de
saber como se fazia na Europa a educação física das crianças! Queria que ela
visse a criação que tiveram D. Pedro e D. Miguel! E eram príncipes! — Entendia?
— eram príncipes legítimos!
E, voltando-se para o filho, gritou,
arregalando os olhos e soprando os bigodes, que já então se faziam cinzentos:
— Tu não queres ser um homem forte,
João?! Queres ser um descendente degenerado de teus avós?!
Janjão olhou o pai com medo, e abriu
a chorar.
— Aí tens o que procuravas! disse a
mulher, correndo para junto do filho. — Assustar desse modo a pobre criança!
Janjão chorava mais.
— Isso! Isso é o que há de pôr pra
diante! berrou Lourenço encolerizando-se. Beba já esse conhaque, menino!
— Deixa a criança!... suplicava a
mãe. — Olha como treme o pobrezinho!... o coração parece que lhe quer
saltar!...
E tomou-o ao colo.
— É melhor mesmo que leves daí esse
mono! Tira-mo dos olhos! Já estou vendo a boa lesma que isso há de dar! — Mães
ignorantes!...
Quando Janjão principiou a crescer,
o pai levava-o a toda a parte, dava-lhe charutos, obrigava-o a tomar cerveja
nos cafés. Foi, porém, uma campanha conseguir uma vez que o pequeno se
assentasse por dois minutos na sela de um cavalo em que Lourenço havia chegado
do seu passeio favorito a Botafogo.
Janjão, trêmulo da cabeça aos pés, agarrava-se com ambas as
mãos nas crinas do animal e berrava pela mãe de toda a força de que era capaz.
Tiveram de desmontá-lo para não o verem rebentar ali mesmo.
— Ora, como diabo havia de sair este
mono! lamentava o pai desesperado. — Ninguém acreditaria que aquele choramingas
era seu filho!
Não foram mais felizes com as primeiras tentativas de
natação ou as primeiras experiências de atirar ao alvo: Janjão, só com a vista
do mar ou a presença de um revólver, desatava a soluçar e a berrar pela mãe.
— Não! Isso agora hás de ter
paciência! resmungava Lourenço. — Tu ao menos ficarás sabendo dar um tiro! Sou
eu quem te assegura!
E, com muita sutileza, comprou para
o filho uma bela pistolinha de brinquedo que estalava fulminantes, e depois uma
outra, mais séria, que admitia carga de pólvora.
Janjão era, porém, cada vez mais refratário a tudo isso.
Preferia ficar a um canto da sala, entretido a vestir os seus bonecos ou a
fazer de cozinheiro. A mãe por esse tempo dava-lhe uma irmãzinha, que se ficou
chamando Amélia, e desde aí o maior encanto do menino era tomar conta do caixão
em que estava a pequerrucha toda envolvida em panos, e não consentir que as
moscas lhe pousassem na moleira.
Um dia, o pai, descendo ao quintal,
encontrou-o muito empenhado com o moleque a armar um oratório. Iam fazer
procissão: o andor e o santo estavam prontos; uma sombrinha enfeitada de franjas, faria as vezes de pálio.
Lourenço ficou desesperado, e com
dois pontapés reduziu tudo aquilo a frangalhos.
— Era o que lhe faltava! — que o
basbaque do filho, além de tudo, lhe saísse carola!
E quando subiu, disse
terminantemente à mulher que não admitia que o filho corrompesse o espírito com
as patacoadas daquela ordem.
— Se me constar, bradou ele ao
pequeno — que me tornas a fazer igrejinhas, racho-te de meio a meio, pedaço de
uma lesma! Ora vamos a ver! Cai noutra, e terás uma sapeca que te deixa a
paninhos de sal! Experimenta e verás!
Ele queria lá filhos devotos! Era só
o que lhe faltava! Era só! Aquele menino parecia o seu castigo! parecia a sua
maldição!
Aos doze anos Janjão entrou para o
internato de Pedro II. A princípio custou-lhe bastante compreender as lições,
mas, como era muito estudioso e muito paciente, os professores em breve o
elogiavam. Tinham-no em boa estima pelo seu espírito católico, pela docilidade
de seu gênio e pelo irrepreensível de sua conduta. João Coqueiro, de fato, fora
sempre um menino sossegado metido consigo, respeitador dos mestres e dos
preceitos estabelecidos, devoto e extremamente cuidadoso de seus livros e de
suas obrigações. Ninguém lhe ouvia palavra mais áspera ou gesto menos
conveniente, e às vezes entrava pela hora do recreio grudado aos livros sem os
querer deixar.
O pai via-o então com orgulho.
Profetizava já que ali estivesse um sábio.
Tirou distinção nos primeiros
exames. A mãe quase morre de alegria. Lourenço quis solenizar o acontecimento
com um banquete correlativo; mas as suas condições de fortuna já não eram as
mesmas; o dinheiro ia minguando de um modo assustador. Se lhe viesse a falhar
uma especulação, em que se havia lançado ultimamente, como recurso extremo —
Adeus! estaria tudo perdido! a ruína seria inevitável!
Fez-se a festa, não obstante, e o menino voltou aos estudos.
Mas Lourenço principiava a sofrer
gravemente de uma lesão cardíaca. Tinha ataques nervosos, sufocações, e caía,
de vez em quando, em fundas melancolias, durante as quais se enterrava no quarto,
sem poder suportar a presença de ninguém, muito frenético, cheio de apreensões,
com grande medo de morrer.
A mulher assustava-se: o marido não lhe parecia o mesmo homem.
Estava acabado; crescera-lhe o ventre, o nariz tomara uma vermelhidão gordurosa,
o cabelo encanecera totalmente, a cabeça despira-se, a pele do rosto fizera-se
opaca e suja. Comprazia-se agora ir à noite pelas igrejas, embrulhado na sua
sobrecasaca russa, apoiando-se à grossa bengala de cana-da-índia, os pés à
vontade em sapatos rasos. Ajoelhava-se a um canto da nave, em cima das pedras,
e aí permanecia longamente, a ouvir os sons lamentosos do órgão, com o rosto
descansado sobre as mãos que se cruzavam no castão da bengala.
Às vezes chorava.
Seu estômago irritado já não queria
os alimentos; era preciso enganá-lo de instante a instante com um pouco de
noz-vômica ou carbonato de magnésia. Não se lhe podia suportar o hálito.
Quando recebeu a notícia de que a
sua especulação falhara, estava no quarto, não conseguiu sair do lugar em que
se achava. Uma onda vermelha subira-lhe à cabeça: os objetos principiaram a
dançar-lhe em torno dos olhos; o chão fugia-lhe debaixo dos pés. Tentou ainda
dar alguns passos, mas cambaleou e caiu afinal sobre as pernas embambecidas —
como uma trouxa.
Morreu no dia seguinte.
A família ficou pobre. Foi preciso
vender o melhor de dois prédios que restavam, para saldar as dívidas do
defunto.
A viúva principiou então a tomar
encomendas de costura e de engomagem.
Isso, porém, não bastava; era
necessário, a todo o transe, que o menino continuasse nos estudos. Em tal
aperto, lembrou-se a pobre mãe de
admitir hóspedes; a casa que ficou tinha bastante cômodos e prestava-se
admiravelmente para a coisa.
Vieram os primeiros inquilinos;
arranjaram-se fregueses para o almoço e jantar, e o órfão prosseguiu nas suas
aulas.
Dentro de pouco tempo, o sobrado da
viúva de Lourenço era a mais estimada e popular casa de pensão do Rio de
Janeiro.
Foi nela que Janjão se fez homem. Aí
o viram bacharelar-se e aí se matriculou na Escola Central. A irmã respeitava-o
como a um pai.
Amélia, por conseguinte, cresceu em
uma — casa de pensão. Cresceu no meio da egoística indiferença de vários
hóspedes, vendo e ouvindo todos os dias novas caras e novas opiniões,
absorvendo o que apanhava da conversa dos caixeiros e estudantes
irresponsáveis; afeita a comer em mesa redonda, a sentir perto de si, ao seu
lado, na intimidade doméstica — homens estranhos, que não se preocupavam com
lhe aparecer em mangas de camisa, chinelas e peito nu.
Ainda assim deram-lhe mestres.
Aprendera a ler e a escrever, tocava já o seu bocado de piano e — se Deus não
mandasse o contrário — havia de ir muito mais longe.
Um novo desastre, veio, porém,
alterar todos esses planos: a viúva de Lourenço, depois de dois meses de cama,
sucumbiu a uma pneumonia.
João Coqueiro estava então no
segundo ano da Politécnica; Amélia a fazer-se mulher por um daqueles dias;
parentes — não os tinham... capitais — ainda menos... Como, pois, sustentar a
casa de pensão?... Oh! Era preciso despedir os hóspedes, alugar o prédio,
abandonar os estudos e obter um emprego.
Arranjou-o de fato — na estrada de
ferro de Pedro II. Coqueiro dissolveu logo a casa de pensão e foi mais a irmã
residir em companhia de uma francesa, muito antiga no Brasil, e que durante
longo tempo se mostrou amiga íntima da defunta.
Chamava-se Mme. Brizard.
Era mulher de cinqüenta anos, viúva
de um afamado hoteleiro, que lhe deixara muitas saudades e dúzia e meia de
apólices da dívida pública.
*
* *
Estava ainda bem
disposta, apesar da idade. Gorda, mas elegante com uns vestígios assaz
pronunciados de antiga formosura. Tinha os olhos azuis e os cabelos pretos, no
tipo peculiar ao meio-dia da França. Carne opulenta e quadril vigoroso.
Notava-se-lhe a boca, com um desses
lábios superiores que formam como duas camadas; o que aliás não obstava a que
Mme. Brizard tivesse um sorriso gracioso, e ainda tirasse partido da brancura
privilegiada de seus dentes. Mas a sua riqueza e a sua vaidade era o pescoço,
um grande pescoço pálido, cheio de ondulações macias a fartas.
Nascera em Marselha.
Depois de certa idade tornara-se
muito caída para o romantismo: desde então apreciava uma noite de luar; dava-se
à leitura prolongada de poetas tristes; fazia-se mais infeliz do que era de
fato, e contava a todos a sua história. — Um romance!
“Aos quinze anos saíra da família
pelo braço de um diplomata russo, que a idolatrava; — ia casada. O russo tresandava a genebra e recendia sarro de
cachimbo; ela abominou-o logo, abominou-o entre uma enorme corte de adoradores
fascinados por sua beleza e sequiosos por um de seus sorrisos; era, porém,
honesta: — conservou-se pura e fiel ao marido.”
Mme. Brizard quando chegava a este
ponto de romance, abaixava os olhos, levando lentamente o leque à boca para
disfarçar um suspiro.
“Enviuvou aos vinte anos; o russo
não lhe deixara filhos; — voltou à família. Aí lhe apareceu então Mr. Brizard,
homem de talento, político e escritor, grande republicano. A subida de Luís
Felipe ao trono atirou com ele ao Brasil, onde se fez hoteleiro.
Tiveram aqui três filhos; duas
mulheres e um homem. Este era o último e muito se distanciava das irmãs em
idade; quando lhe faltou o pai tinha apenas sete anos.
A filha mais velha representava a
glória da família: unira-se a um ministro plenipotenciário; a outra, coitada,
não casou mal, porém com a morte do marido e de um filhinho que lhe ficara,
tornou-se muito nervosa, histérica, e até meio pateta; agora vivia e mais o
irmão em companhia da mãe.”
*
* *
Nessas condições, a proposta de João Coqueiro pareceu
vantajosa a Mme. Brizard — Ele que trouxesse a irmã, a bela Amelita, e tudo se
arranjaria pelo melhor.
Juntaram-se. Mme. Brizard revelou
pronto interesse pelos dois hóspedes,
principalmente pelo “Coqueirinho”, como lhe chamavam em família. Fazia-se muito
carinhosa com ele, queria ser a sua “segunda mãe”, apreciava-lhe o talento, e
andava a mostrar os versos do rapaz a todas as pessoas que apareciam à noite,
para as torradas.
Reuniam-se em volta da mesa de
jantar; iam buscar o loto e jogavam. Coqueiro lia a um canto, ou ficava no
quarto, a cachimbar soturnamente, olhando o fumo e cismando na vida.
Mme. Brizard fazia perfeitamente as
honras da casa; dava-se por mulher de muito espírito e de uma educação
peregrina. Se havia então alguém que a visitasse pela primeira vez — a coisa ia
mais longe. Desenfiava os seus melhores ditos, contava, como por incidente, as
suas anedotas de mais efeito, falava gravemente de sua filha casada com o
ministro e exibia todos os seus conhecimentos literários.
Que os tinha, inegavelmente.
Lamartine lá estava no quarto dela, sobre o velador, encadernado com esmero.
Mas não desdenhava os poetas brasileiros e lia Camões. Uma sua amiga, muito
chegada, dizia que lhe ouvira páginas inéditas de um livro sobre o Brasil —
livro para fazer “sensação”!
Mme. Brizard confirmava este boato,
sorrindo com modéstia.
João Coqueiro, esse, não sorria, ao
contrário, parecia cada vez mais triste; passava tempos sem aparecer a ninguém,
depois que largava o trabalho. Por mais de uma vez houve quem lhe visse
lágrimas nos olhos.
A francesa, que se achava então no
seu período mais agudo de sentimentalismo, respeitava muito as melancolias do
pobre moço, falava a respeito dele com a voz baixa, cheia de um acatamento religioso.
Só lhe passava pelo quarto na pontinha dos pés, e, quando o triste hóspede saía
para o emprego, ela corria a lhe arrumar a mesa, com desvelo, ordenando os
livros, reunindo os papéis esparsos, lendo, sobre a pasta, os versos começados
na véspera.
Uma tarde, acharam-se os dois um
defronte do outro, assentados sozinhos na varanda da sala de jantar, que dava
para um lugar plantado de bananeiras. O sol descia lentamente no horizonte por
uma escadaria de fogo; as cigarras estridulavam no fundo da chácara; a noite ia
emanando.
Coqueiro olhava à toa para isso,
absorto e mudo; depois, suspirou e escondeu o rosto nas mãos, Mme. Brizard
passou-lhe um braço no ombro.
— Coqueirinho! que é isso?...
Queria saber o motivo daquelas
tristezas. Começou a interrogá-lo, com a voz untuosa, cheia de amor.
Ele então falou abertamente de suas
aspirações, de seus estudos interrompidos, de sua incompatibilidade com o
emprego que exercia.
— Sou muito caipora! exclamava. —
Sou muito caipora!
E chorava.
Mme. Brizard procurou consolá-lo,
falou do futuro, lembrou a idade de Coqueiro e aconselhou-o a que não
desanimasse.
Foi daí que lhes veio a idéia do
casamento.
Mme. Brizard era muito mais velha do
que ele, mas talvez por isso mesmo, fosse a esposa que melhor lhe convinha.
— Ah! ela estava no caso de fazê-lo
feliz, porque o amava! Oh! se o amava! Seria talvez uma loucura; talvez viessem
a censurá-la; — ela mesma não sabia explicar o que aquilo era, como aquilo
acontecera! Mas dava a sua palavra de honra, jurava pela memória de seu pai —
em como nunca sentira por ninguém o que então sentia por Coqueiro! Ah! sabia
perfeitamente que bem poucos compreenderiam a sua paixão! Sabia que muitos
haveriam de ridicularizá-la, haveriam de escarnecê-la; ela própria, até ali,
nunca imaginara que se pudesse amar tanto!... Durante a sua vida nunca se
sentiu tão possuída por uma idéia, tão escrava, tão vencida, como naquele
instante! Contudo, se desejava o casamento não era decerto pelo fato de possuir
um homem. — Oh! não! — deixava isso para as almas grosseiras... e Coqueiro bem
sabia o quanto seu coração tinha de espiritual e de puro!... Desejava aquele
enlace para licitamente poder aplicar todo o seu esforço, toda a sua coragem,
todas as suas diligências, na conquista de um bom futuro para o esposo. Queria
casar-se, porque entendia que isso se tornava necessário à felicidade de
Coqueiro. Toda a sua vida, todos os seus recursos, dela, seriam empregados para
o mesmo fim: — facultar ao marido os meios de estudar, os meios de crescer,
desenvolver-se, luzir. Alcançasse ele um nome, uma posição brilhante, uma
atitude gloriosa, e tudo o mais lhe seria indiferente. Que lhe importava o
resto?... Se ela, porventura, fosse esquecida fosse desprezada, se viesse mesmo
a falecer dali a pouco tempo — que valia tudo isso, se o objeto de seus
extremos era ditoso e vivia cercado de admiração e de aplauso?...
E Mme. Brizard, depois de falar na
posteridade e depois de convencer ao Coqueiro de que aquele casamento era um
dever sagrado, pois que não realizá-lo equivalia a privar o Brasil de uma de
suas glórias futuras e ao século um de seus vultos talvez mais grandiosos, Mme.
Brizard, depois disso, entrou nos pormenores de seu plano.
— Uma vez casados, ressuscitariam a
antiga casa de pensão. Ela dispunha de algum dinheiro; o outro dispunha de um
prédio: — era restaurá-lo e dar começo à vida! Coqueiro abandonaria o emprego e
voltava de novo aos estudos; ela encarregava-se da gerência da casa e, nesse
ponto, deixando de parte a modéstia, supunha-se mais habilitada que ninguém.
Até já tinha projetos, já tinha as
suas idéias sobre a instalação da casa!... Sentia-se disposta a trabalhar por
vinte!... Coqueiro havia de ver! Seu estabelecimento seria uma casa de pensão
modelo! Coisa para dar “uma fortuna e render à Amelinha um bom casamento. — Um
casamentão!” Ah! Ela, a francesa, sabia perfeitamente como tudo isso se
arranjava no Brasil.
E concluiu, jurando ainda uma vez,
que — para si não queria nada! que só desejava a felicidade do Coqueiro e de
sua irmã, dele.
Era assim que entendia o amor!
Três meses depois estavam casados.
Boquejou-se alegremente sobre isso
na Escola Politécnica. Os amigos de Coqueiro acharam ocasião de rir, e a tal
mulher do ministro plenipotenciário, a glória da família, escreveu à mãe uma
carta carregada de recriminações, declarando que nunca lhe perdoaria semelhante
loucura. — Loucura de que para o futuro haveria Mme. Brizard de se arrepender
muito seriamente.
Os recém-casados fecharam, porém,
ouvidos a tais palavras e cuidaram de ir pondo em prática os seus novos planos
de vida.
Meteram mãos à obra. Coqueiro deixou
o emprego, contratou um empreiteiro para restaurar o seu velho prédio da Rua do
Resende, e a casa de pensão de Mme. Brizard (como teimosamente insistiam em lhe
chamar a mulher), surgiu ameaçadora, escancarando para a população do Rio de
Janeiro a sua boca de monstro.
VI
Foi justamente três anos depois
disso que Amâncio chegou ao Rio de Janeiro.
A casa de Mme. Brizard estava então
no seu apogeu; de todos os lados choviam hóspedes, entre os quais se notavam
pessoas de importância. Pelo tempo das câmaras reuniam-se ali alguns deputados
da província, homens sérios, em geral gordos, o ar discreto, um sorriso
infantil à superfície dos lábios e um fraseado imaginoso, cheio de poesia. Fazia-se
política no salão, depois da comida, em chinelas de tapete, ao remansado soprar
do fumo da Bahia.
A dona da casa gozava para eles de
muita consideração; só um ou outro, mais atirado à pilhéria, ousava atribuir a
algum dos seus “nobres colegas” os sorriso de Mme. Brizard.
Outros entusiasmavam-se por ela.
— Não! diziam. — Aquela mulher devia
ter sido um pancadão no seu tempo! Tudo que era pescoço e ombros ainda se podia
ver! Quem dera a muitas novas um colo daqueles!...
De uma feita, um deputado de Minas,
criatura baixa, socada, rosto curto, poucas palavras e muita barba,
empalmou-lhe a cintura, quando a pilhou sozinha na sala de jantar.
A francesa abaixou os olhos,
afastou-se dignamente e foi logo dizer ao marido que era necessário por aquele
homem na rua.
— O Moura! Por quê?
— Não te posso dizer por que... mas
afianço que o Moura não nos convém!...
— Fez-te alguma coisa?
— Faltou-me ao respeito!
— Hein?!
— Agarrou-me a cintura e ter-me-ia
beijado o pescoço, se eu lho permitisse.
Esta última parte da queixa fazia
mais uma honra ao espírito inventivo de Mme. Brizard do que ao seu espírito de
verdade; ela, porém, não resistia ao gostinho de falar no seu rico pescoço
sempre que se oferecia ocasião.
E o Moura teria posto os ossos na
rua, se a própria Mme. Brizard não intercedesse por ele no dia seguinte,
alegando que o pobre homem havia na véspera carregado um pouco mais no virgem.
Também foi só. Nunca mais, que
constasse, palpitou ali sombra de escândalo, e a famosa casa de pensão
continuava a sustentar a melhor aparência deste mundo. Até se dizia à boca
cheia que, por mais de uma vez, já se hospedaram verdadeiras celebridades, e
eram todos de acordo em que no Rio de Janeiro ninguém fazia espetada de camarão
tão saborosa como as da simpática irmãzinha do João Coqueiro, a Amelita. Uma
verdadeira especialidade. Constava até que vinha gente de longe ao cheiro
daqueles camarões.
A casa tinha dois andares e uma boa
chácara no fundo. O salão de visitas era no primeiro. — Mobília antiga, um
tanto mesclada; ao centro, grande lustre de cristal, coberto de filó amarelo.
Três largas janelas de sacada, guarnecidas de cortinas brancas, davam para a
rua; do lado oposto, um enorme espelho de moldura dourada e gasta, inclinava-se
pomposamente sobre um sofá de molas; em uma das paredes laterais, um detestável
retrato a óleo de Mme. Brizard, vinte anos mais moça, olhava sorrindo para um
velho piano, que lhe ficava fronteiro; por cima dos consolos vasos bonitos de
louça da Índia, cheios de areia até à boca.
Imediato à sala, com uma janela
igual àquelas outras, havia um gabinete, comprido e muito estreito, onde o
Coqueiro tinha a sua biblioteca e a sua banca de estudos. Via-se aí uma pasta
cheia de papéis, um tinteiro e um depósito de fumo, representando o busto de um
barbadinho; ao fundo, uma conversadeira de palhinha, encostada à parede, por
debaixo de um pequeno caixilho de madeira com o retrato de Vítor Hugo em
gravura.
Seguia-se o aposento de Mme. Brizard
e mais do marido, onde também dormia o menino, o César, que teria então doze
anos; logo depois estava o quarto de Amelinha e da tal viúva histérica, Léonie,
a quem a família só tratava por “Nini”.
Vinha depois a grande sala de
jantar, forrada de papel alegre; nas paredes distanciavam-se pequenos cromos amarelados,
representando marujos de chapéu de palha, tomando genebra, e assuntos de
conventos — frades muito nédios e vermelhos refestelados à mesa ou a brincarem
com mulheres suspeitas. Um guarda-louça expunha, por detrás das vidraças, os
aparelhos de porcelana e os cristais; defronte — um aparador cheio de garrafas,
ao lado de outro em que estavam os moringues.
Ainda havia um corredor, a despensa,
a cozinha, uma escada que conduzia à chácara, outra ao segundo andar e mais
três alcovas para hóspedes, todas do mesmo tamanho e numeradas.
A numeração dos quartos principiava
aí nesses três para continuar em cima. Em cima é que estava o grande recurso da
casa, porque Mme. Brizard dividira todo o segundo pavimento em oito cubículos
iguais, ficando quatro de cada lado e o corredor no centro. Os da frente davam
janelas para a rua e os do fundo para a chácara. As paredes divisórias eram de
madeira e forradas de papel nacional.
João Coqueiro, quando saiu do Hotel
dos Príncipes na manhã do almoço, ia preocupado; Simões, que caminhava à
sua esquerda um pouco sacudido pelos vinhos, em vão tentou, repetidas vezes,
puxá-lo à palestra; o outro respondia apenas por monossílabos e, na primeira
esquina, despediu-se e correu logo para casa.
Ao chegar foi direto à mulher, dizendo-lhe
em voz baixa, antes de mais nada:
— Olha cá, Loló...
E encaminhou-se para o quarto. Mme.
Brizard largou o que tinha entre as mãos e seguiu-o atentamente.
— Sabes? disse ele, sem transição,
assentando-se ao rebordo da cama. — É preciso arranjarmos cômodo para um rapaz
que há de vir por aí domingo.
— Um rapaz! Mas tu sabes
perfeitamente que os quartos acham-se todos ocupados. Se tivesses prevenido...
o n.º 2 ainda ontem estava vazio... Mas quem é?
— Há de se arranjar, seja lá como
for! disse o Coqueiro.
— Mas quem é?... insistiu Mme.
Brizard.
— É um achado precioso! Ainda não há
dois meses que chegou do Norte, anda às apalpadelas! Estivemos a conversar por
muito tempo: — é filho único e tem a herdar uma fortuna! Ah! Não imaginas: só
pela morte da avó, que é muito velha, creio que a coisa vai para além de
quatrocentos contos!...
Mme. Brizard escutava, sem despregar
os olhos de um ponto, os pés cruzados e com uma das mãos apoiando-se no
espaldar da cama.
— Ora, continuou o outro gravemente.
— Nós temos de pensar no futuro de Amelinha... ela entrou já nos vinte e
três!... se não abrirmos os olhos... adeus casamento!
— Mas daí... perguntou a mulher,
fugindo a participar da confiança que o marido revelava naquele plano.
— Daí — é que tenho cá um palpite!
explicou ele. — Não conheces o Amâncio!... A gente leva-o para onde quiser!...
Um simplório, mas o que se pode chamar um simplório.
Mme. Brizard fez um gesto de dúvida.
— Afianço-te, volveu Coqueiro — que,
se o metermos em casa e se conduzirmos o negócio com um certo jeito, não lhe
dou três meses de solteiro!
A francesa torcia e destorcia em
silêncio uma de suas madeixas de cabelo preto, que lhe caíam na testa.
— E ele terá fraco pelas mulheres?
perguntou afinal.
O estudante respondeu com um gesto
de convicção, e acrescentou:
— Negócio decidido! A questão é
arranjar-lhe o cômodo, e já! Tu — fala com franqueza à Amelinha; a mim não fica
bem... Olha, até me lembrou dar-lhe o gabinete... Hein? Por pouco tempo... é só
enquanto não se desocupa algum dos quartos...
— O gabinete?... mas tão
atravancado... e tão apertadinho!...
— Dá-se-lhe um jeito! Arranja-se!
contanto que o nosso homem não deixe de vir; porque, Loló, lembra-te de que é
“um filho único, com muito dinheiro e tolo!” Hoje não se encontra disso a cada
passo!... Se perdermos a ocasião, duvido que apareça outra tão boa! Enfim,
resumiu ele — eu já fiz o que tinha a fazer; o resto é contigo! Fala à
Amelinha, mas fala-lhe com jeito, tu sabes! — pinta-lhe a coisa como ela é!...
e não te esqueça de arranjar o gabinete. Até logo, tenho ainda que ir à rua,
mas volto daqui a pouco.
Nessa mesma tarde Mme. Brizard
entendeu-se com a cunhada. Falou-lhe sutilmente no “futuro”, disse-lhe que “uma
menina pobre, fosse quanto fosse bonita, só com muita habilidade e alguma
esperteza poderia apanhar um marido rico”.
E tocando-lhe intencionalmente no
queixo:
— Anda lá, minha sonsa, que sabes
disso tão bem como eu!...
Amélia riu, concentrou-se um instante e prometeu fazer o que
estivesse no seu alcance, para agradar ao tal sujeitinho.
Ardia, com efeito, por achar marido,
por se tornar dona de casa. A posição subordinada de menina solteira não se
compadecia com a sua idade e com as desenvolturas do seu espírito. Graças ao
meio em que se desenvolveu, sabia perfeitamente o que era pão e o que era
queijo; por conseguinte as precauções e as reservas, que o irmão tomava para
com ela, faziam-na sorrir.
Às vezes tinha vontade de acabar com
isso. “Que diabo significavam tais cautelas?... Se a supunham uma toleirona,
enganavam-se — ela era muito capaz de os enfiar a todos pelo ouvido de uma
agulha!”
— Agora, por exemplo, neste caso do
tal Amâncio, que custava ao Coqueiro explicar-se com ela francamente?... Por
que razão, se ele precisava de seu auxílio, não a procurou e não lhe disse às
claras: “Fulana, domingo vem aqui um rapaz, nestas e nestas condições: vê se o
cativas, porque ali está o noivo que te convém!” Mas, não senhor! — meteu-se
nas encolhas e entregou tudo nas mãos da mulher!
— Ora! disse consigo a rapariga. —
Isto até nem sei que me parece! Ou bem que somos, ou bem que não somos!... Se
Janjão queria alguma coisa de mim, era falar com franqueza e deixar-se de
recadinhos por detrás da cortina!
E Amélia, quanto mais refletia no
caso, tanto mais se revoltava contra a reserva do irmão.
— Ele já devia conhecê-la melhor!
pelo menos já devia saber que aquela que ali estava era incapaz de cair em
qualquer asneira; aquela que não “ dava ponto sem nó”. Outra, que fosse, quanto
mais — ela, que conhecia os homens, como quem conhece a palma das próprias
mãos! — Ela, que vira de perto, com os seus olhos de virgem, toda a sorte de
tipos! — ela, que lhes conhecia as manhas, que sabia das lábias empregadas
pelos velhacos para obter o que desejam e o modo pelo qual se portam depois de
servidos! — Ela! tinha graça!
— Ela, que até ali dera as melhores
provas de sagacidade e de esperteza; já “convencendo” tal freguês remisso que
não queria pagar, nem a mão de Deus Padre, o aluguel do quarto pelo preço
cobrado; já respondendo a tal credor, que em tal época, veio receber tal conta;
já sofismando tal compromisso; já resolvendo tal aperto, uma vez em que nem a
própria Mme. Brizard sabia que fazer! E ainda a suporiam criança?... ainda
teriam medo de qualquer asneira de sua parte?... Pois então que se lembrassem
da questão do Pereirinha!
Pereirinha foi um dos primeiros
hóspedes de Coqueiro. Rapaz bonito, perfumado, muito prosa. Amélia
representava para ele a mesma inocência em pessoa, só lhe falava de olhos
baixos, voz sumida, o ar todo candura e vexame. Pereirinha jurava-lhe uma
paixão sem bordas, fazia-lhe versos, tocava-lhe nos pés por baixo da mesa, e,
depois do jantar, quando os mais se alheavam no egoísmo da saciedade, ele a
fitava tristemente, pedindo, com os olhos fosse lá o que fosse. Pois bem, ela a
tudo isso correspondia com muito agrado, submetia-se resignadamente a todos
esses requisitos do namoro vulgar, mas... um belo dia em que o pedaço de asno
do Pereirinha quis ir adiante, Amélia aconselhou-o sorrindo a que primeiro a
fosse pedir em casamento ao irmão.
E, quando se convenceu de que o tipo
não queria casar, disse-lhe abertamente: “Ora, meu amigo, outro ofício!”
E Coqueiro sabia de tudo isso, tão
bem como a própria Amélia — para que, pois, aqueles escrúpulos ridículo e
amoladores?...
*
* *
Só à noite, à costumada palestra em torno da mesa de jantar,
lembraram-se de que o dia seguinte era de grande gala.
— Ó diabo! considerou Coqueiro. — E
eu que podia ter dito ao Amâncio para vir amanhã! Escusávamos de esperar até
domingo. — Ora, senhores! onde diabo tinha eu a cabeça!...
— Queres saber de uma coisa? disse,
tomando a mulher de parte. — Vai tu e mais Amelinha arranjar o gabinete, que eu
escrevo uma carta ao nosso homem; pode ser que amanhã mesmo o tenhamos por cá.
Anda, vai! O segredo das grandes coisas está às vezes nestas pequenas
deliberações!
E enquanto Mme. Brizard aprontava
com Amélia o gabinete, escreveu ele a carta que Amâncio encontrou sobre a
cômoda.
Não descansaram mais um instante.
Desde pela manhã do dia seguinte andava a casa em grande alvoroço. Foi preciso
varrer, escovar, remover do gabinete os móveis que o atravancavam. Preparou-se
uma bela caminha, coberta de lençóis claros e cheirosos; estendeu-se um tapete
no chão; colocou-se a um canto o lavatório, encheu-se o jarro que ficou dentro
da bacia, ao lado da toalha. E feito isto, puseram-se todos à espera de
Amâncio.
Ele, até aquelas horas, não havia
declarado por escrito se iria ou não, logo — era provável que fosse.
E com efeito, pela volta do
meio-dia, um tílburi parou à porta, e Amâncio, muito intrigado com a numeração
das casas, entrou no corredor, a olhar para todos os lados.
Um moleque, que ficara de alcatéia à
espera dele correu logo ao primeiro andar, gritando que “o moço já estava aí”.
— Cala a boca, diabo! respondeu Mme.
Brizard em voz abafada e discreta.
Coqueiro ergueu-se prontamente do
lugar onde se achava e atirou-se com espalhafato para o corredor, alegre e
expansivo, como se recebera, depois de longa ausência, um velho amigo da
infância.
— Bravo! exclamava, sacudindo os
braços e correndo ao encontro de Amâncio. — Bravo! Assim é que entendo os
amigos! Não te perdoaria se faltasses!
E com muita festa, a apressá-lo:
— Vem entrando para a sala de
jantar! Estás em tua casa! Entra! Entra!
Amâncio deixava-se conduzir, em
silêncio. Já não tinha o mesmo tipo mal ajeitado com que se apresentara ao
Campos; agora, um terno de casimira cinzenta, comprado nessa mesma manhã a um
alfaiate da Rua do Ouvidor, dava-lhe ares domingueiros de janotismo. Vinha de
barba feita, as unhas limpas, os dentes cintilantes, o cabelo dividido ao meio,
formando sobre a testa duas grandes pastas lustrosas e do feitio de uma
borboleta de asas abertas. Os olhos não denunciavam os incômodos da véspera, e
de todo ele respirava um cheiro ativo de sândalo.
— Estimei bem que me escrevesses...
disse atravessando o corredor, ao lado do Coqueiro. Não tinha para onde ir
hoje. Campos está de passeio com a família lá para o tal Jardim Botânico.
— Pois eu estimei ainda mais que
viesses. Entra!
Penetraram na sala de jantar. Estava
tudo muito bem arrumado e muito limpo; não se podia desejar melhor aspecto de
felicidade caseira; em tudo — a mesma aparência austera e calma de uma velha
paz inquebrantável e honesta. Mme. Brizard, assentada à cabeceira da mesa,
parecia ler atentamente um livro que tinha aberto defronte dos olhos; mais
adiante trabalhava Amelinha em uma máquina de costura, a cabeça vergada, os
olhos baixos, numa expressão tranqüila de inocência.
Logo que Amâncio apareceu na
varanda, Mme. Brizard desviou os olhos do livro, deixou cair as lunetas do
nariz e foi recebê-lo solicitamente; a outra limitou-se a cumprimentá-lo com um
modesto e gracioso movimento de cabeça.
— Dr. Amâncio de Vasconcelos! gritou
o Coqueiro, empurrando o colega para junto das senhoras. E acrescentou,
designando-as: — Minha mulher e minha irmã...O amigo já sabe que são duas
criadas que aqui tem às suas ordens!
Amâncio agradecia, desfazendo-se em
reverências e apertando as mãos de ambas, todo vergado para a frente, as faces
incendiadas pela comoção daquela primeira visita.
— Põe-te à vontade, filho! disse-lhe
Coqueiro, com ar quase de censura. — Olha uma cadeira. Senta-te!
E tirando-lhe a bengala e o chapéu
das mãos: — Aqui estás em tua casa! Minha gente não é de cerimônias!
Entretanto Mme. Brizard o tomava a
si com perguntas: — Há quanto tempo havia chegado; de que província era filho;
se tinha saudades da família; se gostava do Rio de Janeiro; que tal achava as
fluminenses, e se já estava embeiçado por alguma?
E vinham os risos exagerados e sem
pretexto, de quando se deseja agradar visitas.
O provinciano respondia a tudo,
inclinando a cabeça, procurando armar bem a frase e fazendo esforços para se
mostrar de boa educação. Ia-lhe já fugindo o primitivo acanhamento e as
palavras acudiam-lhe à ponta da língua, sonoras e fáceis.
— Não tenho desgostado da Corte,
dizia a brincar com a sua medalha da corrente — mas, confesso, esperava
melhor... Lá de fora, sabe V. Excia? a coisa parece outra. Fala-se tanto do
Rio!... Pintam-no tão grande, tão bonito, que o pobre provinciano, ao chegar
aqui, logo sofre uma terrível decepção!... Pelo menos comigo foi assim!
— O Sr. Vasconcelos já visitou os
arrabaldes?... perguntou Mme. Brizard muito delicadamente.
— Ainda não, minha senhora. Apenas
fui a Botafogo, de passagem, para entregar uma carta; mas, tenciono
percorrê-los, todos, na primeira ocasião.
E Amâncio olhava a espaços Amélia,
que parecia muito preocupada com o trabalho.
— Pois suspenda esse juízo a
respeito do Rio, até que conheça os arrabaldes, acrescentou a dona da casa. —
Só por eles se poderá julgar o quanto é bela e grandiosa esta cidade! Oh! A
natureza do Brasil! não há coisa nenhuma que se lhe possa comparar!...
E fitando-o, depois de um gesto de
entusiasmo:
— Para um espírito contemplativo e
apaixonado, essa esplêndida natureza vale por todas as maravilhas da velha
Europa!
— V. Excia. parece gostar muito do
Brasil...
— Habituei-me a isso com o meu
segundo marido... ele era louco por este país! Quantas vezes, depois que caiu
doente e que os médicos lhe recomendaram que viajasse, quantas vezes não o
aconselhei a que liquidasse aqui os seus negócios e fôssemos viver para a
Europa... Já não havia sombra de perseguição política (porque foi uma
perseguição política que o atirou no Brasil), não havia razões, por
conseguinte, para não voltar à pátria, não havia razões para se deixar morrer
aqui, como morreu!... Pois bem: sabe o senhor o que ele me respondia sempre?
Dizia-me:“Bebê.” (Era assim que me tratava). “Bebê, compreendes um homem
apaixonado por uma mulher, a ponto de não a poder deixar um só instante?
compreendes um escravo, um cão?... assim sou eu por esta natureza. Não a posso
abandonar! — estou apaixonado, louco!” Entretanto, — veja o Dr.! — Hipólito,
aqui nunca foi devidamente apreciado e compreendido; nunca recebeu a mais
insignificante prova de gratidão do governo deste país, que ele idolatrava
daquele modo! Trabalhou muito para o Brasil, e de graça! Estão aí as empresas,
os jornais, as sociedades que fundou! Pois o governo — nem uma palavra, nem uma
consideração, nem um “muito obrigado!”. Se o pobre homem não tivesse posto de
parte algum dinheiro, ficava eu na miséria, perfeitamente na miséria!
Amâncio principiava a desconfiar que
aquela francesa era nada menos que um formidável “cacete”.
— Uma verdadeira paixão!... insistiu
ela. — Uma paixão que o prendia aqui! porque, senhores, Hipólito, se quisesse,
podia representar um invejável papel na Europa! Tinha lá o seu lugar seguro,
e...
Foi interrompida pelo César que
entrara de carreira mas estacara de repente ao dar com Amâncio. Coqueiro havia
se afastado para mandar servir alguma coisa.
— Este é o meu César, meu último
filho, elucidou Mme. Brizard, e gritou logo: — Vem cá, César! Vem falar com
este moço!
César aproximou-se, vagarosamente,
com o silêncio de quem observa um estranho.
— Lindo menino! considerou Amâncio,
puxando-o para junto de si.
— E não calcula o senhor que
talento! afirmou a mãe, em voz baixa e grave, estendendo a cabeça para o lado
da visita: — Uma coisa extraordinária!
— Já fez uma poesia! Acrescentou
João Coqueiro que, nessa ocasião, junto ao aparador, enchia copos de cerveja.
— Mas, coitado! prosseguiu Mme.
Brizard — não se pode puxar por ele; sofre muito do peito! O médico recomendou
que não o fatigassem por ora; é preciso esperar que ele se desenvolva mais um
pouco.
— É pena! disse Amâncio com
tristeza, afagando a cabeça de César.
— Nunca vi uma criatura para
aprender as coisas com tanta facilidade! Nada vê, nada ouve que não decore
logo! que não repita — tintim por tintim!
— Sim?... perguntou Amâncio, com um
gesto cerimonioso de pasmo.
— E então para a música?... Aprendeu
a escala em um dia! E já toca variações ao piano... tudo de ouvido!
— É admirável! repetia Amâncio, para
dizer alguma coisa. Deve estar muito adiantado nos estudos!...
— Ah! estaria decerto, se pudesse
estudar, mas, coitado, ainda não sabe ler!
— Ah! fez Amâncio, sem achar uma
palavra.
— Mas, também, quando principiar...
— Irá longe! concluiu Amâncio,
satisfeito por ter enfim uma frase. — Deve ir muito longe!
E afiançava que, pela fisionomia de
César, logo se lhe adivinhava a inteligência.
— Esta fronte não engana! Dizia a
suspender-lhe o cabelo da testa. — E é travesso?...
Mme. Brizard soltou uma exclamação:
— Não lhe falasse nisso! Só ela sabia o capetinha que ali estava!
César abaixou o rosto com uma
risada, e Amâncio declarou que “a travessura era própria daquela idade!”.
E, porque o moleque se aproximava
com uma bandeja na mão, cheia de copos, ergueu-se para oferecer um a Mme.
Brizard e outro a Amélia.
— Muito agradecida, disse esta,
sorrindo. — Sou um pouco nervosa; a cerveja faz-me mal.
— Ah! V. Excia. é nervosa?
— Um pouco. E quem neste mundo não
sofre mais ou menos dos nervos?...
E riu de todo, mostrando a sua
dentadura provocadora.
Amâncio considerou intimamente que a
achava deliciosa. — Um mimo!
E, de fato, Amélia nesse dia estava
encantadora. Vestia fustão branco, sarapintado de pequenas flores cor-de-rosa.
O cabelo, denso e castanho, prendia-se-lhe no toutiço por um laço de seda azul,
formando um grande molho flutuante, que lhe caía elegantemente sobre as costas.
O vestido curto, muito cosido ao corpo, eluvava-lhe as formas, dando-lhe um ar
esperto de menina que volta do colégio a passar férias com a família.
Era muito bem feita de quadris e de
ombros. Espartilhada, como estava naquele momento, a volta enérgica da cintura
e a suave protuberância dos seios, produziam nos sentidos de quem a contemplava
de perto uma deliciosa impressão artística.
Sentia-se-lhe dentro das mangas do
vestido a trêmula carnadura dos braços; e os pulsos apareciam nus, muito
brancos, chamalotados de veiazinhas sutis, que se prolongavam serpeando. Tinhas
as mãos finas e bem tratadas, os dedos longos e roliços, a palma cor-de-rosa e
as unhas curvas como o bico de um papagaio.
Sem ser verdadeiramente bonita de
rosto, era muito simpática e graciosa. Tez macia, de uma palidez fresca de
camélia; olhos escuros, um pouco preguiçosos, bem guarnecidos e penetrantes;
nariz curto, um nadinha arrebitado, beiços polpudos e viçosos, à maneira de uma
fruta que provoca o apetite e dá vontade de morder. Usava o cabelo cofiado em
franjas sobre a testa, e, quando queria ver ao longe, tinha de costume apertar
as pálpebras e abrir ligeiramente a boca.
Amâncio, bebendo aos goles
distraídos a sua cerveja nacional, via e sentia tudo isso, e, sem perceber,
deixava-se tomar das graças de Amélia. Já lhe preava a carne o mordente calor
daquele corpo; já o invadiam o perfume sombroso daquele cabelo e a luz
embriagadora daqueles olhos; já o enleava e cingia a doce sensibilidade
elástica daquela voz, quebrada, curva, cheia de ondulações, como a cauda crespa
de uma cobra.
E, enquanto palavreava abstraído com
Mme. Brizard e com Coqueiro, percebia que alguma coisa se apoderava dele, que
alguma coisa lhe penetrava familiarmente pelos sentidos e aí se derramava e
distendia, à semelhança de um polvo que alonga sensualmente os seus langorosos
tentáculos. E, sempre dominado pelos encantos da rapariga, alheava-se de tudo
que não fosse ela; queria ouvir o que lhe diziam os outros, prestar-lhes
atenção, mas o pensamento libertava-se à força e corria a lançar-se aos pés de
Amélia, procurando enroscar-se por ela, à feição do tênue vapor do incenso,
quando vai subindo e espiralando, abraçado a uma coluna de mármore.
Coqueiro fazia não dar por isso e,
ao topar com os olhos os da mulher, entre eles corria um raio de satisfação,
mais ligeiro que um telegrama.
Amâncio, entretanto, quase nada conversou
com Amélia; apenas trocaram palavras frias de assuntos sem interesse. Mas seus
olhares também se encontravam no ar, e logo se entrelaçavam, prendiam-se e
confundiam-se no calor do mesmo desejo.
Naquela mulher havia
incontestavelmente o que quer que fosse, difícil de determinar, que não
obstante, se entranhava pela gente e, uma vez dentro, crescia e alastrava. O
seu modo de falar, as reticências de seus sorrisos, o langor púdico e ao mesmo
tempo voluptuoso de seus olhos que espiavam, inquietos, através do franjado das
pestanas; a doçura dos seus movimentos ofídicos e preguiçosos, o cheiro de seu
corpo; tudo que vinha dela zumbia em torno dos sentidos, como uma revoada de
cantáridas.
Vinham-lhe preocupações. Começava a imaginar como seria a
sua existência naquela casa, se ele, porventura, resolvesse a mudança;
calculava situações; encontros inesperados com Amélia nos corredores desertos;
manhãs frias, de chuva, em que fosse preciso gazear as aulas, e deixar-se ficar
ali, a “prosar” naquela varanda, ao
lado dela, a encher o tempo, a dizer
“tolices”.
— Que tal seria tudo isso?... Seria
tão bom que valera a pena suportar às caceteações de Mme. Brizard e sofrer a
convivência do tal Coqueiro?... Seria tão bom que merecera a renúncia de sua
liberdade, tão sacrificada ali quanto em casa do Campos? Não! não valia a
pena!... Mas... Amélia?... quem sabe lá o que daria de si aquele
ladrãozinho?...
E pensando deste modo, ergueu-se
disposto a acompanhar Coqueiro, que insistia em lhe mostrar a casa.
Principiaram pela chácara.
— Olha. Isto aqui é como vês!...
dizia o proprietário. — Boa sombra, caramanchões de maracujá, flores,
sossego!... Bom lugar para estudo! E vai até o fundo. Vem ver!
Amâncio obedecia calado.
— Parece que se está na roça!...
acrescentou o outro. — De manhã é um chilrear de passarinhos, que até aborrece!
Quando aqui não houver fresco, não o encontrarás também em parte alguma! Cá
está o terraço. — Sobe!
Subiram três degraus de pedra e cal.
— Vês?!... exclamou Coqueiro,
parando em meio do pequeno quadrado de velhos tijolos. E, depois com as pernas
abertas e um braço estendido:
— Creio que não se pode desejar
melhor!
Desceram, em seguida, para visitar o
banheiro, o tanque, o repuxo e outras comodidades que havia no quintal, e a
cada uma dessas coisas — novas exclamações e novos elogios.
Subiram outra vez ao primeiro andar,
pela cozinha. Um preto, de avental e boné de linho branco, à moda dos
cozinheiros franceses, trabalhava ao fogão. Coqueiro exigiu que o amigo olhasse
para aquele asseio; atentasse para a nitidez das caçarolas de metal areado,
para a limpeza das panelas, para a fartura de água na pia.
— A Madame, dizia ele a
rir-se, com ar interessado de quem deseja convencer — a Madame traz isto
num brinco! Pode-se comer no chão!
E continuaram a revista da casa.
Amâncio, porém, ia distraído, tinha a cabeça cheia de Amélia.
— Que dentes! pensava — e que
cintura! que olhos!...
— É excelente! segredou-lhe
Coqueiro, pondo mistério na voz. — Um serviço admirável!
— Hein?! exclamou o provinciano,
voltando-se rapidamente para o colega.
— Cozinheiros daquela ordem
encontram-se poucos no Rio! respondeu este ainda em segredo.
— Ah! o cozinheiro... disse Amâncio.
— Divino! acrescentou o outro.
E, mudando logo de tom:
— Cá está a despensa. Compramos tudo
em porção do mais caro, mas também podes ver a fazenda! Tudo de primeira! Ah!
Eu cá sou assim — mostro! Meus hóspedes não podem se queixar!
E destapava vivamente a lata das
farinhas e dos feijões, mostrava o vinho engarrafado em casa, as mantas de
carne-seca ressumbrando sal, o arroz, o café, e o resto.
— Tudo de primeira! repetia com
entonação mercantil, a passar ao colega um punhado de feijões. — Tudo de
primeira!
—É exato, resmungo Amâncio, sem ver.
Isto agora são quartos de hóspedes,
enunciou Coqueiro seguindo adiante. — Aqui embaixo só temos três. Neste, disse
mostrando o n.º 1, está Dr. Tavares, um advogado de mão-cheia; caráter muito
sério!
No segundo declarou que morava o
Fontes:
— Não era mau sujeito, coitado! Fora infeliz nos negócios: quebrara havia
dois anos e ainda não tinha conseguido levantar a cabeça.
E abafando a voz:
— Dizem que ficou arranjado... não
sei!... Paga pontualmente as suas despesas, mas é um “unha-de-fome”, regateia
muito, chora — vintém por vintém — o dinheiro que lhe sai das mãos! Está sempre
com uma cara muito agoniada, sempre se queixando. E agora, vão ver: — furão
como ele só; especula com tudo; tem o quarto cheio de fazendas, fitas e tetéias
de armarinho; vende essas miudezas pelas casas particulares, e dizem que faz
negócio. A mulher, uma francesa coxa, é empregada na Notre Dame e só vem
a casa para dormir.
E, indicando o n.º 3.
— Aqui é o Piloto.
— Que Piloto? perguntou logo
Amâncio.
— O Piloto, homem! Aquele repórter
da Gazeta!
Amâncio não conhecia.
— Ora quem não conhece o Piloto! um
rapaz tão popular. Um que anda sempre muito ligeiro, olhando para os lados, aos
pulinhos, como um calango. Não conheces?!
Amâncio disse que saiba quem era —
para acabar com aquilo.
— Bom hóspede! acrescentou o outro.
— Também só aparece à noite: não incomoda pessoa alguma.
— Bem... disse Amâncio com um
bocejo. São horas de ir-me chegando.
— Quê?! bradou Coqueiro. — Tu jantas
conosco! Minha gente conta contigo... não te dispensamos! E demais, quero
mostrar-te o resto da casa. Vem cá ao segundo andar.
O provinciano lembrou timidamente
que isso podia ficar para outra ocasião; mas Coqueiro respondeu puxando-o pelo
braço na direção da escada:
— Venha cá! Não seja preguiçoso!
Depois de subir, acharam-se em
corredor estreito e oprimido pelo teto. Ao fundo uma janela de grades verdes
coava tristemente a luz que vinha de fora. Lia-se nas portas, em algarismos
azuis, pintados sobre um pequeno círculo branco, os números de 4 a 11.
— Aquilo tinha aspecto de casa de
saúde... pensou Amâncio, com tédio. — Não devia ser muito agradável morar ali.
Todos os quartos, entretanto, estavam tomados.
Coqueiro principiou logo, em voz
soturna, a denunciar os competentes moradores: — N.º 4 — Campelo, um
esquisitão, porém bom sujeito, de comércio; não comia em casa senão aos
domingos e isso mesmo só de manhã. N.º 5 — Paula Mendes e a mulher; casal de
artistas, davam lições e concertos de piano e rabeca; muito conhecidos na
Corte. N.º 6 — Um guarda-livros; bom moço; tinha o quarto sempre muito
asseadinho e à noite, quando voltava do trabalho, estudava clarineta. O n.º 7
era de um pobre rapaz português; doente: vivia embrulhado em uma manta de lã,
por cima do sobretudo, e saía todas as manhãs a passeio para as bandas da
Tijuca.
A porta do n.º 8 estava aberta e
Amâncio viu, de relance, a cauda de uma saia que fugia para o interior do
quarto. E logo uma voz aflautada, de mulher, gritou:
— Cora! Fecha essa porta!
— É uma tal Lúcia Pereira...
segredou Coqueiro — mora aí com o marido, um tipo!
Estavam na casa há muito pouco
tempo. Coqueiro não podia dizer ainda que tais seriam, porque só formava o seu
juízo depois de paga a primeira conta.
O n.º 9 era do Melinho — uma pérola!
Empregado na Caixa de Amortização; não comia em casa, mas, às vezes, trazia
frutas cristalizadas para Mme. Brizard e Amelinha. Belo moço!
Coqueiro não se lembrava como era ao
certo o nome do sujeito que ocupava o n.º 10: “Lamentosa ou Latembrosa,
uma coisa por aí assim!” Ele tinha o nome escrito lá embaixo. — Mas que homem
fino! delicadíssimo! um verdadeiro gentleman! E tocava violão com muito
talento.
O n.º 11, que ficava justamente
encostado à janela do corredor, pertencia a um excelente médico, Dr. Correia;
estava, porém, quase sempre fechado, visto que o doutor só se utilizava do
quarto para certos trabalhos e certos estudos, que, por causa das crianças, não
podia fazer em casa da família. Vinha às vezes com freqüência e às vezes não
aparecia durante um mês inteiro; mas pagava sempre, e bem.
Esse quarto, como o outro que ficava
na extremidade oposta do corredor, tinha saída para a chácara.
Amâncio propôs a Coqueiro que
descessem por aí.
— De sorte que, foi-lhe dizendo este
pela escada — à mesa só temos diariamente os seguintes: Dr. Tavares, Paula
Mendes e a mulher, Lúcia e o marido, e o tal sujeito de nome esquisito. Só! Aos
domingos, então, fica-se em completa liberdade, porque jantam fora quase todos.
— Vês, pois, que em parte alguma estarias melhor do que aqui!...
— Mas, filho, observou Amâncio —
teus quartos estão todos ocupados!...
O outro respondeu com um risinho. E,
depois de ligeiro silêncio, passando-lhe um braço nas costas:
— Tu, aqui, não quero que sejas um
hóspede, mas um amigo, um colega, um filho da família, uma espécie de meu
irmão, compreendes? São dessas coisas que se não explicam — questão de
simpatia! Conhecemo-nos de ontem e é como se tivéssemos sido criados juntos; em
mim podes contar com um amigo para a vida e para a morte!
E, estacando defronte de Amâncio,
olhou para ele muito sério, dizendo em tom grave:
— E acredita que isto em mim é raro!
Pergunta aí aos meus colegas se sou de muitas amizades; todos eles te dirão que
ninguém há mais concentrado e metido consigo. Mas, quando simpatizo deveras com
uma pessoa, é assim, como vês, trago-a para o seio de minha família e trato-a
como irmão!
E, descaindo no tom primitivo da
conversa:
— Se ficares aqui, como espero,
verás com o tempo a sinceridade do que te estou dizendo! É que gostei de ti,
acabou-se.
Amâncio jurava corresponder àquela
amizade, mas, no íntimo, ria-se de Coqueiro, que agora lhe parecia tolo, e cujo
casamento com a francesa velhusca o tornava, a seus olhos cada vez mais
ridículo.
Ao passarem pelo salão concordaram
que aquilo era uma excelente lugar para um “boa prosa”.
Amâncio teria tudo isso às suas
ordens; podia dispor!... acrescentou o outro. E, abrindo cuidadosamente a porta
do gabinete que ficava ao lado, disse, com a entonação de um guarda de museu
que vai mostrar uma raridade:
— Eis o ninho que te destino! É o
lugar mais catita de toda a casa; isto, porém, não quer dizer que os outros
cômodos não estejam à tua disposição!... Se, mais tarde, te apetecer trocar de
quarto...
E, logo que entraram, foi-lhe
mostrando a caminha cheirosa, o pequeno lavatório de pedra-mármore; fê-lo notar
o bom estado da cômoda, a elegância do velador, o artístico das escarradeiras.
— E ali, o grande mestre! exclamou
com ênfase, apontando para a gravura da parede.
— “Vítor Hugo”, leu Amâncio debaixo
do retrato. — Bom poeta! acrescentou.
— Creio que não ficarás mal,
hein?... disse o outro.
— Ah! não! respondeu o provinciano,
assentando-se fatigado em uma cadeira. E o preço?
— Ah! Isso depois... minha mulher é
quem sabe dessas coisas, mas não havemos de brigar!...
E riu.
— Ficas aqui muito bem! Serás
tratado como um filho; quando precisares de qualquer cuidado, numa moléstia,
numa dor de cabeça, hás de ver que te não faltará nada! Além disso — podes
entrar e sair à vontade, livremente, às horas que entenderes; se gostas de teu
chazinho à noite, com torradas, hás de encontrá-lo, abafado, à tua espera sobre
aquela mesa... De manhã, se quiseres o café na cama, também terás o teu café e,
quando estiveres aborrecido do quarto, tens o salão, tens a sala de jantar, a
chácara, o jardim; finalmente, tens tudo às tuas ordens!
— Agora, quanto a certas visitas...
concluiu João Coqueiro, fazendo-se muito sisudo e abaixando a voz — isso,
filho, tem paciência... Lá fora o que quiseres, mas daquela porta para
dentro...
— Decerto! apressou-se a declarar o
outro, com escrúpulo.
— Sim! Sabes que isto é uma casa de
família e, para a boa moral...
— Mas certamente, certamente!
repetiu Amâncio.
E acendeu um cigarro.
VII
Dos hóspedes de cama e mesa só três
compareceram ao jantar — Lúcia, o
marido e o tal gentleman de nome difícil. Paulo Mendes estava de
passeio, com a mulher, em casa de um artista.
Amâncio foi apresentado àqueles três
pelo João Coqueiro. Trocaram bonitas palavras de etiqueta; fizeram-se os
mentirosos protestos da cortesia e cada um tomou à mesa o seu lugar competente.
Mme. Brizard, como era de costume,
ocupou a cabeceira, defronte de uma pilha enorme de pratos fundos, os quais ia
enchendo de sopa, um a um, paulatinamente, depois de rodar a concha três vezes
no fundo da terrina; e, à proporção que os enchia, passava-os ao marido que
nesse dia lhe ficara à esquerda, visto que à direita, seu lugar favorito,
cedera-o ele ao novo hóspede.
Na ocasião de conferir-lhe
semelhante honra, bateu-lhe carinhosamente no ombro e disse-lhe baixinho: —
Ficas bem! Ficas junto a Loló!
Mme. Brizard, que ouvira estas
palavras, acrescentou sorrindo:
— O Sr. Vasconcelos preferia talvez
ficar entre as moças...
— Ó minha senhora!... balbuciou
Amâncio, vergando-se para o lado da francesa. — Estou muito bem aqui; não podia
desejar melhor vizinhança!...
E voltou o olhar para a sua direita,
onde Lúcia acabava de tomar assento.
Examinou-a logo, à primeira vista,
sem o dar a conhecer, e a impressão recebida não foi das melhores. Achou-a
esquisita, um tanto feia, um ar pretensioso, de doutora.
Era de estatura regular, tinha as
costas arqueadas e os ombros levemente contraídos, braços moles, cintura pouco
abaixo dos seios, desenhando muito a barriga. Quando andava, principalmente em
ocasiões de cerimônia, sacudia o corpo na cadência dos passos e bamboleava a
cabeça com um movimento de afetada languidez. Muito pálida, olhos grandes e
bonitos, repuxados para os cantos exteriores, em um feitio acentuado de folhas
de roseira; lábios descorados e cheios, mas graciosos. Nunca se despregava das
lunetas, e a forte miopia dava-lhe aos olhos uma expressão úmida de choro.
Em seguida via-se o marido. Um
homenzinho gordo, de barba por fazer e pequeno bigode castanho, em parte
lourejado pelo fumo. A fronte abria-lhe para o crânio em dois semicírculos
constituídos na ausência do cabelo. Fisionomia inalterável, de uma
tranqüilidade irracional e covarde. Fechava de vez em quando os olhos, por um
sestro antigo, e então parecia dormir profundamente.
Percebia-se que ele e a mulher
estiveram, antes de vir para a mesa, empenhados em alguma discussão
desagradável, porque, mal se furtaram às apresentações e aos cumprimentos da
chegada, Lúcia pôs-se a falar-lhe em voz baixa, com azedume disfarçado. Ele,
porém, não dava resposta, e, quando a mulher insistia, cerrava os olhos como se
fugira para dentro de si mesmo.
César, ao lado, acompanhava-lhe os
movimentos com persistência tão grosseira que a outro qualquer constrangeria.
Defronte perfilava-se o gentleman.
Teso, o pescoço imobilizado no rigor de uns grandes colarinhos; as sobrancelhas
franzidas diplomaticamente; o olhar grave, de quem medita coisa de alta
importância; a boca engolida por um farto bigode grisalho; o queixo escanhoado,
formando largas pregas, sempre que Lambertosa voltava o rosto com amabilidade
para responder o que lhe diziam da direita ou da esquerda. Bonita figura, bem
apessoado, fronte espaçosa, cabelo branco, puxando de trás sobre as orelhas.
Entre ele e Coqueiro, Amelinha,
cheia de piscos de olhos e de gestozinhos passarinheiros, recebia do irmão os
pratos de sopa e passava-os adiante.
— E Nini?... perguntou Mme. Brizard
com interesse.
E, como Amâncio a fitasse, quando lhe ouviu aquela pergunta,
ela explicou que Nini era uma filha sua, “muito doente, coitadinha!”... E
contou logo a história da pobre menina — a viuvez, a dolorosa morte do filhinho
“que lhe havia ficado como extrema consolação”, e, afinal, falou daquela
“maldita moléstia que sobreviera a tantas calamidades e que parecia disposta a
não abandonar mais a infeliz”.
— Não dá idéia do que foi! disse
após um suspiro. — Era uma beleza e tinha o gênio mais alegre deste mundo! Ah!
Está muito mudada! muito mudada! Impressiona-se com tudo, tem exigências
pueris, caprichos, coisas de uma verdadeira criança! E ninguém a contraria, que
aparecem as crises, os ataques! Uma
campanha! — Ainda outro dia porque não lhe deixaram ver um desenho que meu
marido achou na chácara...
E, voltando-se rapidamente para
Amâncio:
— O Sr. Vasconcelos não se serve de
vinho?... — Um desenho indecente; pois ficou prostrada e eu tive sérios receios
de a ver perdida para sempre! Desde então está nervosa que se lhe não pode
dizer nada! É preciso não insistir com ela em coisa alguma: se a chamam duas
vezes para a mesa, começa a chorar e não vem; se a querem constranger a pôr um
vestido melhor, um penteado mais decente, são gritos, soluços, repelões, e
agarra-se à cama, que não há meio de tirá-la! Eu já não sei o que faço!...
— Por que, Madame, não experimenta
os banhos de mar? perguntou o gentleman, limpando energicamente o seu
grosso bigode no guardanapo que atara ao pescoço.
— Qual! Não produzem efeito nenhum!
Ela já tomou quarenta seguidos. Acho até que ficou pior.
— É estranho!... volveu o gentleman,
franzindo o sobrolho e passando à Lúcia a corbelha de farinha. — É estranho,
porque, segundo Durand Fardel, não há enfermidades nervosas que resistam a um
bom regime de banhos marítimos; mas aconselha também o uso interno de água
salgada, e prova que a mineralização desta é muito mais rica em cloreto se sódio
do que a das águas minerais da fonte.
— Não sei, Sr. Lamber...
Mme. Brizard não se lembrava do nome
dele.
—
Lambertosa, Madame, Lambertosa!
— Não sei, Sr. Lambertosa, não
sei... O caso é que Nini não consegue melhorar. Temos experimentado tudo, tudo!
E, mudando de tom, bateu no braço de
Amâncio, segredando-lhe com um sorriso:
— Não se esqueça de provar daqueles
camarões. São especiais!... E descreveu uma olhadela entre ele e Amélia.
— O casamento talvez a
restabelecesse! observou o provinciano, servindo-se dos afamados camarões. —
Dizem que há muitos exemplos de...
Amélia afetou um sobressaltozinho, e
olhou para ele que procurando disfarçar o mau efeito de sua proposição, citou
Le Bon.
— O doutor acha então que o
histerismo se pode curar com o casamento?... perguntou Lúcia da direita.
— Parece, minha senhora, a dar
crédito aos fisiologistas...
A sonoridade desta palavra
consolou-o.
— E é exato!... confirmou Pereira,
marido de Lúcia.
— Tu mesmo entendes disto!...
respondeu-lhe a mulher desdenhosamente.
Pereira fechou os olhos e não deu
mais palavra.
Lambertosa havia já limpado o bigode
para emitir a sua conceituada opinião, mas teve de renunciar a essa idéia,
porque Nini acabava de assomar à porta
do quarto, arrastando-se dificilmente ao peso de suas inchações.
Vestia uma bata de lã parda,
enxovalhada e sem cinta. A gordura balofa e anêmica tirava-lhe o feitio do
corpo; as suas costas formavam-se de uma só curva e os quadris pareciam duas
grandes almofadas.
Contudo ainda se lhe reconhecia a
mocidade e ainda se alcançavam os vestígios desbotados dos encantos, que a
moléstia foi pouco a pouco devastando.
Só depois de assentada, Nini
desmanchou o ar aflito que fazia, pelo esforço de andar.
— Ah! respirou, quase sem fôlego. E
correu os olhos em torno de si, abstratamente, como se despertasse de um
desmaio. Ao dar com Amâncio, ficou a encará-lo com insistência de criança;
depois, contraiu os músculos do rosto e espalhou a vista, vagarosamente, a
tomar longos sorvos de ar.
Um silêncio formou-se em torno de
sua chegada; percebia-se que pensavam nela.
— Queres sopa , Nini? perguntou
afinal Mme. Brizard, com ternura. E, como a filha fizesse um movimento
afirmativo de cabeça, passou-lhe um prato cheio.
Nini sorveu-o todo, a colheradas
seguidas e pediu mais.
A mãe aconselhou-a que comesse antes
outra qualquer coisa.
Nini largou a colher no prato, sem
dizer palavra, e pôs-se de novo a encarar para Amâncio, com um olhar tão
dolorido e tão persistente, que o rapaz ficou impressionado.
E não lhe tirou mais a vista de
cima. O estudante remexia-se na cadeira, importunado por aqueles dois olhos
grandes, rasos, de um azul duvidoso, que se fixavam sobre ele, imóveis e
esquecidos.
Disfarçava, procurava não dar por
isso, nada, porém, conseguia. Os dois importunos lá estavam, sempre, assentados
sobre ele a lhe queimar a paciência, como se fossem dois vidros de aumento
colocados contra o sol.
— Que embirrância! dizia consigo o
provinciano.
Entretanto o jantar esquentava. A
conversa explodia já de vários pontos da mesa com mais freqüência; ouviam-se
tinir os garfos de encontro a louça, e os copos esvaziavam-se e de novo se
enchiam, sem ninguém dar por isso.
Mme. Brizard não se descuidava um
minuto de Amâncio. Apontava-lhe os pratos preferíveis, puxava as garrafas para
junto dele, sempre a falar da salubridade da casa, do bem que se ficava ali, da simpatia que toda a família parecia
lhe dedicar, desde o primeiro momento em que o viu.
— Pois se até a pobre Nini não se
fartava de olhar para o Sr. Vasconcelos!...
Amâncio sorriu.
O Lambertosa atirou-lhe diretamente
a palavra sobre o Maranhão. Tratou com respeito dessa “judiciosa província, a
qual merecia de justiça o honroso título que lhe fora conferido de — Atenas
Brasileira!. E, depois de citar nomes ilustres, dispôs-se a contar as
façanhas de um tal Maranhense, célebre pelas suas espertezas.
— Perdão! acudiu Amâncio. — Esse
cavalheiro de indústria, além do nome, nada tem de comum com a minha província!
— Ah! fez o gentleman. — Pois
eu o julgava filho de lá...
— Felizmente não é, respondeu o
outro, ferido no seu bairrismo.
— E ainda que fosse!... observou
Lúcia — que mal havia nisso?
— Certamente! confirmou Coqueiro, a
encher o prato.
— Pois meu amigo, volveu Lambertosa,
dirigindo-se a Amâncio — eu o felicito! E levou o copo à boca. Eu o felicito,
porque, francamente, considero um padrão de glória ver a luz do dia em uma
província tão...
Faltou-lhe o termo.
— Tão, tão gigantesca! Estude,
caminhe, caminhe, que tem uma grande estrada aberta defronte de si!
E engrossando a voz:
— Assiste-lhe uma responsabilidade
enorme! É caminhar e caminhar firme! Ah! terminou ele com um gesto lamentoso. —
Quem me dera a sua idade, meu amigo! Quem me dera a sua idade!
Continuou-se a falar sobre o
Maranhão. Lúcia quis informações; Amâncio voltou-se logo para ela,
solicitamente, e na febre de falar de sua terra, começou, sem reparar que
mentia, a pintar coisas extraordinárias. O Maranhão segundo o que ele dizia,
era um viveiro de talentos; os grêmios e os jornais literários brotavam ali de
toda a parte; cada indivíduo representava um gramático de pulso; as senhoras —
ilustradíssimas; os homens_ poços de instrução; as crianças saíam da escola
bons poetas e prosadores.
Coqueiro afetava acompanhá-lo
naquele entusiasmo, mais ria-se por dentro. O outro lhe parecia cada vez mais
tolo.
Lúcia perguntou se Amâncio tinha
algumas produções dos seus comprovincianos, que lhe pudesse emprestar. Ele
prometeu que traria as que tivesse em casa. E recomendou Entre o Céu e a
Terra, de Flávio Reymar.
— Há em sua província um poeta que
eu adoro, disse ela, cortando em pedacinhos uma fatia de carne assada que tinha
no prato.
— O Franco de Sá? perguntou o
maranhense.
— Não, refiro-me ao Dias Carneiro.
Amâncio sentiu um calafrio percorrer-lhe
a espinha. Nunca em sua vida ouvira falar de semelhante nome.
— É, disse, entretanto. — É um
grande poeta!
— Enorme! corrigiu Lúcia, levando à
boca uma garfada. — Enorme! Conhece aquela poesia dele, o...
Novo calafrio, desta vez, porém,
acompanhado de suores. E não lhe acudia um título para apresentar, um título
qualquer, ainda que não fosse verdadeiro.
— Ora, como é mesmo? insistia a
senhora. — Tenho o nome debaixo da língua!
E, voltando com superioridade para o
marido:
— Como se chama aquela poesia, que
está no álbum de capa escura, escrita a tinta azul?
Pereira abriu os olhos e disse
lentamente:
— O Cântico do Calvário!
— És um idiota! respondeu a mulher.
A resposta de Pereira provocou
hilaridade. Amâncio consultou logo a opinião de Lúcia sobre o Varela. Mme.
Brizard falou então dos versos do marido, prometeu que os mostraria depois do
jantar.
Amâncio soltou uma exclamação de
espanto:
— Ignorava que Coqueiro também
fizesse versos!
— Faço-os, confirmou este — mas só
para mim, publiquei já alguns com pseudônimo. Receio a convivência dos
literatos que formigam por aí, esfarrapados e bêbedos. Não me quero misturar
com eles. Faço versos, é verdade, mas tenho a presunção de escrevê-los como
devem ser e não acumulando extravagâncias e disparates para armar ao efeito!
Faço versos, mas não tomo parte nessas panelinhas de elogio mútuo e nesses
grupos de imbecis escrevinhadores!
E, com muito azedume, com durezas de
inveja, principiou a dizer mal dos rapazes que no Rio de Janeiro se tornavam
mais conhecidos pelas letras.
— Pedantes! resmungava. — Súcia de
idiotas! Hoje todos querem ser escritores; sujeitinhos que não sabem ligar duas
idéias, arrogam-se, da noite para o dia, os foros literatos! Uma cambada!
E ria-se com um gesto amargo de
desgosto.
Lúcia e Lambertosa defendiam
timidamente alguns nomes.
— Ora o que, senhores! replicava
Coqueiro furioso e pálido. — Qual é aí o tipo da tal “geração moderna” que se
possa aproveitar?... Não me apontam nenhum! São todos umas bestas!
— Coqueiro!... repreendeu Mme.
Brizard em voz baixa.
— São todos umas nulidades, uns
zeros!...
Era a primeira vez que Amâncio via o
colega sair de si. Não o supunha capaz daquelas explosões.
Mme. Brizard compreendeu o
pensamento do provinciano e apressou-se a dizer-lhe ao ouvido:
— Também é só o que o faz sair do
sério... a literatura!
Amélia indagou se Amâncio também
escrevia. Ele disse que sim, a desculpar-se com os outros.
— Quem neste mundo não rabiscava
mais ou menos?...
Ela mostrou logo empenho em lhe
conhecer as produções.
— Não vale a pena! disse o moço. —
Não vale a pena!
— Ai, ai! suspirou Nini, que parecia
adormecida com os olhos abertos.
Mme. Brizard que já conhecia o
alcance daquele suspiro, perguntou à filha o que desejava. Nini apontou
melancolicamente para um prato, onde fatias transparentes de abacaxi nadavam em
calda de vinho.
— Não senhora, volveu a mãe — isso
não pode ser; faz-te mal.
Nini suspirou de novo e ficou e a
olhar para Amâncio, resignadamente, o semblante muito pesaroso, a cabeça vergada
para o lado.
— Serve-te antes de doce, aconselhou
Mme. Brizard.
O Lambertosa apressou-se a passar a
Nini a compoteira.
— Pouco, Sr. Lambertosa, dê-lhe
pouco!
Veio o café. César levantou-se da
mesa e foi brincar a um canto da sala. Mme. Brizard queria saber se estavam
todos satisfeitos; ela, quanto a si,
jantara perfeitamente, confessava.
E, com um aspecto regalado,
deixava-se ficar prostrada na cadeira, entorpecida no bem-estar do seu
estômago.
O copeiro, um preto alto de pernas
compridas, levantou a toalha, acendeu o gás e trouxe curaçau e conhaque. Amélia
bebericou o seu cálice de licor e levantou-se logo para ir à janela.
Afastaram-se as cadeiras da mesa, e a conversa reapareceu com mais força.
O Lambertosa, Mme. Brizard e
Coqueiro formaram grupo, a discutir o preço excessivo e a falsificação dos
gêneros alimentícios. O gentleman reclamava uma junta de higiene,
rigorosa, que mandasse lançar à praia todos os gêneros deteriorados que
encontrasse. “Era assim que se fazia na Europa!”
Lúcia, do outro lado da mesa,
continuava a falar com Amâncio sobre literatura. Já estavam em Théophile
Gautier, Théodore de Banville e Baudelaire, depois de haverem tocado de
passagem em alguns escritores de Portugal. Agora sentia-se mais eloqüente o
provinciano; acudiam-lhe opiniões e juízos perfeitamente armados; percebia que
as suas palavras causavam bom efeito; ia bem.
Pereira e Nini conservavam-se um
defronte do outro, igualmente concentrados e mudos; ela, porém, com os olhos
muito abertos sobre Amâncio. O outro afinal ergueu-se, atravessou, lentamente,
como um sonâmbulo, a sala de jantar, e foi estender-se em uma preguiçosa que
ficava junto à janela.
Vibrou então o piano no salão de
visitas.
— É melhor irmos todos para lá,
alvitrou a dona da casa.
O marido e o Lambertosa aceitaram
logo a idéia, e Amâncio, sem interromper a sua conversa com a mulher do
Pereira, a esta deu o braço e seguiu o exemplo daqueles.
Lúcia caminhava toda reclinada sobre
ele, falando-lhe em tom mui vagaroso, com acentuações finas de boa educação.
A sala iluminada tinha um caráter
imponente. O gentleman encaminhou a conversa geral para a música,
aconselhou a Amâncio a que solicitasse da Sr.ª D. Lúcia um pouco do Guarani,
que ela tocava admiravelmente.
Lúcia queixou-se de que ultimamente
sofria de certa fraqueza nos dedos e não tocava com a mesma expressão, mas
sempre foi, pelo braço de Lambertosa tomar ao piano o lugar que Amélia deixara
nesse instante. E logo as primeiras notas da introdução do Guarani
encheram a sala com a sua corajosa e dominadora solenidade.
Fizeram silêncio.
Ela tocava bem, com muita energia e
destreza. Amâncio encostara-se sozinho ao canto de uma janela e sentia-se ir
pouco a pouco arrastando pela irresistível corrente daquelas frases musicais.
Seu estômago, perfeitamente confortado, dava-lhe ao corpo um bem-estar
beatífico e predispunha-lhe o espírito para as vagas concentrações e para os
místicos arrebatamentos da fantasia. Um profundo langor, muito voluptuoso,
apoderava-se de todo ele, e os vapores duvidosos de um princípio de embriaguez
acamavam-se em torno de sua cabeça, anuviando-lhe os objetos exteriores.
E ali, da janela, suspenso ainda
pelas novas impressões que lhe deparavam os novos aspectos de sua existência,
abstrato e perdido em cismas indefinidas, enxergava, por entre as névoas de seu
enlevo, o vulto melancólico de Lúcia, assentado defronte do piano, a tocar o
teclado com os dedos, num frenesi delicioso.
Depois da música, principiou a
simpatizar com ela; já gostava de a ver, misteriosa e pálida, arrastando a vida
com a languidez de uma convalescente.
Estava todo embevecido a pensar
nesta simpatia, quando voltou por acaso o rosto e deu com os olhos de Nini, que
o fitavam sem pestanejar.
— É birra, não tem que ver! pensou
ele aborrecido.
Duas horas depois tornavam à sala de
jantar. Serviam-se as torradas. Parecia, com o César adormecido sobre as
pernas, ressonava profundamente na mesma preguiçosa em que o tinham deixado.
Mme. Brizard chamou o copeiro e
ordenou-lhe que recolhesse o menino. Pereira espreguiçou-se, abriu
vagarosamente os olhos, mas tornou a fechá-los, bocejando.
Já estavam à mesa, quando os
hóspedes principiaram a chegar.
Veio o Paula Mendes e mais a mulher.
Ele de pequena estatura, grosso, os movimentos acanhados, a voz branda e a
fisionomia triste; ela muito alta, cheia de corpo, despejada de maneiras e com
feições de homem.
Chamava-se Catarina, estava sempre a
implicar com as coisas e tinha muita força de gênio. Entrou na sala como uma
fúria; o marido atrás. Cumprimentou a todos com um — “boas noites” terrível, e,
atirando-se a uma cadeira, declarou, a bater com a mão na mesa, que vinha
desesperada! — Pois, se em vez de piano, lhe haviam dado um tacho, um
verdadeiro tacho, para executar um noturno de Chopin, dificílimo!
— Pouca-vergonha! exclamava ela,
rangendo os dentes. — Canalhas!
— Mas o culpado foste tu, lesma de
uma figa! — já devias conhecer melhor aquela súcia!
— Mas... ia responder o marido.
— Cale-se, berrou ela. — Não me dê
uma palavra, que não estou disposta a lhe ouvir a voz! Diabo do basbaque!
Fez uma pausa, estava arquejante,
mas continuou logo:
— Também ali, acabou-se! cruz na
porta! Nunca mais! nunca mais! Nem admito que me falem na rua! Corja!
E, levantando-se com ímpeto,
cumprimentou a todos com um arremesso, e subi para o segundo andar, levando o
marido na frente, aos empurrões.
— Safa, disse Amâncio consigo.
O Dr. Tavares é que vinha
satisfeito. Estivera em casa de um amigo, pessoa de muita consideração, onde se
reunia a mais fina sociedade.
E, necessitando de expandir o seu
bom humor, entabulou conversa com Amâncio. Falou-lhe a um só tempo de mil
coisas diferentes; tratou muito de si; das suas pretensões na Corte que apenas
conhecia de alguns meses; das suas esperanças de obter o que desejava: do que lhe
dissera tal ministro; do que lhe prometera tal conselheiro, e, afinal, da sua
profissão de advogado, profissão que ele exercia com entusiasmo, com delírio,
porque, desde pequeno, toda a sua queda fora sempre para falar em público, para
dominar as massas.
E, esquentando-se ao calor de suas
próprias palavras, discursava, como se
já estivesse no tribunal. Armava posições; recorria aos efeitos da
tribuna, vergava para trás a cabeça, ameaçando espetar o auditório com a ponta
de sua barba triangular.
Sentia-se radiante por ver que todos
os mais não abriam a boca, enquanto ele estivesse com a palavra.
Seu tipo indeciso, de cearense do
interior, uma dessas fisionomias confusas e duvidosas, nas quais o fulvo
castanho dos cabelos quase que não se distingue do moreno da pele e do pardo
verdoengo dos olhos, seu tipo transformava-se na febre da eloqüência e parecia
acentuar-se por instantes.
E, já de pé, com uma das mãos
apoiada nas costas da cadeira, jogava freneticamente com a outra, ora
espalmando-a em cheio sobre o peito, ora apontando terrível para o teto, ora
indicando o chão, horrorizado, como se aí estivesse um abismo, ora dando com o
indicador ligeiras e repetidas facadinhas no ar; ao passo que a voz, pelo
contrário, se lhe arrastava em trêmulos
prolongados, como as notas graves de um harmonium.
Enquanto ele parolava, outros
hóspedes se recolhiam aos competentes quartos, atravessando a varanda pelo
fundo na ponta dos pés, com medo da “caceteação”.
Aquele homem era o terror da casa.
Às vezes, depois do jantar, quando ele abria as torneiras da loquacidade, iam
todos, um por um, fugindo sorrateiramente, até deixá-lo a sós com o Pereira
que, afinal, adormecia.
Amâncio principiava a sentir
cansaço. Quis retirar-se; não lho consentiram.
— Passava já da meia-noite, a casa
de Campos devia estar fechada àquela hora. — O melhor seria ficar, observou a
francesa.
— Que diabo, acudiu Coqueiro. —
Fica! não incomodarás ninguém... Está tudo providenciado; a cama feita... Além
disso, olha! E mostrando o céu pela janela: — Vamos ter chuva!
Com efeito sopravam os ventos do
sul. Amâncio ainda opôs algumas razões, mas finalmente cedeu.
*
* *
Era mais de uma hora quando se dispersou a roda e cada um,
depois de novos protestos e oferecimentos se recolheu à competente alcova.
Mme. Brizard recomendou muito a
Amâncio que ficasse à vontade; que não tivesse escrúpulos em reclamar qualquer
coisa de que sentisse falta. Supunha, porém, não haver ocasião disso, porque
fora ela própria e mais a Amelinha quem
lhe arranjara o quarto.
Coqueiro acompanhou-o até à cama,
examinou rapidamente se estava tudo no seu lugar e depois, dando mais luz ao
bico do gás, e tirando um folheto da algibeira, disse-lhe com um sorriso:
— Sempre te vou mostrar os versos...
Amâncio, já meio despido, estremeceu,
mas não opôs a menor consideração, e meteu-se debaixo dos lençóis.
O outro, em pé, ao lado da cama,
folheava amorosamente o seu caderno de versos, à procura do que deveria ler em
primeiro lugar.
Descobriu afinal e, com a voz clara
e sonora, principiou:
“Estamos em plena Roma. Os
Césares devassos...”
VIII
Amâncio sentiu um grande alívio,
quando se achou afinal inteiramente só; a porta do quarto bem fechada e a luz
do bico de gás quase extinta.
Estava morto de fadiga. As
enfadonhas conversas de Coqueiro e Mme. Brizard, o jugo inquisitorial das
cerimônias, a pândega da véspera, tudo isso dava àquela caminha fresca, de
lençóis limpos, um encanto superior ao que houvesse de melhor no mundo. Seu
corpo, quebrado de impressões diversas e na maior parte consumidoras e
lascivas, bebia aquele repouso por todos os poros, voluptuosamente, como um
sequioso que se metesse dentro da água.
Aninhou-se, encolheu-se, abraçado
aos travesseiros, ouvindo com uma certa delícia esfuziar o vento nas portas e,
lá fora, desencadear-se o temporal, arremessando água aos punhados contra
telhas e paredes.
E deixava-se arrebatar pelo sono,
como se deslizasse por uma ladeira interminável de algodão em rama.
Os acontecimentos do dia começaram a
desfilar em torno de sua cabeça, em procissões fantásticas de sombras duvidosas
e fugitivas. Dentre estas, era o vulto de Lúcia o que melhor se destacava, com
o seu andar quebrado e voluptuoso, a remexer os quadris, atirando a barriga
para a frente. Chegava a distinguir-lhe perfeitamente os grandes olhos
amortecidos e a sentir-lhe o perfume que ela trazia essa tarde no lenço e nos
cabelos. Em seguida vinha a outra, a Amelinha, mas não com a lucidez da
primeira. E logo depois Mme. Brizard, com o seu todo pretensioso; Nini, a
fitá-lo muito aflita, as mãos inchadas e sem tato, o cabelo escorrido sobre a
cabeça, cheirando a pomada alvíssima, bata de lã escura e sinistra como um
burel. E depois, numa confusão vertiginosa — Coqueiro, a berrar versos,
dançando no ar e a sacudir em uma das mãos um punhado de feijões pretos; e
Paula Mendes a jogar os murros com a mulher; e Dr. Tavares a discursar com os
braços erguidos para o ar; e César, o menino prodígio, a escarafunchar o nariz
freneticamente; e Pereira, de olhos fechados, a andar como um sonâmbulo; e o...
Mas os vultos de todos se confundiam
e desfibravam, como nuvens que o vento enxota. Amâncio já os não distinguia.
Acordou às oito horas do dia
seguinte, meio inconsciente do lugar onde se achava. Logo, porém, que caiu em
si, levantou-se de um pulo e abriu a janela de par em par. Um jato de luz
dourada invadiu-lhe a alcova.
Olhou a manhã, que estava de uma
transparência admirável. A chuva de véspera limpara a atmosfera; corria fresco.
Os bondes passavam cheios de empregados públicos; viam-se amas-de-leite
acompanhando os bebês; senhoras que voltavam do banho de mar, o cabelo solto,
uma toalha ao ombro.
Aquele movimento era comunicativo.
Amâncio sentiu vontade de sair e andar à toa pelas ruas. Todo ele reclamava
longos passeios ao campo, por debaixo de árvores, em companhia de amigos.
Foi para o lavatório cantarolando; o
sono completo da noite fazia-o bem disposto e animado.
Mal acabava de preparar-se quando
bateram de leve na porta. Era uma mucamazinha, que já na véspera lhe chamara
por várias vezes a atenção durante o jantar.
Teria quinze anos, forte, cheia de
corpo, um sorriso alvar mostrando dentes largos e curtos, de uma brancura sem
brilho.
Vinha saber se o Dr. Amâncio queria
o café antes ou depois do banho.
Amâncio, em vez de responder,
agarrou-lhe o braço com um agrado violento e grosseiro.
Ela pôs-se a rir aparvalhadamente.
*
* *
Às dez horas, ao terminar o almoço, estava já resolvido que
o rapaz, naquele mesmo dia, se mudaria definitivamente para a casa de pensão.
Com efeito, pouco de pois, no
escritório de Campos, dizia a este, cheio de maneiras de pessoa ajuizada, “que
afinal descobrira em casa da família de um amigo o cômodo que procurava”.
Agradeceu muito os obséquios recebidos das mãos do negociante, desculpou-se
pelas maçadas que causara naturalmente e pediu licença para despedir-se de D.
Maria Hortênsia.
Campos, logo que soube qual era a
casa de pensão de que se tratava, aprovou a escolha, citou pessoas distintas
que lá estiveram morando por muito tempo, e recomendou ao estudante — que lhe
aparecesse de vez em quando; que não se acanhasse de bater àquela porta nas
ocasiões de apuro, porque seria atendido, e, afinal, perguntou se Amâncio
queria receber a mesada, já ou mais tarde.
— Como quiser... respondeu o
provinciano, sem ter, aliás, a menor necessidade de dinheiro. E foi embolsando
a quantia.
D. Maria Hortênsia recebeu-o com
muito agrado. A irmã não estava em casa.
Conversaram.
Ela sentia que Amâncio se retirasse
assim tão depressa; — mas, quem sabe? talvez não se desse bem ali; não fosse
tratado como merecia...
O estudante protestava, jurando que
não podia ambicionar melhor tratamento do que lhe dispensaram; reconhecia,
porém, que já causava muito incômodo, e por conseguinte devia retirar-se. Não
queria abusar.
Hortênsia afiançava e repetia que
ele não dera incômodo de espécie alguma. — Tudo aquilo era feito com muito
gosto!
Agora parecia mais familiarizada com
o provinciano. Chegou a dirigir-lhe gracejos; disse, com um sorriso de
intenção, que “sabia perfeitamente o que aquilo era! O que eram rapazes! — Não
se queriam sujeitar a certo regime; só lhes servia pagodear à solta! Enfim!...
tinham lá a sua razão... Se ela fosse rapaz faria o mesmo, naturalmente!”.
Amâncio estranhou que tais palavras
viessem de que vinham, e, não querendo perder a vaza, retorquiu com febre: “Que
Hortênsia estava enganada a respeito dele, que não o conhecia! Se, à primeira
vista ele parecia um pândego ou um sujeito mau, não o era todavia no fundo!
Ninguém amava tanto a família; ninguém! desejava o lar com tanto ardor e com
tanto desespero! Oh! que inveja não tinha de Campos!... que inveja não tinha de
todo o homem, a cujo lado enxergava uma esposa bonita e carinhosa!...”
Hortênsia agradeceu com um sorriso.
— Oh! Quanto fora injusta!... prosseguiu
Amâncio, com o rosto esfogueado de comoção. — Quanto fora injusta! O seu ideal,
dele, era justamente o casamento; era possuir uma mulherzinha, cheirosa e
meiga, com quem passasse a existência, ditosos e obscuros no seu canto, vivendo
um para o outro, ignorados, egoístas, não cedendo nenhum dos dois, a mais
ninguém, a menos particulazinha de si — um sorriso que fosse, um olhar amigo,
um aperto de mão!
— Que rigor! exclamou Hortênsia,
tomando certo interesse pelo que dizia o estudante. — Que rigor! Não o supunha
assim, seu Amâncio!...
— Oh! Era assim que ele entendia o
verdadeiro amor!...
E, cada vez mais quente:
— Era assim que ele amaria! Era
assim que ele cercaria de beijos o anjo estremecido que o quisesse recolher à
tepidez consoladora de suas asas! Era assim que ele sonhava a existência de
duas almas gêmeas, soltas no azul, gozando a voluptuosidade do mesmo vôo.
— Pois é casar-se, meu amigo...
aconselhou a mulher de Campos, pasmada de ouvir Amâncio falar daquele modo. —
Não o fazia tão prosa!...
E, como era preciso dizer qualquer
coisa, acrescentou muito amável:
— Quem sabe se alguma fluminense já
não lhe voltou o miolo!...
Ele confessou que sim, sacudindo
tristemente a cabeça. E, de tal modo exprimiu o seu amor por “essa fluminense”,
tão ardente e tão apaixonado se mostrou, que Hortênsia instintivamente se
ergueu, a olhar para os lados, sobressaltada como se tivesse cometido uma
falta.
Não quis saber de quem se tratava.
Deu uma volta pela sala, foi ao aparador, tomou alguns goles
d’água e, procurando mudar de conversa, falou do baile que havia essa noite em
casa do Melo. — Devia ser muito bom, constava que havia quinze dias se
preparavam para a festa. Era em Botafogo. Campos, logo que recebeu o convite,
lembrou-se de levar Amâncio consigo, este, porém, tão raramente aparecia em
casa, e agora, com esta mudança...
— Não. Campos falou-me, disse o
estudante.
— Ah! sempre chegou a lhe falar?
— Há três ou quatro dias; mas eu não
tencionava ir...
— Por quê? O senhor é moço, deve divertir-se.
— A senhora vai?
— Sim, vou.
— Nesse caso irei também.
E Amâncio ligou tão expressiva
entonação àquelas palavras, que Hortênsia abaixou os olhos, já impaciente, sem
mais vontade de conversar.
— Seria possível, pensava ela — que
aquele estudante lhe quisesse fazer a corte?... Não! não seria capaz disso, e,
se fosse, ela saberia desenganá-lo! Ah! com certeza que o desenganava!
Campos subiu daí a um instante, e
Amâncio, depois de combinar com ele que voltaria à noite para irem juntos à
casa de Melo, entregou as suas malas a um carregador e saiu.
Sentia-se alegre; a nova atitude de Hortênsia dava-lhe um
vago antegosto de prazeres; previa com delícia os bons momentos que o
esperavam.
— E agora é que vou deixar a casa!... pensava ele já na rua.
— Que tolo fui! Abandonar a empresa, justamente quando me sorri a primeira
esperança! “Mas pedaço de asno, argumentava com seus botões — não calculaste
logo que aquela mulher mais dia menos
dia havia de escorregar? Por que diabo então não esperaste um pouco?...” Ora!
mais que caiporismo, o meu! Sair nesta ocasião! Perder uma conquista tão boa!
Agora também que remédio lhe hei de dar? O que está feito, está feito! A este
momento minhas malas talvez já tenham chegado à casa de Coqueiro! E com este
nome assaltaram-lhe logo o espírito as imagens de Lúcia e de Amelinha.
— Bem me dizia Simões, pensou ele. — Bem me dizia Simões:
“Quando te começarem as aventuras, hás de ver o que vai por esta sociedade!”
E Amâncio, que não conseguia reter na cabeça as palavras dos
seus professores, Amâncio, que era incapaz de guardar na memória um fato, um
algarismo, uma fórmula científica, conservava, entretanto, com toda a inteireza
aquela frase banal, pronunciada por um pândego em um almoço de hotel, depois de
dúzia de garrafas de vinho.
O Simões tinha toda a razão... principiavam as aventuras!
Diabo era aquela asneira de abandonar tão intempestivamente a casa de Campos!
Fora uma triste idéia, que dúvida! Mas, ele também não podia adivinhar quais
seriam as intenções de Hortênsia!... O melhor por conseguinte era não se
apoquentar — o que lhe estivesse destinado havia de chegar-lhe às mãos!...
E já nem pensava nisso quando subiu as escadas da casa de
pensão. Sorrisos amáveis de Amelinha e Mme. Brizard o receberam desde a
entrada. Coqueiro estava na rua.
Veio à conversa o baile dessa noite. Amâncio, pela primeira
vez, ia conhecer uma sala da Corte. As duas senhoras profetizavam que ele
voltaria cativo por alguma carioca.
— Duvido! — respondeu o estudante, a
rir.
— É! disse a francesa — vocês do
Norte são todos uns santinhos! Eu já os conheço! Nunca vi gente tão assanhada.
Amelinha abaixou os olhos, depois de
lançar à outra um gesto repreensivo.
Mme. Brizard não fez caso e
acrescentou:
— Os demônios não podem ver um rabo-de-saia!
— Loló! censurou Amelinha em voz
baixa.
— Também não é tanto assim!...
contradisse o provinciano.
Mme. Brizard citou logo os exemplos
de casa, até ali entre todos os seus hóspedes, só os nortistas devam sorte em
questão de amor. — Um deles, um tal Benfica Duarte, chegara a raptar com
escândalo uma crioula, e crioula feia!
Amelinha, bem contra a vontade,
soltou uma risada, que lhe desfez por instantes o ar inocente da fisionomia;
mas recuperou-o logo, e lembrou à cunhada “que não deviam estar ali e roubar o
tempo a seu Amâncio. Ele tinha que cuidar das malas que já o esperavam
no quarto”.
— Nós podemos ajudá-lo nesse
trabalho, acudiu a velha. — Certas coisas só ficam bem feitas por mão de
mulher!
O estudante aceitou o oferecimento,
e os três seguiram para o gabinete, sempre a rir e a conversar.
Amelinha, enquanto Amâncio entrava
no quarto, observou, em voz baixa a Mme. Brizard, que não achava conveniente
que esta arriscasse em sua presença pilhérias como as de ainda há pouco. — O
rapaz, por muito ingênuo que fosse, podia desconfiar com aquilo e persuadir-se
de que ela, Amelinha, não daria uma noiva bastante séria e digna dele! Que, às
vezes, por estas e outras indiscrições, desmanchavam-se casamentos!
— Como te enganas! respondeu a velha
— já compreendi bem esse sujeito: a sua corda sensível são as mulheres! Gosta
que lhe falem nisso! Tu, do que precisas, é opor-lhe dificuldades, sem que o
desenganes por uma vez; nega, mas promete, que obterás a vitória. Quando ele te
pedir um beijo, dá-lhe um sorriso; e, quando quiser muito mais, dá-lhe então o
beijo, contanto que te mostres logo arrependida, envergonhada, chorosa,
inconsolável, e disposta a não lhe ceder mais nada, e disposta a nunca lhe
pertenceres, a nunca lhe perdoares aquele atrevimento. E, se ele insistir,
repele-o, insulta-o, jura que o desprezas e fá-lo acreditar que amas a outro. —
É dessa forma que o hás de agarrar, percebes? Lá quanto às minhas chalaças de
ainda há pouco, descansa que por aí não irá o gato às filhoses.
Nesse momento, o rapaz acabava de
abrir as malas. As duas senhoras apareceram no quarto.
Ele tinha muita roupa branca, e tudo
bom. Camisas finas de linho, ricas toalhas de renda marcadas cuidadosamente por
sua mãe, fronhas bordadas, mostrando o seu nome entre labirintos e desenhos
caprichosos.
Sentia-se o amor, o desvelo, com que
tudo aquilo fora arrumado; cada objeto parecia conservar ainda a marca da mão
carinhosa que o acondicionara a um canto da arca. Alguns denunciavam o trabalho
paciente de longos tempos, traziam à idéia calmos serões à luz do candeeiro.
Adivinhava-se, pelo completo daquele enxoval, a previdência de um coração
materno; nada faltava.
À proporção que se iam tirando as
peças de roupas, uma tepidez embalsamada respirava dentre elas; parecia que um
perfume ideal de beijos se exalava ao desdobrar dos brancos lençóis de linho;
percebia-se que muita lágrima e muito soluço ficaram abafados no fundo daquelas
arcas.
Vieram ao provinciano novas e mais
vivas saudades de Ângela. Uma vaga tristeza apoderou-se dele; ficou distraído,
a olhar silenciosamente para as roupas que as duas mulheres empilhavam no chão
e sobre a cama. Sentiu, compreendeu, que ele próprio, à semelhança daquelas
arcas, havia também de ir perdendo, pouco a pouco, todas as ilusões, todos os
perfumes, com que saíra impregnado dos braços de sua mãe.
E afastou-se do quarto para limpar
as lágrimas. As lágrimas, sim, que o fato de sua primeira viagem, as impressões
da Corte, a saudade, as aventuras amorosas, as ceatas pelos hotéis, davam-lhe
ultimamente uma sensibilidade muito nervosa e feminil. Elas acudiam-lhe agora
com extrema facilidade, chorava sempre que se comovia. Às vezes, no teatro,
assistindo à representação de qualquer drama de efeitos, ficava envergonhado
por não poder impedir que os olhos se lhe enchessem d’água; a simples descrição
de um desgraça perturbava-o todo; a música italiana o entristecia; a idéia de
um feito heróico ou de um rasgo de perversidade era o bastante para lhe agitar
a circulação do sangue e formar-lhe godilhões na garganta.
Quando voltou ao quarto, já os baús
estavam despejados.
Mme. Brizard não se fartava de
elogiar a boa qualidade das fazendas, o bem cosido das roupas, a pachorra e
asseio com que tudo fora feito. Apreciava o trabalho das marcas; chamava a
atenção de Amélia para os bordados, para os labirintos e para as rendas.
— Olha! disse-lhe, mostrando um pano
de crochê — o desenho é justamente como aquele da toalha do oratório. Só faltam
aqui as duas borboletas do canto.
E arrumava tudo, com muito cuidado,
nas gavetas da cômoda. Tomava religiosamente sobre os braços os pesados
lençóis, os maços de ceroulas em folha, os pacotes intactos de meias listradas,
os de lenço barrados de seda, os colarinhos de todos os feitios, as gravatas de
todas as cores. E não acondicionava uma peça sem afagá-la, sem lhe passar por
cima as mãos abertas.
— O rapaz estava provido de tudo!
disse em voz baixa. E, depois, acrescentou alto, rindo: — Podia até casar se
quisesse!
— Falta o principal... respondeu
ele.
— Que é? acudiu logo Amélia.
— A noiva! explicou o moço, olhando
intencionalmente para a rapariga.
— Deve estar à sua espera no
Maranhão... volveu ela.
E abaixou os olhos com um movimento
de inocência, muito bem feito.
— Não vê! exclamou a velha. — Então
um rapaz desta ordem deixava as meninas da Corte para amarrar-se a uma
provinciana?... Seria de mau gosto!
— Não sei por que, retorquiu
Amâncio, ligeiramente escandalizado. — Na província há senhoras bem educadas,
muito chiques!
— Sei, sei, perfeitamente, disse
Mme. Brizard, evitando contrariá-lo. Sei que as há... mas é que o Sr.
Vasconcelos tem elementos para desejar muito melhor! Seria pena que um rapaz
tão perfeito não escolhesse uma noivazinha comme il faut. — Bonita,
instruída, que soubesse entrar e sair numa sala, conversar, fazer música,
recitar, servir um almoço, dirigir uma soirée. Além de que, meu caro
senhor, as provincianas, em geral, saem muito mais exigentes do que as filhas
da Corte.
E, como Amâncio fizesse um ar de
espanto:
— Sim, porque a fluminense, habituada
como está na capital e familiarizada com os bailes, com os espetáculos do
lírico, com os passeios, já se não preocupa com essas coisas e, uma vez casada,
dedica-se exclusivamente ao lar, ao marido e aos filhinhos; ao passo que com as
outras, as provincianas, sucede justamente o contrário, visto que ainda não
conhecem aqueles gozos e só desejam o casamento para conhecê-los. Daí as suas
exigências; nada cabeça descansada nos ombros dele, as mãos frias, a respiração
as satisfaz, porque tudo fica muito aquém dos seus sonhos da província; o que
para as outras é tudo, para elas não é nada. Bailes e teatros toda a noite,
carruagens, lacaios, vestidos de seda, dez ou vinte criados, nada as contenta,
nada corresponde ao que elas ambicionam. E o marido, o pobre marido de
semelhante gente, depois de arruinado e depois de passar uma existência sem
amor e sem conchegos de família, ainda terá de suportar as queixas e os
ressentimentos de uma mulher desiludida e blasé.
— Perdão! replicou o estudante. —
Isso prova simplesmente que toda a mulher, seja da província ou da Corte,
apresenta sempre certa dose de ambições. Com a diferença, porém, de que a
provinciana, por isso mesmo que o Rio de Janeiro é o seu ideal, é o seu sonho
dourado, contenta-se com ele; enquanto que a outra, visto que o supradito Rio
de Janeiro para ela nada mais é que o comum, estende naturalmente a sua ambição
— e quer Paris. O Passeio Público já não a satisfaz, é preciso dar-lhe Bois
de Boulogne; já não lhe chegam carruagens, criados e teatros; quer tudo
isso e mais um título de baronesa pelo menos!
E, encantado com a clareza do seu
argumento, continuou a discutir, chegando à conclusão de que seria loucura
desejar uma mulher isenta de ambições e caprichos, e que ele já se daria por
muito satisfeito se encontrasse alguma, cujo ideal não fosse além do Rio de
Janeiro.
Amélia era precisamente dessa
opinião, mas entendia que, mesmo na Corte, se encontravam meninas bem educadas
e, aliás, muito modestas.
Amâncio declarou que não argumentava
com exceções. — Sabia perfeitamente que nem todas as fluminenses calçavam pela
mesma forma, e não tinha a pretensão de dizer “desta água não beberei, deste
pão não comerei!” apenas não admitia aquela razão, que apresentava Mme.
Brizard, para provar que as provincianas eram mais dispendiosas do que as
filhas da Corte. Isso não! que o desculpassem, mas não podia admitir!
Sempre queria vê-lo casado com uma
provinciana!... observou a francesa, tomando a roupa que lhe passava a outra. —
Então sim! Aposto que não teria a mesma opinião!
Amâncio não respondeu logo, porque
estava muito ocupado a apanhar do chão uma grande pilha de camisas engomadas,
que Amelinha deixara cair. Mme. Brizard acudiu também a ajudá-los, e, na
precipitação com que todos três, agachados um defronte dos outros, queriam ao
mesmo tempo recolher a roupa espalhada no soalho, as mãos do estudante
encontravam-se com umas mãozinhas finas que não eram certamente as de Mme.
Brizard.
Mas todas as vezes que ele tentou
retê-las entre as suas, as tais mãozinhas fugiam tão ligeiras, como se lhes
houvessem chegado uma brasa.
IX
O baile em casa de Melo esteve bom.
Este, muito magro, de suíças negras, olhos fundos e movimentos rápidos, não
descansava um instante; tão depressa o viam conduzindo senhoras pela escada, como
a receber apresentações na sala de jantar, como a formar quadrilhas;
voltando-se para todos os lados e atendendo a todas as pessoas.
O Melo tinha boas relações e alguns
bens adquiridos no comércio; nunca se envolveu diretamente com a política; mas
prezava o monarca e esperava, com resignação, um habito que há dez anos lhe
haviam prometido pingar sobre a lapela da casaca. A mulher, que já não era
criança, ainda metia muita vista e passava por bonita; homens, que envelheceram
com ela, citavam-na como um tipo de formosura.
Amâncio foi recebido com especial agrado, graças ao Luís
Campos que era íntimo do dono da casa.
A circunstância de que ali se achava
só, no meio de tanta gente estranha, como que apertava o círculo de suas
relações com a família do correspondente. Fazia-se muito deles, muito
aparentado; não dispunha de mais ninguém para desabafar as suas impressões e
para conversar um pouco mais à vontade.
Assim, quando saltamos em um porto
pela primeira vez, sentimos estreitarem-se de repente nossas relações com os
companheiros de bordo, ainda mesmo que os conheçamos de poucos dias.
Até Carlotinha parecia mais
expansiva, principalmente depois que Amâncio se revelou insigne dançador de
valsa. Ela era louca pela dança. Maria Hortênsia notara igualmente que o
provinciano tinha um certo talento coreográfico muito peculiar, e não ficou
isolada nesse juízo, porque várias senhoras se declararam da mesma
opinião.
Não tardou muito a que semelhante
julgamento se estendesse pelas outras salas, e em breve estavam todas as damas
de acordo que Amâncio era o melhor par daquela noite.
Com efeito, se ele em qualquer outra
coisa não conseguiu a perfeição, na dança ao menos nada se lhe tinha a desejar,
dançava admiravelmente, por vocação, por índole, por um jeito especial do
corpo, e com um amaneirado gracioso que sabia dar aos braços, à cabeça, e às
pernas,. Pode-se dizer que na valsa dispunha de um estilo próprio, original.
Quando, sacudido pela música, os
olhos meios cerrados, a boca meia aberta, arremessava-se com a dama no
turbilhão da sala, tinha alguma coisa de pássaro que desprende o vôo. Ficava
até mais bonito; os cabelos crespos tremiam-lhe romanticamente sobre a testa; o
cansaço dava ao moreno de suas faces uma palidez misteriosa e doce. E, com o
braço direito engranzado à cintura do par, o esquerdo repuxando nervosamente a
mão que a dama estendia sobre a sua, ele empertigava-se todo com delícia, a
fechar os olhos e a rodar extasiado, embevecido, como se fora arrebatado por
entre nuvens de arminho.
No seu temperamento, excessivamente
lascivo, gozava com sentir ligado ao corpo o corpo precioso de uma mulher de
estimação; comprazia-lhe em beber-lhe o hálito acelerado pela dança,
embebedava-se com respirar-lhes os perfumes agudos do cabelo e o infiltrante
cheiro animal da carne.
Afinal, depois de uma valsa,
estonteado e ofegante atirou-se ao canto do divã em que estava Hortênsia.
Confessava-se prostrado, a limpar o
suor do pescoço e da fronte. Fora imensa a valsa e ele cansara três pares que
se abateram inúteis, como as espadas de Ney na batalha de Waterloo.
— Apre! disse.
As senhoras olhavam-no já com
respeito, acompanhavam-lhe os menores movimentos com enorme interesse.
— Muito bem! muito bem!
cochichou-lhe a mulher de Campos. — Ignorava que o senhor fosse tão forte na
valsa!
E começaram a conversar sobre o mal
que se dançava ultimamente. Ela declarou que uma das coisas que mais apreciava,
era a boa valsa. Isso desde criança; no colégio, às vezes, as meninas passavam
a hora do recreio dançando uma com as outras.
— Ninguém o diria... considerou
Amâncio, fazendo-se muito seu camarada. — A senhora hoje só tem querido dançar
quadrilhas.
Ela respondeu com um risinho
significativo.
— Quer uma valsa comigo?...
perguntou o rapaz, em segredo, requebrando os olhos.
— Não posso! disse ela, quase com um
suspiro. — Aceitaria de bom grado, mas não posso...
— Valha-me Deus! Por quê?
— Porque...
Hortênsia sorriu de novo, sem ânimo
de confessar a verdade — o marido não gostava de a ver valsar. Também não se
podia desculpar, dizendo que não sabia, porque ainda há pouco dissera
justamente o contrário; afinal, sem fazer empenho de ser acreditada acrescentou
gracejando.
— Porque... porque me faz mal...
Amâncio prometeu que a conduziria
devagar e que não dançaria longo tempo seguido; aceitava todas as condições,
contanto que desfrutasse a suprema ventura de lhe merecer uma valsa.
Hortênsia não respondeu; tinha o olhar esquecido sobre um
grande quadro que lhe ficava defronte suspenso da parede. E abanava-se,
lentamente, como seguindo o vôo de um vago pensamento voluptuoso.
O quadro representava uma cena de Fausto
e Margarida, no jardim (um longo beijo apaixonado que parecia soluçar entre
a folhagem misteriosa do painel. O encantado filósofo tomava nas mãos brancas a
loura cabeça de sua amante, e sorvia-lhe a alma pelos lábios. O sol morria ao
longe, dourando a paisagem, e um casal de pombos arrulhava à sombra azulada de
uma planta).
Hortênsia olhava para isso,
enquanto, ao gemer das rebecas, cruzavam-se na sala os pares, marcando
contradanças. O aroma das flores, que se fanavam em grandes vasos japoneses,
misturava-se ao cheiro das mulheres e penetrava a carne com a sutilidade de um
veneno lento e delicioso como o fumo do charuto. Os membros lácteos das
senhoras, expunham-se nus à grande claridade artificial do gás; as jóias
faiscavam; os olhos desfaleciam e um calor gostoso ia infirmando os sentidos e
entontecendo a alma.
— Então?... pediu Amâncio, pondo
muita doçura na voz — dance comigo, sim?... Faça-me a vontade. Eu sentiria
nisso tanto gosto...
E todo ele suplicava aquele
obséquio, com o empenho apaixonado de quem pede uma concessão de amor.
Ela dizia que não, meneando a
cabeça; mas, um sorriso, que se lhe escapava dos lábios, dizia o contrário.
— Então!... sim?... sim?... um
bocadinho só! insistia o estudante, a devorá-la com os olhos.
Estava ainda cansado; a voz não lhe
vinha inteira, mas quebrada, como por um espasmo; os olhos dele arqueavam-se
luxuriosamente; as pernas principiavam-lhe a tremer.
— O que lhe custa, à senhora, dançar
um pouquinho comigo?...
E, vendo que ela não respondia,
balbuciou em tom magoado, de criança ressentida:
— Bem, bem, não lhe peço mais nada,
não a importunarei de hoje em diante. Desculpe!
Hortênsia voltou-se para ele, ia
talvez desenganá-lo; mas a orquestra, que havia emudecido depois da quadrilha,
deu sinal para a “valsa”. Era o Danúbio, de Strauss.
O rapaz ergueu-se como um soldado
que ouvisse tocar o rebate.
Ela não resistiu, levantou-se de um
salto e entregou-lhe a cintura.
Dançaram. A princípio vagarosamente:
depois, como a música se acelerasse, Amâncio arrebatou-a. Ela deixou-se levar,
a cabeça descansada nos ombros dele, as mãos frias, a respiração doida.
A música redobrou de carreira.
Foi então um rodar convulso, frenético:
a casa, os móveis, as paredes, tudo girava em torno deles.
Hortênsia dançava tão bem como o
rapaz. Os dois pareciam não tocar no chão; os passos casavam-se como por
encanto; as pernas gravitavam em volta uma das outras com precisão mecânica.
Encheu-se a sala de pares. Amâncio
fugiu com Hortênsia, sem interromper a valsa; pareciam empenhados numa
conjuntura amorosa. Ela arfava, sacudindo o colo com a respiração; os seus
braços nus tinham uma frescura úmida; os olhos amorteciam-se defronte dos dele;
não podia fechar a boca, o seu hálito misturava-se ao hálito fogoso do
estudante.
De repente, Amâncio parou, exausto.
Ouvia-se-lhe de longe a respiração.
— Não! não! balbuciava ela, quase
sem poder falar. — Ainda! mais um pouco!...
E abraçaram-se de novo,
freneticamente.
Quando parou a música, Hortênsia
caiu sobre um divã pelos braços de Amâncio.
Não podia dar uma palavra; não podia
abrir os olhos. Sua respiração parecia longos suspiros contínuos e estalados.
Vários cavalheiros se aproximaram.
— Ficou muito fatigada?... perguntou
Amâncio, inclinado-se sobre ela, a mão apoiada nas costas do divã.
Hortênsia não respondeu. Cobriu o
rosto com o lenço de rendas e continuou recostada. Foi a voz do marido que a
despertou.
— Que loucura é esta Neném?... perguntou
ele, sorrindo com o seu bom ar de homem honesto.
Ela sorriu também, e pediu desculpas
com o olhar.
— Sabes que te faz mal, para que
valsas?...
Hortênsia soltou uma risadinha de
intenção e disse baixinho: Não é o mal que me faz que te dá cuidado...
— Como assim?
— Ora, é que tu não gostas muito de
me ver valsar...
— Porque te faz mal, filha!...
— É só por isso? afianças que não
tens outro motivo?
Campos respondeu com um movimento de
ombros.
— Olha lá!... ameaçou a bonita
senhora, sacudindo um dedinho da mão direita. — Olha! que sou muito capaz de,
hoje em diante, não perder mais uma só valsa!...
Ele repetiu o movimento dos ombros,
e acrescentou:
— Isso é lá contigo, filha; a saúde
é tua, faze o que entenderes, ora essa!
Algumas pessoas perceberam o seu mal
humor e riram com disfarce.
Nessa ocasião, Amâncio encostado ao
bufê, pedia que lhe servissem um grogue à americana.
— Está retemperando a fibra?
perguntou-lhe um sujeito magrinho, elegante, meio calvo, a bater-lhe
amigavelmente no ombro.
O estudante voltou-se apressado e,
logo que viu o outro, exclamou:
— Oh! o Dr. Freitas! Como passou?
Não sabia que estava também por cá!
Freitas respondeu com a sua vozinha
gasta — que chegara havia pouco; não lhe fora possível vir antes; tivera que acompanhar
o enterro de um parente! — Coitado! cacete até depois de morto, três
necrológicos de hora e meia cada um!... Ah! os parentes! os parentes eram uma
desgraçada invenção, principalmente se não deixavam alguma coisa!
E, depois de retesar o peito da
camisa e puxar a gola da casaca:
— Mas então como ia o Sr. Amâncio de
Vasconcelos?... Pela fisionomia jurava-se que tinha saúde para dar e vender, e,
pelos atos, não parecia menos disposto, porque o Freitas presenciara a conversa
do amigo com Hortênsia.
E rindo:
— Homem, faz você muito bem!
Aproveite enquanto está no tempo! Se eu tivesse a sua idade, com a experiência
de que disponho hoje, não havia de proceder como procedi! Oh! aquele aforismo
tem muito fundo! “ Si jeunesse savait...”
E a olhar para os pés, com o gesto
cheio de tédio: — Gostei de o ver na valsa, gostei seriamente! Ah! Eu é que já
não sou homem para estas coisas! Aceito tudo, menos o que me obrigue à fadiga!
Amâncio fez-se modesto; negava que
dançasse bem; mas o outro, em vez de insistir nos elogios, como esperava ele,
perguntou-lhe muito descansadamente por que razão não lhe apareceu depois da
primeira visita.
O estudante desculpou-se com a falta
de tempo e excesso de estudo. Havia, porém, de aparecer, mais tarde.
As relações com o Dr. Freitas
procediam de uma carta de recomendação, que um amigo do velho Vasconcelos lhe
arranjara. Freitas era uma excelente amizade para qualquer estudante pouco
escrupuloso; dispunha de ótimas relações, que podiam servir de empenho nas
épocas apertadas de exame.
Tinha alguma coisa, gostava de ir à
Europa de vez em quando, e os seus quarenta e tantos anos não espantavam a
ninguém; ao contrário, ainda havia muito olho esperto de mulher que se
arregalava para o ver. Isso sem falar nas senhoras que se foram aposentando,
enquanto ele parecia eternamente empalhado nos seus fraques irrepreensíveis,
nos seus chapéus à moda e nos seus enormes sapatos à inglesa de um elegantismo
feroz. Em consciência, ninguém o poderia qualificar senão de rapaz. As mulheres
eram o seu fraco, o seu vício mais acentuado; várias anedotas suas, inspiradas
neste assunto, corriam de boca em boca há vinte anos.
Amâncio ficou muito seu camarada,
desde a primeira visita. Em menos de uma hora de conversação, falavam já sobre
as cocotes mais conhecidas na Corte; e, alguns dias depois, quando se
encontraram na Fênix, Freitas apresentou-lhe uma espanholona de buço louro, a
qual nessa ocasião passava pelo corpo mais bonito do mundo equívoco.
— Pois você já está um fluminense
acabado! disse o elegante, a medir Amâncio de alto a baixo. — Não imaginei que
andasse tão depressa...
E, porque voltasse à conversa sobre
mulheres, continuou o que dizia há pouco:
Infelizmente só chegamos a
conhecê-las quando vamos caindo na idade; de sorte que é preciso aproveitar o
espaço que medeia dos trinta aos quarenta anos; antes disso — não sabemos,
depois — não podemos. Ah! se aos vinte já se conhecesse a mulher... se então já
se soubesse quais são os seus gostos e suas preferências.. se tal acontecesse,
nem uma só se conservaria virtuosa!... Mas, nesse período dos sonhos e das
ilusões, no período em que está o senhor, meu amigo, ninguém é capaz de uma
audácia! Para chegar a fazer qualquer coisa é preciso ser provocado, mas muito
provocado!
Amâncio protestava com um sorriso
pretensioso.
— Oh! oh! exclamou o outro, cheio de
experiência, a calcar o monóculo sobre o olho. — Já tive a sua idade, meu
amigo, já tive a sua idade! Pensava então que, para agradar mulheres, era
indispensável fazer-me bonito, meigo, romântico, atencioso, que sei eu!...
Engano! puro engano! Elas aborrecem tudo isso, e só exigem coisas num homem: a
primeira: — muita audácia; a segunda — um pouco de inteligência; a terceira —
algumas relações na boa sociedade! e... ainda temos uma de que me esquecia e
que, entretanto, é a base de todas as outras: — Não ser seu marido! Com estas
quatro qualidades, desde que se tenha mocidade e boa disposição, não há mulher
que resista! Quanto à beleza, boas maneiras e bom caráter — histórias, homem!
histórias! Elas, ao contrário, detestam os tipos afeminados e não morrem de
amores pelos sujeitos rigorosamente honestos e bem comportados. Qual! Querem o
seu bocado de vício; o belo deboche de vez em quando, para variar!...
E metendo as mãos nos bolsos da
calça, e jogando o corpo com um ar canalha:
— Lá para a seriedade basta-lhe o
marido! É boa!
Amâncio ria-se, abarrotado de
intenções. Freitinhas foi nesse momento apreendido pelo dono da casa: “As damas
reclamavam a sua presença, dele, nas salas! Era preciso não se meter pelos
cantos!”
Dr. Freitas deixou-se levar, sempre
muito enfastiado; mas, antes de ir, bateu no ombro de Amâncio e segredou-lhe
com a sua voz de tuberculoso:
— Aproveita, menino, aproveita! Não
mandes nada ao bispo!
*
* *
Iam já desaparecendo os convidados.
Os pais de família toscanejavam encostados às ombreiras das portas, esperando,
com os braços carregados de capas e mantas, que as mulheres e as filhas se
resolvessem a seguir para a casa. Havia um vago tom de cansaço nas fisionomias;
entretanto, alguns cavalheiros jogavam ainda, em um quarto próximo à luz
trêmula das velas da estearina. Melo conduzia senhoras pelo braço à porta da
rua, agradecendo-lhes muito o obséquio de aceitarem o seu convite.
Foi Amâncio quem ajudou Hortênsia a
entrar na carruagem. Campos parecia contrariado com a demora — há duas horas
que desejava retirar-se.
Encurtaram-se despedidas. O
horizonte principiava a franjar-se com os galões prateados da aurora, e, do
lado das montanhas desciam tons mutatinos de natureza que desperta.
Hortênsia, muito embrulhada na sua
capa de casimira branca e guarnecida de arminhos, atirou-se com impaciência
sobre as almofadas do carro, levantando um luxuoso farfalhar de sedas que se
amarrotam. Logo, porém, que o cocheiro sacudiu as rédeas ela chegou o rosto à
portinhola, e gritou para fora:
— Aparece domingo! Vá jantar
conosco. Adeus!
Amâncio, perfilado na calçada, o
chapéu suspenso na mão direita, em atitude de quem faz um cumprimento
respeitoso, disse agitando o braço:
— Adeus, minha senhora. Hei de ir.
O carro de Campos tomou a direção da
praia de Botafogo, o rapaz ainda o acompanhou com a vista; depois, levantando
os ombros e abotoando melhor o
sobretudo, meteu-se num tílburi que se aproximava lentamente e mandou
tocar para a casa de pensão.
O animal disparou, sacudindo as
crinas ao vento fresco da manhã.
Amâncio acendeu um charuto e, com os
olhos meio cerrados, derreou-se para o fundo do tílburi.
Naquele momento sentia gosto em se
fazer muito farto, muito cansado de amores. Suas últimas impressões enchiam-lhe
o cérebro de uma espécie de vapor azotado, que asfixiava todos os outros
pensamentos.
— A continuarem as coisas daquele
modo, dizia ele consigo, chupando o charuto aos solavancos do carro — em breve
o tempo será pouco para tratar só de namoros!...
A cada passo que dera na sua inútil
existência, rasgara com o pé uma página do livro das ilusões. Mas a presença
deste raciocínio, longe de afligi-lo, dava-lhe à vaidade um certo prazer
doentio e picante.
— Como poderia acreditar agora nas
tais virtudes femininas?... Pois se até falhara a própria mulher de Campos!...
Quando poderia ele imaginar que
Hortênsia tão severa e tão grave ainda há pouco, uma criatura por quem todos
“metiam a mão no fogo”, fosse assim leviana e fácil, como as outras?...
E Amâncio saboreava esta convicção,
porque, a despeito do que dissera aos amigos no Hotel dos Príncipes, sua
consciência, por conta própria, tomara sempre a defesa de Hortênsia e insistia
em mostrá-la cercada de um grande prestígio venerando e respeitável.
— A consciência agora que falasse!
E refocilava-se todo com o seu
triunfo. — Agora é que ele queria saber quem tinha razão; sim, porque, enquanto
procurava convencer-se de que devia esperar de Hortênsia aquilo mesmo, a
rezingueira da consciência saltava-lhe em cima com um nunca terminar de razões
e apresentava-lhe a “excelente senhora” cada vez mais pura e menos acessível! E
eis que, de supetão, quando menos se esperava, erguiam-se os fatos brutalmente
para desmentir uma impostura.
E ele sorria, vendo as asas do anjo
baquearem a seus pés, murchas e retraídas, como os galhos de uma árvore
arrancados pelo nordeste.
— Bem dizia Simões: “Quando te
começarem as aventuras...” E melhor ainda Dr. Freitas: “Para conquistar as
mulheres são apenas quatro coisas necessárias: audácia, boas relações, um pouco
de inteligência e não ser seu marido!”
E os fatos, como disciplinados por
estas palavras, formavam ala e começavam a cantar as vitórias do estudante. Na
sua lógica indiscutível afirmavam eles que Hortênsia, o tal modelo de
severidade e pureza, morria de amores por Amâncio, que o desejava ardentemente,
que se entregaria na primeira ocasião, fazendo loucuras, dando escândalos, que
nem uma heroína de romance!
— Está segura! exclamou o rapaz,
sacudido por estas idéias. O sangue saltava-lhe no corpo; aquela aventura se
lhe afigurava a melhor de sua vida; seu orgulho pueril, de namorador vulgar,
espinoteava qual potro que se pilha às soltas no prado verdejante e proibido.
As outras conquistas vinham logo chamadas por aquelas, e todas as vítimas de
sua sensibilidade, ou as cúmplices do seu temperamento e da sua má educação,
enfileiravam-se defronte dele, como um submisso batalhão de prisioneiros.
Chegou a casa ao amanhecer e não
dormiu logo. Os pensamentos revoavam-lhe no cérebro com o frenesi de folhas
secas, redemoinhadas pelo vento.
X
Dormiu mal; os sonhos não o deixaram
em paz.
A princípio, todavia, foram
agradáveis: ternos episódios de amores fáceis que se encadeavam confusamente, e
nos quais as sensações vinham e fugiam de um modo incerto e deleitoso; depois
os sonhos maus, os pesadelos.
Nestes, as mulheres entravam por
incidente, sempre duvidosas; vultos sinistros, de cabelos desgrenhados, rosto
lívidos, surgiam em torno dele e iam-se aproximando, até lhe ficarem cara à
cara, num contato frio e incômodo de carne morta. Depois sonhava-se em casa da
família, voltando, porém, justamente do baile de Melo: tinha muita necessidade
de repouso, queria continuar a dormir, mas a voz ríspida do pai berrava por ele
da porta do quarto: “Anda daí, mandrião! Basta de cama! Vê se queres que eu te
vá buscar!” E aquela voz terrível dava-lhe a todo o corpo tremor de medo, e, ao
estrondo que ela fazia, vultos cor-de-rosa, e cabelos louros, fugiam
espavoridos, como as rãs que se atiram na água, assustadas pelas presença de um
boi.
Amâncio queria também fugir, mas
suas pernas pareciam troncos de árvores seguros ao chão; queria gritar, mas a
língua inchava-lhe na boca.
Acordou muito fatigado e aborrecido
às duas horas da tarde.
Logo que apareceu na sala de jantar,
Mme. Brizard fez-lhe entrega de um belo ramilhete, que lhe haviam remetido, a
ele, com um cartão. Amâncio apressou-se a ler. O escrito dizia simplesmente:
“Ao Dr. Amâncio de Vasconcelos — uma sua amiga.”
Cruzaram-se os penetrantes risos
adequados ao fato. O rapaz, intimamente lisonjeado, fingiu não se impressionar
com aquela manifestação; leu, porém, o bilhete mais duas, três, quatro vezes.
Era letra de mulher, de Hortênsia
sem dúvida. Estava ali a sua alma, o fogo de seus olhos. Ele cheirou o pequeno
pedaço de papel, e pensou sentir o mesmo perfume que, na véspera, durante a
valsa, o tinha penetrado até à medula.
Achavam-se presentes Dr. Tavares,
Pereira, o gentleman e Lúcia. Disseram alguma coisa sobre aquelas
flores, menos a última, que, junto à janela, parecia preocupada com um livro de
capa roxa. O gentleman falou de botânica a propósito de uma dália
vermelha que havia no ramo. Afiançou
que esta flor possuía em si tantas flores quantas eram as pétalas de que
constava.
— Flores perfeitas, com todos os
órgãos, Sr. Amâncio — estames, cálice, tudo!
Amâncio, enquanto Lambertosa
discorria sobre a dália, leu ainda uma vez o cartão, e, ao levantar a vista,
reparou que Nini o fixava, cada vez mais insistente.
Amélia dera-se por incomodada e não
veio à mesa.
O jantar correu, pois, muito frio e
constrangido a princípio; pouco se conversava e quase ninguém tinha vontade de
rir. Dir-se-ia que Amâncio a todos comunicava o seu fastio e o seu cansaço.
Só pela sobremesa Dr. Tavares
narrou, como de costume, algumas anedotas jurídicas que presenciara na
província. Uma delas tinha referência a uma certa velha que fora aos tribunais
por haver desancado as costelas do genro.
Mme. Brizard tomou a defesa das
sogras, e aproveitou a ocasião para falar no marido de sua filha mais
velha.
— Vai muito da educação e também um
pouco do costume em que a gente os põe!... acrescentou ela autoritariamente. —
Mas, genro, não queria que houvesse outro como o defunto marido de Nini. — Era
um perfeito cavalheiro! Mme. Brizard nunca lhe vira a cara fechada, nem lhe
surpreendera um gesto mais arrevesado. Ele só a chamava, a ela, de “mãezinha”;
sempre lhe trazia guloseimas da rua, e, aos domingos, pela manhã, dava-lhe um
beijo na testa, impreterivelmente! — Ah! Era uma santa criatura!
Nini suspirou e pôs-se a chorar em
silêncio.
— Agora temos choro!... pensou
Amâncio com tédio.
Nini, como se adivinhara tal
pensamento, olhou para ele e pediu perdão com um sorriso, ainda mais triste que
o choro.
— Eu sou aqui da opinião do Sr.
Amâncio de Vasconcelos... disse o gentleman a Mme. Brizard, em tom
discreto.
Mme. Brizard não sabia, porém, do
que tratava Lambertosa.
— Ah! volveu este. — Refiro-me ao
que avançou anteontem o nosso ilustre companheiro, e indicou Amâncio com um
gesto — que avançou a respeito da vantagem que um novo casamento traria, sem
dúvida, à senhora sua filha.
— Ah! fez Mme. Brizard — já não me
lembrava disso. O Sr...
— Lambertosa, minha senhora.
Lambertosa...
— Sr. Lambertosa é então de opinião
que o casamento convém às enfermidades nervosas?...
O gentleman concentrou a
fisionomia, limpou o bigode ao guardanapo, ergueu uma faca, e principiou a
emitir o seu judicioso e meditado parecer.
Surgiram logo as contendas. Lúcia marcou
a página do livro de capa roxa e olhou muito séria para os outros, pronta a dar
a sua réplica. Mme. Brizard, enquanto os mais discutiam, tamborilava com os
dedos sobre a mesa, a fitar um queijo de Minas, com um gesto profundo e
repassado de filosofismo. Pereira comia consecutivos pedaços de pão, sem abrir
os olhos, e Amâncio procurava uma evasiva para se escafeder.
Afinal, Coqueiro, que havia já
formado um grupo à parte com Dr. Tavares, quis fechar a discussão; mas o
advogado ergueu-se de súbito, segurou as costas da cadeira, arregalou os olhos,
e desencadeou a sua eloqüência.
Em pouco, só ele falava, esquecido,
como de costume, do lugar e da situação. Imaginava-se já num tribunal, em pleno
exercício de suas funções.
Pintou floreadamente o lamentável
estado de Nini. Qualificou-a de “vítima inocente dos impenetráveis caprichos de
Deus”; descreveu a dolorosa expressão do semblante da “infeliz moça”; disse que
os olhos dela falavam a misteriosa linguagem do amor, e, quando se dispunha a
dar afinal a sua esperada opinião sobre o casamento, a pobre enferma, muito
vendida com o que vociferava o tagarela a seu respeito, abriu a soluçar
estrepitosamente.
A francesa ergueu-se, de mau humor,
para pedir ao Dr. Tavares que se deixasse daquilo “por amor de Deus!”. Doutro
lado Coqueiro também lhe suplicava que se calasse.
Mas o demônio do homem já não se
podia conter. As palavras borbotavam-lhe da língua, como o sangue de uma
facada. Fez imagens poéticas sobre o casamento, citou nomes históricos, e
jurou, à fé de suas convicções “que aquela desventurada criatura precisava de
um esposo, mais do que as flores carecem do orvalho; mais do que as aves
carecem do ar; mas do que os cérebros carecem de luz!”
E, erguendo as mãos trêmulas, recuou
dois passos e foi dar de encontro ao copeiro que, por detrás dele, embasbacado,
o escutava atentamente, com a bandeja do café nos braços, à espera de uma
ocasião para apresentar as xícaras.
Mme. Brizard assustou-se, o gentleman
deu um salto para não sujar as calças; rolou ao chão uma garrafa, e César, o
menino sublime, vendo que os mais velhos faziam tanta bulha, também se pôs a
berrar.
Coqueiro gritava que se acomodassem
por piedade.
— Aquilo não tinha jeito! Parecia
haver ali uma súcia de doidos! Oh!
A mucama acudiu da cozinha, e
Amélia, com um lenço amarrado na cabeça, apareceu na porta de seu quarto, muito
intrigada com o motim. Só Pereira continuava, inalteravelmente, a comer pedaços
de pão; é verdade que abriu os olhos duas vezes, mas tornou logo a fechá-los e,
segundo todas as probabilidades, adormeceu.
Amâncio tratou de aproveitar a
confusão para fugir da varanda.
— Que espécie de gente esquisita!...
dizia ele a caminho do quarto. — Nada! Aqui ainda estou pior do que na casa do
Campos!
Antes de chegar ao gabinete, percebeu
que alguém o seguia com dificuldade. A sala de visitas estava já totalmente às
escuras. Voltou-se, e, sem ter tempo de dizer palavra, sentiu cair sobre ele um
corpo gordo e mole.
Era Nini.
Amâncio, surpreso e contrariado,
quis arredá-la, mas a histérica passou-lhe os braços em volta do pescoço e
desatou a chorar, com o rosto escondido no seu colo.
— Hein?! disse Amâncio. — Que
história é esta?!
Mas lembrou-se logo das
recomendações de Mme. Brizard: “Qualquer contrariedade poderia provocar à
infeliz rapariga uma crise perigosa!”
— Ora esta!... pensou ele
aborrecido. — Ora esta!...
E procurou afastar Nini,
brandamente. E, como a teimosa não quisesse obedecer e continuasse a chorar,
ele disse-lhe palavras amigas, pediu-lhe, quase com ternura, que voltasse à
varanda; lembrou que não era prudente ficarem ali, sozinhos e no escuro. — Podiam ser surpreendidos! Esta idéia o
aterrava mais pelo ridículo do que pela responsabilidade daquela situação.
Nini entretanto, parecia não ouvir
coisa alguma e continuava a abraçá-lo freneticamente, com ímpetos nervosos.
Amâncio perdeu de todo a paciência e
arrancou-se violentamente dos braços dela.
— Deixe-me! gritou, e correu para o
quarto.
Nini acompanhou-o chorando, e
conseguiu agarrá-lo de novo, pelo paletó.
Estava muito nervosa e dispunha
agora de uma força extraordinária.
— Isto não será um inferno?!
exclamou o rapaz, puxando a roupa das mãos de Nini. E, vendo que ela não o
largava: — Solte-me, com a breca! Ora essa! Que diabo quer a senhora de mim?!
Solte-me! Arre!
A enferma não fez caso e apertou-lhe
os pulsos; seus dedos pareciam tenazes. Amâncio debatia-se brutalmente,
ouvindo-a bufar, muito agoniada, e sentindo-lhe de vez em quando o suor frio do
pescoço e do rosto.
Na sala de jantar serenara a
discussão; só a voz de Tavares ainda se destacava. De repente puseram-se todos
a chamar por Nini.
— Olhe disse-lhe Amâncio. — Lá
dentro a estão chamando! Vá! Vá!
Ela, nem assim.
— Ora pílulas! resmungou o
estudante, desprendendo-se com um empurrão. E ganhou o quarto, puxando a porta
sobre si.
Ouviu-se então o baque surdo do
corpo pesado de Nini, que foi por terra; em seguida gritos muito agudos.
Correram todos para a sala de
visitas; acenderam-se os candeeiros. Nini escabujava no chão, a gritar,
esfrangalhando as roupas e mordendo os punhos.
Coqueiro e Mme. Brizard
apoderaram-se logo da infeliz. Amâncio apareceu com um frasquinho de vinagre;
Lambertosa receitou uma dose homeopática e correu ao quarto em busca da botica
(a homeopatia era uma de suas paixões); Lúcia voltou para a varanda. “Que a
desculpassem, mas não podia assistir, a sangue frio, a cenas daquela ordem...
Não estava mais em suas mãos!”
*
* *
Pereira já se havia levantado da
mesa e ressonava na costumada preguiçosa.
Lúcia, ao passar por ele, atirou-lhe
um olhar de tédio e disse consigo:
— Olha que estafermo!...
Ela às vezes tomava-lhe grande nojo,
não o podia ver com aquele ar mole, de mulher grávida, com aquelas pálpebras
descaídas, a comerem-lhe os olhos, com aquele sorriso apalermado, aquela voz
derramada pelos cantos da boca, que nem um caldo frio e seboso.
De quando em quando sofria de
insônias, e, justamente nessas ocasiões, nas horas compridas da noite em claro,
é que mais detestava Pereira. Punha-se a contemplá-lo longamente, com asco,
fartando-se de olhar para aquele “pamonha”, aquele “coisa inútil”, que ali ao
seu lado, dormia todo encolhido, com as mãos entre as coxas. Vinham-lhe
frenesis de enchê-lo de pescoções. Já lhe não podia suportar o cheiro doentio
do corpo; não lhe podia sentir a umidade pegajosa do suor e a morna fedentina
do hálito.
A sua ligação àquele mono era uma
história muito triste e muito sensaborona. Poucos, bem poucos a sabiam, porque
Lúcia se esforçava quanto lhe era possível por escondê-la, como quem esconde uma
chaga vergonhosa.
Ela, “a mísera senhora”, vinha,
entretanto, de gente honesta e bem conceituada, se bem que muito pouco
escrupulosa em pontos de educação. Deram-lhe professores de francês, de música,
de desenho; entregaram-lhe enfiadas de romances banais e livros de maus versos;
e, todavia, não lhe deram moral, nem trataram de lhe formar o caráter. A
desgraçada percorreu bailes desde pequena; ouviu o primeiro galanteio aos dez
anos de idade; teve a primeira paixão aos doze; aos quinze julgava-se desiludida
e sonhava com o túmulo; aos vinte, como é natural, sucumbiu ao palavreado de um
primo em segundo grau e bacharel pelo Pedro II.
O primo, assim que a viu pejada,
azulou para o Rio Grande do Sul, onde tinha a família, e nunca mais lhe deu
sinal de si.
Foi então que surgiu em Lúcia a
idéia de utilizar-se de Pereira. Entre as pessoas que freqüentavam a casa de
seus pais, era ele o único aproveitável para casamento. Nesse tempo vivia o
dorminhoco às sopas de um tio suspeito de riqueza aferrolhada, e de quem mais
tarde, diziam, havia de herdar o dinheiro. Lúcia meteu as mãos à obra, mas, por
pouco que não desanimou; Pereira não dava de si coisa alguma, parecia não
compreender as provocações. Era quase impossível tirar algum partido daquele
animalejo! Ela, porém , não se quis dar como vencida, e lutou.
Lutou, empregando os meios mais
ardilosos para injetar nos nervos daquele sonâmbulo uma faísca magnética de
amor. Trabalho inútil! Afinal, vendo que o pedaço de asno era incapaz de
qualquer ação ou reação, tomou ela a parte agressiva; e a coisa resolveu-se no
mesmo instante.
Depois, como não havia tempo a
perder e porque já conhecia bem a pachorra do seu homem, foi pessoalmente ao
encontro dele, meteu-se-lhe em casa e protestou que faria um escândalo dos
diabos, se o “sedutor” não tratasse, quanto antes, de tomar uma resolução muito
séria a respeito de casamento.
Pereira não tratou de tomar coisa
alguma desta vida e nem se abalou com a presença de Lúcia. Aceitou-a, como
aceitaria outra qualquer imposição, porque ele era dos tais que, às maçadas da
cura, preferem os incômodos da moléstia. Só no fim de quatro dias de
lua-de-mel, como Lúcia insistisse nas suas idéias matrimoniais, o pachorrento
declarou, com toda a calma, que não lhe podia fazer a vontade nesse ponto, em
virtude de que, desde aos dezoito anos, o haviam casado com uma velha, uma
fúria, que Pereira não sabia, nem queria saber, por onde andava.
Lúcia perdeu os sentidos; esteve à
morte. Os pais, envergonhados com o procedimento indigno da filha, tinham-se
ido refugiar na cidade de Campos. Foi o tio de Pereira, o tal das riquezas
aferrolhadas, quem a salvou; era um velho ainda bem forte e muito mais esperto
que o sobrinho. Deu-lhe casa, comida, roupa e dinheiro.
Uma irmã dele, senhora de inveterado
amor a crianças, solteirona, de quarenta a cinqüenta anos e que, com o olho no
testamento, desejava a todo o transe ser agradável ao mano, encarregou-se do
filho do bacharel.
Correram quatro anos. Lúcia não viu
mais a família; apenas visitava o filho, de quando em quando.
Pereira continuava às sopas do tio,
indiferentemente, como se tudo aquilo não lhe dissesse respeito. Acordava, quer
dizer, levantava-se às dez horas, tomava no quarto o seu banho morno, depois um
copo de leite fervido, almoçava às onze, fazia a digestão estendido no sofá da
sala; às duas horas dormia, depois passeava pela chácara à espera do jantar,
cujo quilo era de rigor ser feito a sono solto em uma rede que ele tinha no
quarto.
À noite, quando conseguia
levantar-se jogava o gamão com o tio. Cochilavam ambos, até que se servia o
chá, e cada um se retirava para a cama.
— A noite fez-se para dormir!
Sentenciava um deles.
— E o dia para se descansar,
resmungava o outro espreguiçando-se.
E recolhiam-se.
O velho morreu de repente; uma congestão
que lhe sobreveio ao encontrar Lúcia no fundo do jardim às voltas com um
estudante da vizinhança.
— Bom! dissera Lúcia, alijada afinal
daquela obrigação que já lhe ia pesando demais. E fariscou o testamento. Mas o
velhaco apenas deixava algumas dívidas à praça e dois terrenos hipotecados ao
Banco Predial. A coisa única que ela aproveitou foi Cora, mulatinha de criação,
cuja matrícula e cuja escritura de compra estavam em seu nome.
Era preciso, pois, deixar a casa; os
credores reclamavam tudo que pudesse dar dinheiro. Pereira sacudia os ombros;
dir-se-ia que não houvera a menor alteração na sua vida. Continuava a dormir
tranqüilamente, como se as sopas do tio ainda o fossem procurar às horas da
refeição.
Lúcia compreendeu que não devia
contar com ele, e tratou em pessoa um cômodo para os dois, num hotel de
arrabalde. Sentia-se resoluta e forte: era ela agora o cabeça do casal; tinha
belos projetos de trabalho: daria lições de piano, de desenho e de francês, até
que aparecesse um homem para substituir o estafermo do Pereira.
O homem, porém, não aparecia, como
não apareciam os discípulos.
Principiou então para eles um viver
perfeitamente de boêmios. Sem trastes, nem dinheiro, nem futuro, nem relações
constituídas, andavam aquelas duas almas perdidas e mais a Cora, que adorava a
senhora, a percorrer as casas de pensão: sempre sobressaltados, sempre
perseguidos pelos credores que iam deixando atrás de si.
Em cada lugar se demoravam o maior
tempo que podiam, dois, três, quanto muito quatro meses; até que lhe suspendiam
o crédito e os dois levantavam, novamente o vôo, deixando a dívida em aberto e
o dono da casa lívido, colérico, sem saber ao menos que direção tomavam os
vagabundos.
Nesse peregrinar, Lúcia teve uma
contrariedade mais profunda — achou-se grávida de novo. Cora deu-lhe conselho,
trouxe-lhe remédios para fazer abortar; nada entretanto, produziu efeito. O
demônio da criança parecia disputar o seu quinhão de vida com uma persistência
desesperadora.
Nasceu afinal, no quarto de um
português na Fábrica das Chitas, entre os cuidados mercenários do
locandeiro e o obséquio de alguns amigos, que Lúcia fora conquistando com as
simpatias de seu talento musical.
O diabinho pouco durou, felizmente.
Desapareceu uns trinta dias depois de ter vindo ao mundo. Morreu mesmo na rua,
quando os pais, dentro de um carro de aluguel, fugiam aflitos da Fábrica das
Chitas para uma casa de pensão na Rua do Catete.
Cora encarregou-se de atirá-lo ao
mar. Ninguém viu. Seriam duas horas da madrugada e as brisas marinhas pulverizavam
no ar um chuvisco miúdo, de fevereiro.
O menino fora muito franzino e muito
mole; saíra o pai, Pereira. Durante o seu pobre mês de vida só abriu os olhos
uma vez, ao expirar.
A casa de pensão do Coqueiro era a
sexta que Lúcia percorria com o suposto marido. Apresentavam-se sempre como
casados; ele muito tranqüilo de sua vida, feliz; ela inquieta, sôfrega pelo tal
sujeito, que com tanto empenho procurava.
Quando constou a Lúcia que Amâncio
era rico e atoleimado, uma nova esperança radiou-lhe no coração.
— É agora!... disse.
*
* *
E preparou-se para o combate.
Foi por isso que o estudante
recebeu, no dia seguinte ao baile do Melo, aquele ramilhete, tão falsamente
atribuído a Hortênsia, e porque, uma semana depois outro ramo, bastante parecido
com o primeiro, se achava às onze horas da noite no quarto do rapaz, sobre a
cômoda.
— Olé! disse ele.
E, satisfeito com a intriga,
principiou a fazer conjeturas.
— De quem viriam aquelas flores!...
Ah! exclamou, descobrindo um bilhetinho, escondido entre duas rosas.
E leu:
“Não saibam nunca espíritos
indiferentes, nem mesmo tu, adorado fantasista, quem te envia estas pobres
flores. Não o procures descobrir; deixa que o meu segredo viceje e cresça na
tepidez do mistério, à semelhança das plantas melancólicas que reverdecem nas
sombras ignoradas dos rochedos. Eu te amo!”
— Seria de Amélia, seria de Lúcia,
ou seria de Hortênsia?... De Nini é que não podia ser, porque a desgraçada, com
certeza, não sabia escrever coisas daquela ordem!
Não dormiu essa noite; as palavras
de ramilhete voejavam-lhe dentro da cabeça, como um bando de mariposas.
— De quem seria?... De Amélia não,
não era de se supor; pois que a bonita menina, longe de o provocar, fugia
sempre que ele por qualquer modo tentava abrir-se com ela em questões de amor;
de Hortênsia também não, não era natural que fosse, porque, em tal caso, Mme.
Brizard, ou qualquer outra pessoa de casa, teria visto o portador. Além disso,
mulher de Campos não seria capaz daquilo; estava caidinha — é certo! mas não
levaria a leviandade ao ponto de escrever e enviar-lhe semelhante declaração. O
que, porém, não sofria dúvida é que os ramos tinham a mesma procedência.
E Lúcia?... É verdade! E Lúcia? Com
certeza não era de outra! Sim tudo estava a dizer que o tal bilhetinho saíra de
suas mãos!... aquelas frases poéticas, aquele mistério, aquela franqueza de
confessar o seu amor em duas palavras... Não tinha que ver! era da mulher de
Pereira!
E um apetite brutal, inadiável,
substituiu logo a calma simpatia que lhe inspirara Lúcia.
Desde que se capacitou de que eram
dela os ramilhetes, desejou-a com urgência; queria que ela surgisse ali,
naquele mesmo instante, na silenciosa escuridão daquele quarto.
E voltava-se de um para outro lado
da cama, sem conseguir pegar no sono.
Esperar até o dia seguinte o momento
de estar com ela afigurava-se-lhe um sacrifício enorme, quase invencível. Como
podia lá descansar, dormir, com semelhante preocupação a remexer-se-lhe por
dentro, como um feto doido que lhe mordesse as entranhas?
Definitivamente não conseguia
adormecer. Levantou-se, acendeu um cigarro, abriu a janela, e pôs-se a olhar
para a lua que estava boa essa noite. Vieram-lhe logo as conjeturas sobre o
como seria a situação, no caso que Lúcia aparecesse ali, naquele instante. “Que
sucederia?... Que fariam eles?...”
Duas horas bateram na sala de
jantar.
— Diabo! resmungou Amâncio, sentindo
arrepios por todo o corpo. — Desta forma perco a noite inteira, e amanhã estou
impossibilitado de ir à academia!...
A idéia do estudo apresentava-se-lhe
sempre com um sabor muito amargo de sacrifício. Lembrou-se, todavia, de
aproveitar a insônia para correr uma vista de olhos pela lição; acendeu a vela,
corajosamente, assentou-se à mesinha que havia no quarto e abriu um compêndio.
Mas não conseguia prestar atenção à leitura; percorreu distraído duas ou três
páginas e ficou a olhar a chama trêmula da vela, cada vez mais abstrato e mais
febril.
Sentiu vontade de beber. — Se não
estava enganado — a garrafa de conhaque ficara sobre o aparador, na varanda.
Ergueu-se, enfiou o sobretudo e saiu
da alcova.
O sangue não lhe queria ficar
quieto. A continuar daquele modo, o remédio que tinha era pôr-se ao fresco e
vagar pelas ruas, até encontrar sossego.
O conhaque não estava no aparador,
Amâncio, contrariado, desceu à chácara, e foi assentar-se a um banco de pedra.
— Naquele momento comeria alguma coisa, se houvesse, pensou ele, resolvido a
organizar no dia seguinte um bufê no seu próprio quarto.
A lua escondia-se agora entre
nuvens; as árvores rumorejavam; tudo parecia concentrado e adormecido.
Debaixo viam-se as janelas dos
quatro cômodos do segundo andar, que davam para a chácara. Lá estava o n.os
8, 9, 10 e 11. Começou a pensar nos hóspedes daqueles quartos: o 11 era do tal
Correa, o médico que só aparecia ali de quando em quando, “para fazer uns
trabalhos que os filhos não lhe permitiam em casa da família”; o 10 era do gentleman
— Bom maçante! Amâncio lembrou-se de que lhe prometera acompanhá-lo uma noite
qualquer ao Passeio Público. — Havia de ir, disseram-lhe que às vezes se
encontravam aí boas coisas!...
O 9 é que ele não se lembrava a quem
pertencia... Ah! era do tal Melinho, “a pérola”, como o qualificava João
Coqueiro constantemente.
E o 8 de Lúcia! da misteriosa Lúcia!
Ela estava ali!... fazendo o quê...
pensando nele talvez... talvez dormindo... talvez até nem dela fosse o
bilhetinho amoroso e os dois ramilhetes!... Quem, sabia lá!...
E esta dúvida o apoquentava.
— Ora adeus! disse. — A ocasião
havia de chegar!...
Veio-lhe, porém, uma tentação aguda
de subir ao n.º 8.
— Que mal podia vir daí?... O marido
com certeza estava dormindo!... Que poderia acontecer?...
Levantou-se resolvido; mas as
vidraças do quarto do tal médico, que só aparecia de quando em quando, acabavam
de iluminar-se.
— Olá!... considerou Amâncio,
detendo-se. É o n.º 11?
Por detrás dos vidros havia cortinas
de cassa; nada se podia ver para dentro, apenas duas sombras difusas
projetavam-se na cambraia, ora aumentando, ora diminuindo. Amâncio deixou-se
ficar onde estava, mordido já de curiosidade.
Daí a uns dez minutos, pela
escadinha do fundo, desciam cautelosamente, um sujeito alto, todo de escuro e
mais uma mulher gorda, de enorme chapéu, cujas abas lhe caíam sobre os olhos,
ensombrando-lhe o rosto.
Vinha um atrás do outro, porque a
escada era estreita. Atravessaram a chácara, falando em voz baixa, e entraram
no corredor.
Amâncio acompanhou-os, de longe, e
tripetrepe.
A porta da rua estava aberta, como
de costume; um carro esperava pelos dois lá fora; o cocheiro dormia na boléia.
O sujeito do n.º 11 deu a mão à mulher das grandes abas, ajudou-a a entrar na
carruagem e, em seguida entrou também. O cocheiro fechou sobre eles a
portinhola, sem lhes dar palavra, depois saltou para o seu posto e tocou os
animais.
— E que tal?... interrogou Amâncio
de si para si, quando os viu partir.
Lembrou-se então do que lhe dissera
o velhaco de Coqueiro por ocasião de mostrar-lhe a casa: “Quanto a certas
visitas... isso tem paciência... lá fora o que quiseres, mas, daquela porta
para dentro...”
— Hipócritas! pluralizou o
estudante.
*
* *
E encaminhou-se para o segundo
andar.
Subiu pela escadinha do fundo, não a do médico, mas pela
outra do lado oposto; porque havia duas.
O primeiro andar continuava em
completo silêncio; no segundo apenas se ouvia, de espaço a espaço, um tossir
seco e agoniado, que vinha naturalmente do n.º 7, onde morava o tal moço
doente. O pobre diabo piorava à falta absoluta de meios.
Amâncio entrou às apalpadelas no
corredor que dividia os oito quartos. O luar filtrava-se a custo pelas
venezianas e pelas vidraças da janela e sarapintava o chão de pequeninos pontos
brancos.
O n.º 5, onde residia Paula Mendes
com a mulher, era o único que tinha luz; uma forte claridade rebentava por cima
da porta fechada e ia projetar-se na parede do n.º 10 que lhe ficava fronteiro.
Mas ainda assim o corredor estava bem escuro.
Amâncio parou defronte do n.º 8. — Era ali!
Encostou o ouvido à fechadura; nem
sinal de vida. — Lúcia com certeza dormia profundamente.
— Dormia! pensou o estudante. —
Dormia, sem preocupações nem cuidados; ao passo que ele, por não encontrar
descanso, errava pelos corredores desertos, como uma alma penada! — Para que
então se lembrara aquela mulher de ir mexer com ele?!... Se a sua intenção era
dormir, para que o foi provocar? para que lhe foi bulir com o sangue? Oh!
aquele silêncio do n.º 8 o irritava! Aquela indiferença afigurava-se-lhe uma
afronta ao seu amor próprio, um atentado contra o seu orgulho!
E, quando mais se convencia da
impossibilidade de falar essa noite a Lúcia, mais e mais os seus sentidos se
assanhavam! Afinal, já não fazia grande questão de ser com ela própria;
aceitaria qualquer outra que o arrancasse daquela ansiedade em que se via
entalado, como se estivesse dentro de uma armadura em brasa.
— Que inferno! dizia ele consigo,
rangendo os dentes. — Que inferno!
E, sem ânimo de ir embora,
permanecia encostado à porta do n.º 8, deixando-se comer aos bocadinhos pela
febre do seu desejo; ao passo que o corpo inteiro lhe arfava com o resfolegar
aflitivo dos pulmões.
— Todavia, pensou ele — quantas
mulheres não o desejariam ter junto de si naquele momento?... Donzelas até,
quantas, naquele instante, não se estorceriam no leito e não morderiam os
travesseiros, desvairadas pelo isolamento?
E saborosas lembranças de amores
extintos, que o tempo e a ausência tornavam mais perfeitos e mais desejáveis,
acudiam-lhe simultaneamente ao espírito, para lhe aumentar as torturas da
carne. As suas amantes do passado eram agora ainda mais atraentes e formosas;
em todas elas não havia um lábio sem sorriso, um olhar sem fogo, era tudo
opulento de graça e de meiguice, era tudo encantador e completo.
Pôs-se a arranhar devagarinho a
porta, dizendo quase em segredo o nome de Lúcia. Nada, porém, respondia; o
mesmo silêncio compacto enchia as trevas do corredor.
Seu desejo, estimulado e tonto,
evocava então todos os meios de saciar-se; descobria hipóteses absurdas,
inventava possibilidades que não existiam. Amâncio chegou a pensar em Amélia,
em Mme. Brizard, na macuma, e até, que horror! em Nini!
— Ai, meu Deus! gemeu nesse instante
o doente do n.º 7.
O estudante deixou a porta de Lúcia
e seguiu em ponta de pé pelo corredor. Ao passar defronte do quarto de Paula
Mendes, suspendeu o passo; a luz continuava com a mesma intensidade; o curioso
não resistiu a uma tentação e espiou pela fechadura.
O pobre homem trabalhava, vergado
sobre uma mesinha estreita e toda coberta de papéis de música. Ao lado, pelas
cadeiras e sobre um sofá de couro negro encostado a um biombo, havia folhas
esparsas e cadernetas empilhadas.
Recebera nessa tarde a encomenda de
organizar uma sinfonia, que tinha de ser executada daí a quatro dias em uma
festa fora da cidade. O Imperador prometeu que iria.
Mendes estava ainda organizando as
partes cavadas. Ouvia-se o ranger da pena no papel grosso de Holanda, o
tique-taque de um despertador de metal branco, pousado sobre a cômoda, e o
grosso ressonar da mulher, que dormia por detrás do biombo. O rabequista
parecia menos triste aquela ocasião do que nas outras em que o vira Amâncio.
— É porque a mulher está dormindo,
calculou este, lembrando-se do mau gênio de Catarina. E considerou sobre a
existência ordinária que levariam ali, encurraladas no mesmo cubículo, aquelas
criaturas tão opostas.
Mendes, sem desprender a pena do
papel, começou a solfejar em voz baixa o que escrevia; mas, como lá dentro
cessassem os roncos da mulher e esta se remexesse na cama, resmungando, ele
incontinente, calou a boca e prosseguiu em silêncio no seu trabalho.
— Ainda estás com isso?! perguntou
ela, afinal, depois de uma pausa.
O marido respondeu afirmativamente.
— Pois, homem, vê se acabas com essa
porcaria! Bem sabes que, enquanto houver luz no quarto, não posso pregar o
olho!
E, fazendo ranger as tábuas da cama,
virou-se de um lado para outro, acrescentando com a sua voz de homem:
— Deixa isso! Anda! E apaga o diabo
dessa luz!
— Não, filha, respondeu o artista
brandamente. — É preciso que este serviço fique pronto amanhã...
E depois de um muxoxo da mulher:
— Sabes o quanto precisamos deste
dinheiro... A diretora do colégio ainda ontem protestou que despediria a
pequena, se eu não lhe arranjasse alguma coisa por conta do que devemos;
Joãozinho, coitado, há quase dois meses pediu-me que lhe levasse um sobretudo,
porque lá no trapiche onde ele agora está trabalhando, faz pela manhã um frio
de rachar; Mme. Brizard, você não ignora, tem-nos apoquentado e...
— É isto! interrompeu a mulher. — É
sempre a mesma cantiga! — De tudo você se lembra, menos do que eu preciso!
— Ah! se me lembro, filha! mas é que
nem sempre a gente pode fazer o que deseja... Descansa, porém, que as coisas
hão de endireitar e tu possuirás de novo o teu piano de cauda! Tem um pouco de
paciência...
— Já me tardava essa música! Já me
tardava a “paciência”! A paciência inventou-se para consolar os tolos! Farte-se
você com ela! De conselhos estou cheia, meu amigo! Quero obras e não palavras!
Mendes não respondeu e continuou a
trabalhar, meneando a cabeça resignadamente. Catarina remexeu-se com mais
agitação e rangidos de cama, e, daí a pouco levantou-se de um salto, gritando:
— Arre, com os diabos! que nem se
pode dormir!
— Olha os vizinhos, filha!...
arriscou o marido. — Lembra-te de que são três horas da madrugada...
— Os vizinhos que se fomentem!
Berrou ela, embrulhando-se na colcha e fazendo tremer o soalho com seus passos
de granadeiro. — Não como em casa deles, não preciso deles para nada!
E, depois de ir beber um copo d’água
ao fundo do quarto:
— Tinha graça! que eu, além de tudo,
não pudesse falar à minha vontade! Melhor seria, nesse caso, que me amarrassem
uma bala aos pés e mandassem atirar comigo ao mar!
— Estás de mau humor, filha! Vê se
descansas.
— Não é de espantar, levando a vida
que eu levo! sempre numas porcarias de quartos! Se precisa de qualquer coisa, é
um “ai Jesus!”. Nunca há dinheiro! O almoço é aquilo que se sabe; o jantar pior
um pouco! Se fico doente, se tenho uma debilidade, não há quem me traga um
caldo! não há quem me dê um remédio! Arrenego de tal vida, diabo!
— Ó Catarina!... disse Mendes
ressentindo-se. — Pois eu não estou aqui?... Algum dia já me afastei de teu
lado, ao te sentires incomodada?
— E antes que se afastasse, creia!
porque já me custa suportá-lo quando
estou de saúde, quanto mais doente. Casca! — atirar-me em rosto uns miseráveis
serviços que qualquer uma faria!... Pois não os faça, que até é favor! Passo
muito melhor sem eles!
— Está bom, senhora, está bom! Não
precisa arreliar-se! Veja se descansa, que eu agora tenho que fazer!
— Descansada queria você me ver, mas
era no Caju, por uma vez, seu malvado! Pensa que encontraria o demônio de
alguma tola que caísse na asneira em que eu caí de amarrar-se a um homem de sua
laia? Um pingas! que anda sempre com sela na barriga!
E avançando para o marido de olhos
arregalados e um punho no ar:
— Mas, podes perder as esperanças,
que eu não morro, antes de ti, Mané Bocó! Primeiro hás de ir tu, entendes? —
Ah! Supunhas que eu levaria a roer uma vida de chifre e depois rebentava por
aí, enquanto ficavas por cá a te lamberes de contente! — Um sebo! Hei de ir,
sim, as depois de te haver feito amargar também um bocado, meu burro velho!
— Ó mulher! cala essa boca do diabo!
gritou, afinal, Mendes, arrojando a pena e empurrando os papéis que tinha defronte
de si. — Arre! É muito! Arre!
O moço doente do n.º 7 expectorou
com mais força e pôs-se a gemer.
— Ora, com um milhão de demônios!
gritou o guarda-livros, que morava no n.º 6. — Não é possível sossegar neste
inferno! Quando não é a tosse e o gemido da direita, é a resinga e a briga da
esquerda! Apre! Antes morar num
hospital de doidos.
Mendes levantou-se, segurando a
cabeça com ambas as mãos, e começou a passear agitado pelo quarto.
Catarina continuava a sarrazinar,
atirando com os pés o que topava no meio da casa. O marido parou de súbito,
sacudiu a cabeça, depois foi-se chegando para a mulher e correu-lhe a mão pela
espádua nua e lustrosa, timidamente, como se afagasse a anca de uma égua
bravia.
— Então, filha?... disse com
ternura. — Vai deitar, vai!... Estamos aqui a incomodar os outros... Anda vai!
— Os incomodados são os que se mudam! gritou ela.
— E é o que vou tratar de fazer
amanhã mesmo! berrou o guarda-livros. — Estou farto! Quem trabalha durante o
dia, precisa da noite para descansar! Arre!
— Não faça caso, senhor!... disse
Mendes, e encaminhou-se para a porta.
Amâncio, assim que o sentiu
aproximar-se, fugiu pé ante pé, com ligeireza.
Nesse momento, Campelo, o tal
esquisitão do n.º 4, que até aí não dera sinal de si, levantou-se tranqüilamente,
tomou o seu clarinete, e começou por acinte, a tirar do instrumento as notas
mais estranhas e atormentadoras que se podem imaginar. O guarda-livros
respondeu-lhe batendo com a bengala nas paredes de tabique e berrando, como um
doido, o Zé Pereira.
— Ai, meu Deus! ai, meu Deus!
continuava a gemer arrastadamente o pobre sujeito do n.º 7.
Já pelas escadas, Amâncio ouviu as
vozes do gentleman, do Melinho e de Lúcia, que acordaram espantados, e
aos gritos reclamavam contra semelhante abuso.
No andar de baixo, Piloto, Dr.
Tavares, Fontes e a mulher, abriam as portas dos competentes quartos para
indagar que diabo queria aquilo dizer. Só o dorminhoco do Pereira não se deu
por achado.
Amâncio já estava entre os lençóis,
quando Coqueiro percorreu toda a casa, de robe de chambre e um castiçal
na mão.
XI
O guarda-livros, no dia seguinte
pela manhã declarou a Mme. Brizard que se retirava da casa de pensão.
— Oh! disse. — Não estava disposto a
suportar por mais tempo aquele zungú! os seus vizinhos eram uma gente
impossível! — Não se passava uma noite em que não houvesse chinfrinada!... Não!
definitivamente não podia ficar! De mais — o tísico do n.º 7 não lhe dava um
momento de descanso com o diabo de uma tosse, que parecia aumentar todos os
dias! Nada! antes tomar um quarto no
inferno!
Mme. Brizard e o marido procuravam
dissuadi-lo de tal resolução. Não lhes convinha perder um hóspede tão bom.
O guarda-livros, com efeito, era
muito pontual nos pagamentos e não incomodava pessoa alguma, porque só queria o
quarto para dormir; verdade é que não fazia o gasto de comida, mas em
compensação estava sempre a encomendar ceatas e jantares que deixavam bem bom
lucro.
A ter por conseguinte, de sair
alguém, antes fosse o tal rabequista, o tal Paula Mendes, que, sobre possuir
uma mulher insuportável, achava-se já atrasado nas suas contas, e os donos da
casa não viam muito certo o recebimento.
Catarina, assim que soube de
semelhantes considerações, desceu em três pulos ao primeiro andar e,
atravessando-se defronte de Coqueiro, com as mãos nas ilhargas, gritou-lhe,
refilando as presas:
— Repita você o que teve o
atrevimento de dizer a meu respeito e a respeito de meu marido! Repita aí, se
for capaz, que lhe mostro já para o quanto presto, seu cara de fome!
João Coqueiro, muito pálido e com o
lábio superior a tremer, exclamou que “sua casa não era Praia do Peixe”; que
ele não estava habituado “àqueles banzés”! Quem quisesse dar escândalos que
fosse lá para o meio da rua, que se fosse entender com as regateiras!
— Regateiras e regateiros são vocês,
corja de gatunos! replicou a outra.
Mme. Brizard, que por essa ocasião,
ainda no quarto, enfiava as botinas, acudiu logo, um pé calçado e outro não, e,
com tal fúria avançou contra a mulher de Paula Mendes, que Amélia, Coqueiro e
Nini não a puderam conter.
As duas atracaram-se.
Os hóspedes, que estavam em casa,
acudiram todos igualmente. Houve bordoada, gritos, palavrões. Nini teve um
ataque de nervos.
O ilustre Lambertosa levou vários
empurrões e caiu contra uma cesta de ovos, que o copeiro acabava de pousar no
chão, para socorrer às senhoras.
E, no meio de toda esta desordem,
destacava-se a voz sibilante do advogado Tavares.
— Calma, senhores! calma! bradava
ele. — Calma por quem sois! Esquecei-vos de que a única arma do homem
civilizado deve ser a palavra, escrita ou falada, mas a palavra, a idéia
enfim?!... Esquecei-vos de que cada um de vós possui um cérebro, onde reside
uma partícula da sabedoria divina, e que só com esse cabedal podeis cruzar as
vossas opiniões, sem que seja necessário vos agatanhardes como animais
ferozes?!... Virgílio, meus senhores, o imortal Virgílio o verdadeiro fundador
da eloqüência, diz muito acertadamente na sua Eneida, livro IV, com
referência à desditosa Dido — Rendet que iteram narrantis ab ore! Se
podemos, pois, convencer com palavra, para que havemos de recorrer aos
murros?!...
E, louco do costumado entusiasmo,
dava punhadas frenéticas na mesa e perguntava em torno com os olhos enviesados
e as cordoveias intumescidas:
— E o que dizia Salomão?! E o que
dizia Salomão, na sua inquebrantável sabedoria?! Salomão, meus senhores...
Mas o orador foi interrompido
violentamente por Coqueiro, que desejava saber se ele podia dispensar o seu
quarto ao guarda-livros e mudar-se para o n.º 6 do segundo andar.
Haviam combinado essa mudança
enquanto o tagarela discursava.
— Salomão! Sr. Dr. Coqueiro, Salomão
foi um prodígio!
— Pois bem, já sabemos disso, e
agora o que nos convém saber é se V. S. cede ou não cede o seu quarto...
Mas não foi necessário tal
assentimento, porque Amâncio, depois de um sinal de Lúcia, declarou que cederia
o seu gabinete por qualquer um dos quartos do segundo andar.
Coqueiro espantou-se. — Querer
trocar o gabinete por um quarto do segundo andar!... Ora, seu Amâncio!
— Faz-me conta, respondeu secamente
o provinciano. E, chegando-se para o locandeiro, acrescentou-lhe ao ouvido: —
Logo mais te direi a razão por quê...
Ficou resolvido que o guarda-livros
passaria a ocupar o gabinete de Amâncio; este iria para o n.º 6, e Paula Mendes
e mais a mulher deixariam de comer à mesa de Mme. Brizard, continuando, porém
no n.º 5, até que liquidassem as suas contas.
*
* *
Na tarde desse mesmo dia, como fizesse bom tempo, as
senhoras combinaram tomar o café na
chácara. Mme. Brizard, Amelinha, Lúcia e Nini, mal acabaram de jantar, desceram
ao terraço. Coqueiro e Amâncio já iriam também para o cavaco. — Tinham primeiro
que dar dois dedos de conversa.
Os dois rapazes meteram-se no vão de uma janela da sala de
visitas, e Amâncio, com acentuações de quem detesta imoralidades, disse ao
outro, sem transição:
— Coqueiro, estou aqui há pouco
tempo, mas estimo tua família, como se fosse a minha própria, e, pôr
conseguinte, entendo que é do meu dever abrir-me contigo sempre que nesta casa
descobrir qualquer coisa que possa ter conseqüências graves...
— Mas que há? perguntou o outro a
fitá-lo, com muito empenho.
— Trata-se de Nini, disse o
provinciano em voz soturna.
Coqueiro remexeu-se no canto da
janela.
— Sabes, continuou aquele — que a
pobre menina sofre horrivelmente dos nervos, e creio que até que tem qualquer
desarranjo na cabeça...
— Sim, por quê?
— É uma enferma, que, se não
tivermos muito cuidado com ela, pode vir a dar sérios desgostos a ti e a tua
família....
— Mas desembucha, o que é que
houve?...
— É que ela, naturalmente em
conseqüência da moléstia, coitada, às vezes faz certas coisas que... para mim
ou qualquer outro rapaz de bons princípios não valem nada, mas que, se caírem
nas mãos de um desalmado... sim! Tu bem sabes que há homens para tudo neste
mundo!...
E Amâncio, inflamado pelos
princípios morais que ele só cultivava teoricamente, parecia mais que ninguém
preocupado com a pureza dos costumes.
— Mas afinal, que fez ela?
Perguntou Coqueiro, impacientando-se.
— Ora, disse o colega,
desgostosamente — tem feito o diabo... Ainda ontem, quando me levantei da mesa,
seguiu-me até à sala e...
— E...
— Principiou a fazer tolices. A
pobrezinha estava como não calculas!... Tive que recorrer à violência para
contê-la; o resultado foi aquele ataque!...
E vendo o ar de espanto que fazia
Coqueiro:
— Digo-te isto, porque me parece que
tenho obrigação de te dizer; se, porém, faço mal, desculpa!...
— Mal? ao contrário! decerto que ao
contrário! Fico-lhe muito grato!
E abraçando-o:
— Acabas de provar que és homem de
bem! A tua ação é de um verdadeiro amigo: não imaginas o quanto eu a aprecio.
— Cumpri com o meu dever... observou
o provinciano modestamente.
— Obrigado! muito obrigado! Fico
prevenido. De hoje em diante não acontecerá outra!
— E agora, compreendes a razão por
que não me convinha ficar embaixo, no gabinete?... concluiu Amâncio.
— Oh!... Isso, porém, não era motivo
para que deixasse o seu gabinetezinho... Eu daria as providências
necessárias!...
— Não, filho, nestas questões de
família sou muito rigoroso. E agora, o que está feito, está feito! Vou para o
segundo andar; é até mais fresco!...
E, depois de ainda algumas ligeiras
considerações sobre o mesmo assunto, os dois rapazes trocaram comovidos um enérgico
aperto de mão e desceram juntos à chácara, onde, debaixo das latadas de
maracujá, os esperavam as senhoras, palestrando em familiar camaradagem.
*
* *
Dias depois, quando Amâncio já estava transferido para o n.º
6, do segundo andar, chegaram às mãos duas cartas; uma de sua mãe, outra de seu
pai.
Era a primeira vez que o velho
Vasconcelos se dirigia ao filho em carta especial.
Abriu logo a de Ângela,
sofregadamente, e a imagem da santa, que as últimas agitações da vida do rapaz
haviam nublado por instantes, como nuvens que escondem uma estrela guiadora,
mal começou a leitura, ressurgiu inteira e lúcida à memória dele.
A boa mãe queixava-se de que o
filho, ultimamente, já lhe não escrevia com a mesma assiduidade e com a mesma
expansão: “Que significava semelhante mudança? Donde vinha aquela reserva? por
que aqueles bilhetes tão apressados, quase telegráficos?”... perguntava ela com
a sua letra redonda e um pouco trêmula. “Por que não me escreves mais amiúde e
mais extensamente?” insistia a carta, “porque, meu querido filho, não me contas
toda a tua vida; não me dizes como passas, e em que te ocupas? Desejo saber se
Campos continua a ser teu amigo, se na casa dele continuas tratado como dantes.
Quero que me relates tudo, tudo que te diga respeito, meu Amâncio. Se soubesses
a falta que tu me fazes, os cuidados que me dá a tua ausência, com certeza
serias melhor para tua mãe.”
E, sempre a mesma, sempre extremosa,
sempre com o filho na idéia, envia-lhe conselhos, recomendava-lhe certas
precauçõeszinhas; as medidas que devia tomar contra tais e tais perigos; o modo
pelo qual devia proceder em tais e tais situações.
Amâncio releu várias vezes o que lhe
dizia Ângela e respirou largamente como quem sai de um quarto apertado para um
grande ar livre. Mas se a carta materna o impressionou a outra surpreendeu
porque de tão afável e condescendente não parecia derivar daquele terrível
Vasconcelos que até em sonhos o aterrava e sim das mãos amigas de um velho
camarada dos bons tempos da infância.
Estranhou-o logo, desde as primeiras
palavras.
“Meu filho.”
Até então, nunca recebera de seu pai
esse carinhoso tratamento. Vasconcelos nem ao menos o tratara por tu; nunca lhe
dera a beijar a mão ou a face, nunca lhe abrira, enfim, o coração, quando este
se achava ainda brando e maleável, para depor aí as sementes de ternura, que
desabrochariam mais tarde produzindo os bons sentimentos do homem.
Como exigir de Amâncio, que tivesse
agora as virtudes que, em estação propícia, lhe não plantaram na alma? Como
exigir-lhe dedicação, heroísmo, coragem, energia, entusiasmo e honra, se de
nenhuma dessas coisas lhe inocularam em tempo o germe necessário?
Ele, coitado, havia fatalmente de
ser mau, covarde e traiçoeiro. Na ramificação de seu caráter a sensualidade era
o gamo único desenvolvido e enfolhado,
porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores.
Vasconcelos, por conseguinte, chegou
tarde; encontrou já enrijado e duro o coração do filho.
E, no entanto, toda a sua carta
vinha finada por aquelas primeiras palavras. Agora, de longe, fazia o que, por
inépcia, nunca fizera de perto — dirigia-se amorosamente ao rapaz. Contava-lhe
novidades da província, comentava certos fatos escandalosos, falava sem
reservas de umas tantas coisas, das quais até aí nunca se permitira tratar na
presença de Amâncio.
O tópico seguinte levou o
provinciano ao cúmulo da admiração:
Não digo que te faças um santo, mas
também não te afogues no torvelinho dos prazeres. Goza, meu filho, por isso que
és moço, goza, porém, com prudência e com juízo; diverte-te mas evitando sempre
tudo aquilo que te possa prejudicar. Lembra-te de que saúde só tens uma,
e moléstia há muitas. O mundo não se acaba! Adeus. Nunca deixes de me escrever
e, quando te vires aí em qualquer apuro, fala-me com franqueza.”
Tudo isso vinha tarde. Muita coisa,
à semelhança do leite materno, só nos aproveitam até certa época. Depois, em
vez de fazerem bem, fazem mal.
As palavras de Vasconcelos que,
aplicadas no tempo competente, dariam ótimos resultados em benefício do filho,
eram agora para este um simples pretexto de galhofa. Amâncio sorriu da aparente
transformação de seu pai.
— Ora para que havia de dar o
velho!...
Não obstante, um vago sentimento, ao
mesmo tempo amargo e agradável, apoderou-se dele. Desfrutava certo gosto em
merecer aquela intimidade paterna; mas, por outro lado, doía-lhe a consciência
por não ter sido melhor filho; como se o pobre rapaz de qualquer forma
contribuíra para semelhante falta.
E, então, acudiu-lhe à memória uma
circunstância de que jamais se havia lembrado — a despedida do pai. Vasconcelos
estava bastante comovido nesse momento e abraçava-o chorando. Amâncio nunca lhe
tinha visto o rosto com aquela simpática expressão de sofrimento; mas, bem
pouco se impressionou na ocasião; os olhos conservaram-se-lhe enxutos e o
coração quase alegre com a idéia da liberdade que ia principiar.
Só agora, depois da carta, depois
que soube que era amado pelo velho, uma grande tristeza invadiu-o todo, e as
lágrimas rebentaram-lhe com explosão.
Assim sucede sempre aos filhos
educados à portuguesa, cujos pais como que
sentem vexame de lhes patentear o seu amor.
Pobres pais! Quantas vezes não
estarão morrendo por afagar o filho, e todavia, em vez de lhe darem um sorriso
carinhoso, um beijo, uma palavra de doçura, fingem-se indiferentes e afastam-se
para que o pequeno não lhes perceba a comoção.
Néscios! Julgam que com isso
estabelecem uma corrente de respeito entre eles e os filhos; julgam que isso é
indispensável para o bom êxito da educação; quando todas essa anomalia só pode
servir para lhes roubar a confiança e a estima dos entes predestinados e
dedicar-lhe todas as primícias de sua ternura.
Os pais dessa espécie levam a tal
exagero a sua convencional rispidez, que, se acham a graça em alguma coisa
feita pelo filho, sufocam o riso, medrosos de que qualquer expansão acarrete
uma quebra ao respeito filial.
Foi tudo isso, ao justo, que se deu
com Vasconcelos a respeito de Amâncio. Amou-o, mas com disfarce; fingiu-se
diretor inflexível, quando era simplesmente um pai como qualquer outro. Muita
vez chorou de ternura, mas sempre às escondidas; muita vez sentiu o coração
saltar para o filho, mas sempre se conteve, receoso de cair no ridículo.
E não se lembrava, o imprudente, de
que o amor de pai é bem contrário ao
amor de filho; não se lembrava de que aquele nasce e subsiste por si e que este
precisa ser criado; que aquele é um princípio e que este é uma conseqüência;
que um vem de dentro para fora e que o outro vem de fora para dentro. Não se
lembrava, o infeliz, de que o primeiro existirá fatalmente por uma lei
indefectível da natureza: ao passo que o segundo só aparecerá se lhe derem
elementos de vida.
Foi desses elementos que Amâncio
nunca dispôs para poder amar o pai.
*
* *
O fato é que, depois da leitura da
carta, o estudante sentiu, pela primeira vez, algum desejo de dar notícias suas
a Vasconcelos; até aí só o fazia por honra da firma.
Campos, que lhe apareceu em seguida,
veio transformar esse desejo em vontade, falando-lhe da correspondência
extraordinária que, pelo mesmo paquete, recebera do Maranhão. O velho
Vasconcelos também lhe havia escrito e, com tanto interesse lhe falara de
Amâncio, tão inconsolável se mostrara e tão saudoso pelo filho, e com tal
insistência pedira ao negociante para olhar pelo rapaz, que o bom homem não
hesitou em correr logo à casa de pensão de Mme. Brizard.
O estudante carregou com ele para o
quarto. — Aí conversariam mais à vontade.
— Pois, meu nobre amigo, disse o
marido de Hortênsia, assentando-se defronte de Amâncio e batendo-lhe uma
palmada na coxa — seu pai não se cansa de falar a seu respeito. São as
saudades, coitado!
E tirando uma carta do bolso para a
entregar ao outro:
— Leia, leia e veja como está triste
o pobre velho! Ah, meu amigo, acredite que — possuir um pai é a maior fortuna
que se pode ambicionar neste mundo!
Amâncio, entre outras coisas, leu o
seguinte:
“Não imagina Sr. Campos os cuidados
em que eu e a minha boa Ângela nos temos visto por cá com a ausência do rapaz.
Nunca pensei que nos fizesse tanta falta. Ela coitada, leva a chorar desde que
amanhece, e à noite é aquela certeza dos sonhos ruins e mais não ser! Acho-a
muito magra e abatida de tempos a esta parte. Então quando não recebe cartas do
filho, o que já se observa há três vapores consecutivos, fica prostrada de tal
modo que se não pode levantar da cama.
“Veja, por conseguinte, se alcança
que o nosso estudante nunca nos deixe de escrever; duas palavras que sejam,
dizendo como está de saúde e que vai bem nos seus estudos. Isso, que a ele não
custará muito, poupa todavia cá por casa muitas horas de sofrimento e de
desgosto.
“Até já me lembrou providenciar no
sentido de faze-lo vir no fim do ano passar as férias conosco, não sei porém,
se tal coisa será conveniente ainda tão no princípio da carreira. O amigo
dispensar-me-á o obséquio de escrever a esse respeito.
“Em todo o caso, a idéia de que o
senhor está aí, perto dele, e que, pelo que tem mostrado, é deveras nosso
amigo, tranqüiliza-nos em grande parte. Conto, pois, que olhará sempre por
Amâncio. Tenha paciência, sei que o importuno com estas coisas, mas que hei de
fazer? dizem tanto dessa Corte; falam de tal forma do clima e dos mil perigos a
que aí está sujeita a mocidade, que, só a lembrança de uma tísica galopante ou
de um desses desvios, uma dessas loucuras que às vezes acometem os rapazes e
inutiliza-os para o resto da vida; uma dessas desgraças, Sr. Campos, que lhes
sucedem facilmente quando eles não dispõem de um bom amigo que os encaminhe e
aconselhe; só a lembrança de tudo isso, meu caro senhor, é o bastante para me
tirar o sossego do espírito.
“Tenha a bondade, sempre que falar
ao meu rapaz, de lembrar-lhe as obrigações e dizer-lhe com franqueza a
responsabilidade que agora lhe assiste. Ele está se fazendo homem e precisa
preparar futuro. Sirva-lhe de pai; acompanhe-o e proteja-o com o mesmo desvelo
de que usou meu irmão para guiar a sua mocidade.”
— Vê? disse Campos, abalado com as
palavras do irmão de seu protetor. — São estes os desejos de seu pai; ao senhor
compete agora, como bom filho, fazer-lhe o gosto, e dar-lhe a felicidade de que
ele precisa para o resto da vida. O que estiver em minhas forças está à sua
disposição; mas o senhor também deve fazer por si, já não é tão criança para
não ver o que lhe fica bem e o que lhe fica mal! Enfim, tenho toda a confiança
no senhor, seu Amâncio, e estou convencido de que não me desmentirá!
Amâncio, que até aí ouvia Campos em
silêncio e com os olhos presos a um ponto, agradeceu-lhe muito aquele interesse
e jurou que todo o seu empenho era corresponder à expectativa de seus pais e
ser agradável o mais possível aos verdadeiros amigos de sua família.
E a conversa, tomando novas
direções, descaiu em assuntos menos circunspectos. Veio então à baila o baile
de Melo, e Campos queixou-se de que Amâncio, depois disso, nunca mais lhe
aparecera em casa.
— Já tinha a intenção de lá ir
domingo...
— Não, contradisse o negociante. —
Vá antes, sábado, amanhã, que é aniversário de meu casamento. Não há festa, mas
reúnem-se alguns camaradas e toca-se um bocado de piano. Adeus. Não deixe de
ir. Olhe, se quiser pode levar seus amigos. Adeusinho.
Amâncio acompanhou-o até à porta da
rua e voltou ao quarto.
Estava preocupado; não mais com as
cartas da família, mas com a deliciosa intenção de reatar no dia seguinte o
namoro de Hortênsia. Só uma pequena circunstância lhe mareava o antegozo desses
sonhados momentos de ventura: era a idéia dos seus compromissos como estudante;
sentia-os agravados perante a confiança que lhe depositavam, e agora, mais que
nunca, a consciência do seu relaxamento, a lembrança de haver faltado às aulas
tantas vezes e de não ter aberto livro durante a última semana, azoinavam-no
desabridamente.
— Oh! os estudos! os estudos eram o
ponto negro de sua vida, o seu desgosto, o terrível espectro de todos os seus
sonhos! As regalias que daí viessem mais tarde, fossem elas quais fossem, nunca
poderiam compensar aquela profunda tristeza, aquele aborrecimento invencível,
que o devoravam.
Semelhante preocupação tirava-lhe o
gosto para tudo, azedava-lhe todos os melhores instantes de sua vida. Cada
minuto, que se escoava na ociosidade, era mais uma gota de remorso caída no
sombrio pélago de seu tédio.
E, contudo, os minutos, os dias e as
semanas iam escapando, sem que Amâncio lograsse vencer a sua antipatia pelo
trabalho. Olhava com repugnância para os melancólicos compêndios da faculdade,
e, quando teimava muito em os conservar abertos defronte dos olhos, quase
sempre adormecia.
Um verdadeiro tormento!
*
* *
Amâncio obteve de João Coqueiro que o acompanhasse à soirée
de Campos.
Foi uma noite cheia para ambos; se
bem que Hortênsia, de tão preocupada com os arranjos da casa, muito pouco se
dera às visitas.
Carlotinha, sim, mostrava-se alegre
e comunicativa que nem parecia a mesma. Chegou-se muito para Amâncio, meteu-se
com ele de palestra, a fazer pilhéria, a criticar das outras senhoras, com
visagens disfarçadas e pequeninos risos estalados por detrás do leque.
O estudante ficou pasmo, quando
descobriu que toda essa intimidade procedia do namoro dele com Hortênsia. À
primeira indireta da rapariga, o rapaz corou e respondeu titubeando.
Carlotinha, porém, o tranqüilizou, dando a entender que era discreta e
interessada nos segredos da irmã.
E, já em indícios de gracejo,
aconselhou-o que freqüentasse a casa com mais assiduidade; um domingo sim,
outro não, para jantar. Seria muito bem recebido, alguém fazia questão
dessas visitas...
Amâncio, no seu papel de inocente, quis saber quem era esse alguém,
mas a rapariga negou os esclarecimentos e pediu-lhe em segredo que se calasse,
piscando o olho para o lado esquerdo, onde acabava de assentar-se um sujeito
gordo, de barba toda raspada.
— É o Costa! Nada lhe escapa!...
soprou ao estudante por debaixo do leque. E depois, em voz alta, disfarçando:
— Pois o baile de Melo esteve muito
bom!...
— Muito... confirmou Amâncio. — Há
longo tempo não me divirto assim!... Mas, para a senhora creio que ainda seria
melhor, se lá estivesse certa pessoa!...
— Quem? O guarda-livros?... Ora!
E, com ar desdenhoso, declarou que
há quinze dias ficara tudo acabado.
—
Seriamente? perguntou o estudante.
— Sério! E não me sinto com isso,
até estimo! No fim de contas aquilo é um tipo impossível; tão depressa está
para o norte como para o sul!
— Mas a senhora parecia gostar dele
tanto...
— Pensei que fosse outra coisa...
respondeu Carlotinha, franzindo os lábios. — Quando, porém, descobri o que ali
estava, dei tudo por acabado! foi muito bom; antes assim do que depois do
casamento!...
E, para mostrar a sinceridade
daquela indiferença, ria com exagero e dava a sua palavra de honra em como não
tinha paixão por homem nenhum deste mundo. Havia de casar, sim, porque isso era
necessário, mas não que preferisse este ou aquele, não. Todos eles eram a mesma
coisa. — uns tipos!
Amâncio defendia o seu sexo,
experimentando já pela rapariga uma nascente repugnância instintiva.
Quando, às três horas da madrugada,
os dois estudantes se despediram, Campos, entre muitos oferecimentos, pediu ao
“Sr. Dr. João Coqueiro” que voltasse qualquer dia, mas com a família. Ele tinha
nisso muito gosto.
Coqueiro prometeu fazer-lhe a
vontade e retirou-se com o amigo.
Quase nada conversaram pelo caminho.
Amâncio parecia aflito por se meter na cama; uma vez, porém, recolhido ao seu
novo quartinho do segundo andar, não sentia a menor disposição para dormir.
A circunstância de saber que Lúcia
estava ali tão perto, a quatro ou cinco passos, mas inteiramente fora do seu
alcance, o indispunha como se fosse uma pirraça levantada com o fim único de o
afligir.
Não resistiu ao desejo de ir, como
da outra vez, espreitar pela fechadura do quarto em que ela morava, e encaminhou-se sorrateiramente para o n.º
8. Nesta tentativa, porém, foi ainda mais infeliz do que da primeira, porque a
janela do corredor ficara aberta, e Amâncio principiou a espirrar, constipado.
O doente do n.º 7 tossia, de vez em
quando.
Amâncio voltou ao quarto, muito
aborrecido. Abriu um livro, mas repeliu-o logo, com tédio. Lembrou-se de fazer
café. (Na véspera comprara uma maquinazinha e os apetrechos necessários para
isso.) — O melhor, porém, seria tomar o café depois de um banho. Deu lume à
máquina e desceu ao primeiro andar, já despido e rebuçado no lençol.
Queria passar pelo quarto da mucama,
que ele agora sabia ao certo onde era; mas, na ocasião em que entrava na sala
de jantar, deteve-se cautelosamente com a presença de um vulto que acabava de
aparecer do lado oposto. A custo reconheceu Coqueiro; do lugar onde se achava
podia observar sem ser visto. O dono da casa atravessou pé ante pé a varanda e,
encaminhando-se para o fundo do corredor, sumiu-se no tal sítio, por onde
justamente queria passar o outro.
— Será possível?... considerou
Amâncio, que se adiantara precatamente para certificar-se do que vira.
— Que grande velhaco!
E era aquele tipo que, “por
moralidade não admitia em casa certas visitas!”...
— Ah! meu pulha! pensou o estudante.
— Como podia agora tomar a sério a
casa de Mme. Brizard?... Que juízo devia fazer de toda aquela gente? E
Amelinha? o que vinha ser aquela Amelinha?...
Dois espirros cortaram-lhe a teia dos raciocínios, e em
seguida um calafrio muito penetrante lhe percorreu o lombo. Sentiu-se
indisposto; não obstante, desceu ao banheiro. — Aquilo desapareceria com um
pouco d’água pela cabeça.
Mas, quando voltou ao quarto, já lhe
doía o corpo e tinha as pernas entorpecidas levemente.
Tomou uma chávena de café, bebeu um
gole de conhaque, e meteu-se na cama, tiritando.
Não se pôde erguer no dia seguinte.
Coqueiro apresentou-se-lhe no quarto, logo pela manhã, muito sobressaltado com
os incômodos do querido hóspede. Estava mais inquieto do que se tratasse de
salvar a vida de um parente insubstituível.
Perguntou se Amâncio queria médico; se precisava de alguma
coisa. — Que diabo! dispusesse com franqueza. Ele estava ali às suas ordens!...
O doente apenas desejava que o amigo
desse um pulo à agência dos vapores e trouxesse o constante de um conhecimento,
que lhe pediu para procurar nas algibeiras do fraque.
Coqueiro obedeceu prontamente.
Era um pacote de doces que lhe
enviava a mãe. Havia frascos de bacuris em calda, muricis, cajus cristalizados
e buritis em massa para refresco. Amâncio, logo que o colega voltou com o
presente, fez acondicionar tudo sobre a mesa, defronte de sua cama.
Nesse instante, Mme. Brizard e
Amelinha invadiam-lhe o quarto, ávidas de informações.
— Que tinha o Sr. Vasconcelos? — Que
sentia? Como lhe aparecera a febre?
E a francesa, depois de consultar o
pulso ao rapaz, afiançou que aquilo não valia nada. Ele que tomasse um
suadouro, que se deixasse ficar na cama e havia de ver que no dia seguinte
estava pronto.
Lambertosa, chegando logo em
seguida, pediu ao doente que aceitasse uma dose de acônito e deixasse o resto
por sua conta.
Mas a febre recrudesceu depois do
almoço. Amâncio queixava-se de dores na cabeça, na espinha e nos quadris.
— Tudo isso é ar! afirmou o gentleman
autoritariamente. — Acônito! Dê-lhe com o acônito!
Foi Amelinha a encarregada de
ministrar ao doente, de hora em hora, uma colher de remédio.
Mme. Brizard falou muito da
inconstância do clima do Rio de Janeiro, das precauções que se deviam tomar
contra as umidades; do risco que havia em comer certas frutas e, afinal,
retirou-se, tendo apalpado ainda uma vez o pulso e a testa do hóspede.
Amelinha revelava-se extremamente
solícita. Andava no bico dos pés, a borboletar pelo quarto, arrumando os livros
sobre a mesa, apanhando a roupa espalhada pelo chão, acudindo a qualquer
movimento do estudante, que dormia entanguecido debaixo dos lençóis.
Ele, coitado, parecia cada vez pior.
Ardiam-lhe os olhos desabridamente; o hálito queimava; não podia suportar o
cheiro do fumo e queixava-se de muita sede e comichão pelo corpo.
Amelinha, sempre irrequieta e
passarinheira, preparava-lhe copos de água com açúcar. Agachava-se à borda da
cama, mexia e remexia com a colher o sacarífero calmante e, depois de o provar
com a pontinha da língua, passava-o às mãos de Amâncio. Este, porém, mal bebia,
voltava-se de novo para a parede, gemendo de olhos fechados.
Pelas duas horas da tarde, Lúcia
pediu licença para lhe fazer uma visita. Entrou cheia de cerimônia, e
assentou-se gravemente em uma cadeira, à cabeceira do leito.
O doente voltou-se logo e
agradeceu-lhe aquela fineza com um olhar muito triste e injetado de sangue.
Ela mostrava-se interessada; pedia
informações a respeito da moléstia. Amâncio respostava com dificuldade. Parecia
moribundo.
Mas, quando Amélia saiu e desceu ao
primeiro andar, ele tomou rapidamente as mãos da outra e cobriu-as de beijos
que a febre tornava mais ardentes e mais queimosos.
— Eu te amo! Eu te amo! dizia ele.
— Bem, mas fique quieto! Isso pode
fazer-lhe mal! retrucava a suposta mulher de Pereira. — Nada de tolices!
Deite-se! Deite-se!
Amâncio libertou os braços do
cobertor, apoderou-se da cabeça de Lúcia, e começou a beijar-lhe os olhos, a
boca e os cabelos, numa sofreguidão irracional.
As lunetas da “ilustrada senhora”
haviam caído, e ela encarava o rapaz, sem dizer palavra, a lhe cavar os seus
grandes olhos de míope, alterados pelo abuso do vidro de graduação.
Tiveram de disfarçar, porque alguém
se aproximava.
O enfermo voltou logo aos lençóis e
pôs-se novamente a gemer.
Era Coqueiro quem vinha. Desde a
entrada mostrou-se contrariado com a presença de Lúcia. Transpareciam-lhe no rosto
os sintomas da desconfiança. Dir-se-ia um ciumento a penetrar de chofre nas
recâmaras da amante.
— Aquela mulher não podia estar ali
com boas intenções!...
E foi de mau humor que Coqueiro
respondeu a uma pergunta dirigida por ela a respeito da moléstia.
Lúcia, também, não deu mais palavra
e, logo depois, saiu muito enfiada.
*
* *
À noite apresentou-se Campos, a quem Coqueiro, de passagem,
prevenira dos incômodos de Amâncio; trazia consigo um médico.
Este declarou incontinente que o
rapaz tinha bexigas; mas, antes que fizessem espalhafato, afiançou que eram
benignas. “Bexigas doidas, cataporas, como vulgarmente chamavam por aí.
Ficassem tranqüilos, que o caso não era grave; convinha, porém, ter algum
cuidado com o doente: — evitar a ação do vento e muita limpeza com a roupa da
cama.”
Receitou e saiu, prometendo voltar
no dia seguinte. Campos seguiu-o até à escada do corredor e tornou ao segundo
andar.
A mulher de Paula Mendes, que abrira
a porta do quarto para escutar o que dizia o médico, rompeu logo a falar sobre
o abuso de consentirem ali “um bexigoso”!
Daquela forma, em breve a casa se
transformava num hospital! Já tinham um tísico, que à noite não a deixava
dormir com o gogo; agora era um bexiguento; amanhã seria a febre amarela e
depois a lepra! — Arre! Em chegando o marido havia de mostrar o que faria!
Lambertosa, a pretexto de que sentia muito calor, empacotou
o que tinha no quarto e lá se foi moscando à francesa.
— Nada! segredou ele embaixo ao
Fontes que jogava o dominó com a mulher na sala de jantar. — Tenho medo disto
que me pélo; em pequeno vi morrer três sujeitos de pancada com as tais
cataporas! Vou para a chácara de um amigo nas Laranjeiras! E, se a madame não
tratar de pôr fora o doente, ei também aqui não porei mais os pés!
E, vendo que Fontes parecia
impressionado com as suas palavras:
— Pois não acha o amigo que tenho
razão?... Pode-se lá admitir um varioloso dentro de uma casa como esta, cheia
de hóspedes?...
— Está claro! disse a mulher de
Fontes, empurrando as pedras do dominó. — Eu também aqui não fico! Ou o doente
se muda ou então mudo-me eu! E logo o quê! — bexigas! Deus nos defenda! Até
parece que já sinto um formigueiro por todo o corpo... Credo!
— Sim, disse o marido — mas não
acredito que Mme. Brizard esteja disposta a ficar com ele dentro de casa!
O gentleman havia já
desaparecido, como se levasse uma fera atrás de si; os dois outros ergueram-se
e conversavam assustados sobre o grande fato; enquanto Nini, que, desde às
cinco horas jazia estendida em uma cadeira ao canto da varanda, com um lenço
amarrado na cabeça, escutava-os silenciosamente, os olhos pendurados no vago.
Depois daquela cena violenta com
Amâncio, a pobre criatura se quedara mais apreensiva e mais triste. Eram
suspiros sobre suspiros e nem uma palavra durante o dia inteiro; às vezes
dava-lhe para chorar e não havia meio de a conter.
Em cima Campos tomou o chapéu e o
guarda-chuva, mas, antes de sair, consultou a opinião de Coqueiro e de Mme.
Brizard sobre o que melhor convinha fazer a respeito do varioloso. “Talvez
fosse mais acertado levá-lo para uma boa casa de saúde!”... — Eles que se não
constrangessem: se era inconveniente ficar ali o rapaz, falassem com franqueza,
porque tudo se podia arranjar perfeitamente.
Mas os locandeiros protestaram logo,
com energia: — Longe de ficarem constrangidos, tinham muito gosto em ser úteis
ao Dr. Amâncio. — Que já o estimavam tanto, que não teriam ânimo de o
desamparar, justamente quando o pobre moço, longe da família, mais precisava de
cuidados!
— Verdade é que as bexigas não são
das más... considerou o negociante, alisando o pêlo de seu chapéu alto. — Mas
os outros hóspedes talvez não pensem como a senhora e seu marido... E daí, quem
sabe?... queiram deixar a casa e...
Mme. Brizard declarou que por esse
lado estava sossegada. “Os bons hóspedes não desertariam por tão pouco, e
quanto aos maus, se se fossem não fariam falta.”
Campos agradeceu pelo recomendado
aquela boa vontade; tornou a dizer que não poupassem despesas com a moléstia e,
quando porventura houvesse alguma dúvida ou alguma dificuldade, era mandar
imediatamente um recadinho à Rua Direita, que ele lá estava sempre às ordens.
E ainda voltou ao quarto do rapaz
para lhe rogar mais uma vez que não tivesse receio de importuná-lo em qualquer
ocasião e, outrossim, para saber se, por enquanto, ele não precisava de mais
alguma coisa.
Amâncio desejava unicamente que o
amigo procurasse descobrir por onde andava o Sabino, que agora lhe fazia muita
falta; e, caso o encontrasse, tivesse a bondade de remeter-lho; seria um grande
favor.
Veio à questão o quanto madraceavam
os escravos ultimamente. Mme. Brizard jurou que não havia melhor vida do que a
deles; disse que Amâncio fizera mal em consentir que um negro de sua
propriedade andasse por aí tanto tempo, sem lhe prestar contas; quando,
alugado, lhe podia dar de rendimento pelo menos quarenta mil-réis mensais. E,
de sua parte recomendou a Campos que fizesse diligências para descobrir o
tratante e o deixasse ali, que ela mostraria se o punha ou não a bom caminho.
O negociante retirou-se afinal,
entre novos protestos e novos oferecimentos.
Mme. Brizard, Coqueiro e Amelinha
não abandonaram o quarto do doente até mais de meia-noite; ora um, ora outro,
acompanhavam-no sempre. Lúcia também aparecia de quando em quando; ao passo que
o marido, sem jamais acordar completamente, nem dera pelo reboliço em que ia a
casa.
Por toda a parte sentia-se já o
cheiro da alfazema queimada. O esquisitão do n.º 4, muito comprido no seu
poncho de brim pardo, que lhe batia desairosamente nas tíbias mal compostas,
espaceava no corredor, cantarolando, em voz soturna, o De Profundis.
— Olha que agouro! resmungou a
mulher de Paula Mendes ao vê-lo passar e, já encolerizada pela demora do
marido, fechou a porta do quarto com um pontapé. — Logo aquela noite é que o
diabo do homem entendia de demorar-se mais tempo na rua! Raios o partissem,
diabo!
Melinho, a pérola do n.º 9, também
não aparecera; e Piloto, ao saber, ainda na porta da rua, que havia um bexigoso
no segundo andar, fez um careta, benzeu-se comicamente, e desgalgou pelo mesmo
caminho que trazia, afetando trejeitos exagerados de medo. O guarda-livros é
que bem pouco se incomodou com a notícia; tinha lá o seu gabinete ao lado da
sala de visitas, e aí com certeza não chegariam as miasmas.
Estava em cima Coqueiro a discutir
com a família sobre quem devia acompanhar o enfermo durante o resto da noite,
quando entrou Paula Mendes, estranhamente alegre, a cantar em voz alta. O dono
da casa correu logo ao seu encontro e lhe pediu que não fizesse bulha. — O
hóspede do n.º 6 estava de cama!
Mendes respondeu com descostumada
grosseria, arrastando a voz. Catarina ao vê-lo naquele estado, fechou
bruscamente a porta do quarto, que nesse mesmo instante havia aberto, e
gritou-lhe de dentro: “Que fosse cozinhar para longe a bebedeira! Que voltasse
para onde se tinha emborrachado! Era só também o que faltava — que, além de
tudo, tivesse de aturar bêbados! Estavam bem servidos!”
E todos, com grande espanto, se
convenceram de que efetivamente Paula Mendes vinha ébrio, logo que o viram
principiar a bater, como um possesso, na porta do quarto, berrando pela mulher,
sem se poder agüentar nas pernas.
— Pois senhores, disse Mme. Brizard,
que acudira com barulho — estou pasma! Desde que o rabequista mora aqui é a
primeira vez que o vejo assim!...
— Naturalmente isto foi coisa que
lhe fizeram... opinou Coqueiro. — Ele, coitado, é até homem de bons costumes...
Todos concordaram nesse ponto, e o
hoteleiro, uma vez capacitado de que a peste da Catarina não abria a porta ao
marido, carregou com este para o quarto que Lambertosa acabava de despejar.
— Diabo! resmungou, deixando-o cair
sobre a cama. — Hóspedes que só dão de lucro estas maçadas!
Resolveu-se que seria o copeiro quem
acompanharia o enfermo durante o resto da noite. O médico recomendara que
dessem o remédio de três em três horas. Lúcia lamentou que, justamente nessa
ocasião, a sua Cora estivesse em Cascadura ajudando a uma amiga a morrer,
porque ao contrário Amâncio não teria outra enfermeira. “Ah! não havia como
aquela mulata para tratar de um doente!”...
Mas o copeiro assumiu o posto que
lhe designaram, e cada um se recolheu ao competente dormitório. Catarina ainda
rabujou sozinha por um tempo; Paula Mendes caiu num sono de chumbo, e a casa
foi pouco a pouco se atufando nas brumas silenciosas da noite.
Só então, de tão fracos que eram, ouviam-se os bufidos
cavernosos do tísico que, no triste
abandono de sua miséria, continuava a gemer, sufocado pela dispnéia.
O desgraçado já não tinha forças
para sair à rua. A sua moléstia entrara no segundo período; cresciam-lhe as
dores do peito e apareciam-lhe agora, pela madrugada, acessos febris,
acompanhados de suores frios e gordurosos.
A magreza desnudara-lhe os ossos, e
os alimentos faziam-lhe repugnância. Como era muito pobre, ninguém se
interessava por ele; os criados serviam-no mal e a más horas. Traziam-lhe a
comida e depunham-na sobre o velador. “O bodega lá que se arranjasse!”
Mme. Brizard, por mais de uma vez,
dissera:
—
Também
aquele estafermo não ata nem desata!...
***
Por voltas das quatro da madrugada,
Amâncio sentiu passarem-lhe brandamente a mão pela testa, e despertou
estremunhado.
Um candeeiro de azeite derramava no
quarto a sua meia claridade trêmula e duvidosa. Era tudo silêncio e
quietação.
— Lúcia! disse ele, reconhecendo-a e
tentando passar-lhe o braço na cintura.
— Psiu! fez a ilustrada senhora com
um dedo nos lábios. — Tenha modo! O copeiro está dormindo e, como o médico
recomendou que não deixassem lhe dar de hora em hora uma colherada do remédio,
eu...
— Meu amor!
— Nada de bulha! Tome o remédio e
trate de dormir, que você está doente.
Amâncio bebeu a tisana e com um
gemido arrastado pousou de novo a cabeça nos travesseiros.
— Como se acha ensopada esta camisa!
observou Lúcia, apalpando-lhe as costas solicitamente. E perguntou logo onde
estava a roupa branca.
O rapaz apontou com dificuldade para
a gaveta inferior da cômoda, e acrescentou careteando:
— No findo, ao lado esquerdo.
Ela foi abrir o gavetão, muito de
mansinho, para não acordar o copeiro, que dormia a sono solto sobre um enxergão
no soalho, e reveio, toda desvelos com uma camisa aberta nos braços.
— Vamos! Mude essa roupa. O remédio
está produzindo efeito. É preciso não resfriar.
O estudante despiu a camisa suada e
vestiu a outra.
— Agora sente-se melhor? perguntou a
mulher de Pereira.
Estava assim, assim... Ainda lhe
doía o corpo, e o comichão não tinha diminuído. Parecia que lhe passeavam
formigas pelas pernas.
— Trate de repousar. Adeus. Eu
voltarei de manhã, para lhe dar outra dose do remédio. Até logo.
Amâncio pediu-lhe que se demorasse mais um pouco, que se
sentasse um instante ao seu lado; ela, porém, muito senhora de si, negou-se
formalmente, dizendo com a cabeça que não e recomendando-lhe com um gesto que
se acomodasse.
— Ao menos um beijinho... pediu ele.
A outra não espondeu e saiu na ponta
dos pés.
Voltou pela manhã, como prometera,
mas o copeiro já havia dado o remédio ao doente.
— Então! Como passou? perguntou ela,
indo apertar-lhe a mão.
— Ora, mais incomodado com a sua
ausência do que com a minha moléstia... respondeu o moço, fazendo um ar
infeliz.
— Impressões de momento... retorquiu
Lúcia, sorrindo. — Daqui a pouco não se lembrará mais de mim...
E logo que viu sair o preto...
— Para só pensar na Amelinha...
Amâncio fez um gesto de repugnância.
— Tem toda a razão!... prosseguiu
ela — toda Amelinha é moça, é bonita, e pode casar!
— Comigo, nunca!... afirmou o rapaz.
— Não poria a mão no fogo...
insistiu Lúcia. — Agora eu, sim, já sou papel queimado, e estou velha...
— Velha? Dê-me então a sua benção...
Lúcia sorriu e estendeu-lhe a mão,
que ele beijou avidamente, ficando depois e examiná-la, como se contemplasse
uma obra de arte.
— É feia... disse a senhora — é
comprida demais e magra.
— É adorável! desmentiu o estudante.
E tornou a beijar, com exagerado transporte, a mãozinha que conservava entre as
suas.
— Está bom. Chega! Para bênção já
basta! E ela puxou o braço. — Deve estar a surgir o batalhão de seus
enfermeiros! Adeus.
— Eu os trocaria a todos por ti,
minha santa!
— Isso é o que havemos de ver!
replicou ela intencionalmente. E saiu do quarto.
Coqueiro, que chegou logo depois,
percebeu que Lúcia acabava de estar ali, mas não deixou transparecer a sua
contrariedade.
— Então?! perguntou.
O doente fez uma careta de desânimo.
— Tiveste alguma novidade durante a
noite?
—
Nenhuma, respondeu Amâncio.
— O remédio, tomaste-o?
— Tomei.
Coqueiro deu uma volta pelo quarto,
para demorar um pouco mais a visita, e disse frouxamente:
— Bem, tenho que ir pras aulas. Até
já! — Loló e Amelinha não tardam por aí.
E retirou-se, a gritar desde cima
pela mucama: — Que viesse arrumar o quarto do Sr. Dr. Amâncio!
Mme. Brizard e Amelinha, com efeito,
não tardaram a aparecer, falando muito sobre o terror que a moléstia de Amâncio
produzia nos outros hóspedes, confessando as maçadas que tiveram as duas na
véspera; e, por fim a mais velha desceu para cuidar da casa e a menina ficou
para tratar do enfermo.
*
* *
João Coqueiro, à volta da academia,
chamou a mulher ao quarto e perguntou-lhe, cruzando os braços e sacudindo a
cabeça:
— E o que me dizes tu da Sra. D.
Lúcia?...
Mme. Brizard respondeu com um
movimento de ombros.
— Bem desconfiava eu!... ajuntou o
especulador, depois de uma pausa. — Acredita, Loló, que desde a chegada do
Amâncio, tive cá um palpite de que aquela mulher seria um estorvo para os
nossos projetos!
A francesa fez um esgar de dúvida. E
o esposo acrescentou com raiva:
— Pois se ela não o larga um só
instante! Leva a escorá-lo, o demônio!
— Não acreditas que Amelinha se deixe codilhar assim só!...
observou a esperta locandeira.
— Ora qual, volveu o outro, zangado.
— Ninguém me tira da cabeça que esta mudança do rapaz para o segundo andar, foi
coisa arranjada por aquela sirigaita!
E, tendo percorrido três vezes o
quarto, parou de repente, muito agitado:
— Mas comigo, bradou — está
enganada! Tenho a faca e o queijo na mão! Posso despachá-los, quando bem
entender, a ela e mais o bolas do tal marido! E nem preciso inventar pretextos
para os pôr na rua, porque eles já devem aí perto de dois meses!
— Pois nós havemos de perder esse
dinheiro?! interrogou Mme. Brizard assuntando-se.
— Sim, mas é que eu não os deixo ir,
sem ficar garantido! E se quiserem fazer de espertos, confisco-lhes a
mulatinha! Não! Aqui para o meu lado é que não se arranjam!
E, recaindo nos projetos a respeito
de Amâncio:
— Uma ocasião tão boa para a
Amelinha o cativar, se o diabo da intrusa não se metesse entre eles no melhor
da coisa! Ah! peste!
Mme. Brizard, que se havia
assentado, meditava de cabeça baixa.
— Eu até o acho agora mais reservado e mais frio!...
prosseguiu o hoteleiro-estudante. — Já não me consulta quando quer dar algum
passo... já não se abre comigo!
E aproximando-se da mulher,
exemplificou em voz de mistério:
— Sabes, aquele doce que ele recebeu
do Maranhão? foi quase todo para ela! A mim deu unicamente um frasco do tal
bacuri(por sinal que não acho graça); para si, creio que guardou uma latinha de
geléia, e tudo mais lambeu a gata arrepiada!
— Quê! Pois ele lhe fez presente de
todo o doce que recebeu do Norte?...
— Ora! se te estou a dizer!
— Não! exclamou a Brizard
escandalizada. — Isso agora não lhe perdôo! A gente aqui a matar-se, a
desfazer-se em carinhos, e ele a socar no bandulho daquela bicha os mimos que
recebe da família! Não! Isto não se faz!
— Pois fez! Sustentou Coqueiro. — E,
se não abrirmos os olhos, ela é capaz de arrancar-lhe até a última camisa!
— Dar todo o doce àquela
criatura!... repisava a francesa. — É quanto pode ser!...
— Pois deu!
— Sempre o supunha outra espécie de
gente!...
— Não é pelo doce, explanou o marido
— mas sim pelo alcance do fato! Nós, o que devemos fazer é, quanto antes, tomar
medida muito séria a respeito de tudo isto!
E, fitando a mulher com resolução:
— Vamos a saber! Achas que os
devemos pôr no olho da rua?!
— Mas, filho, sem pagarem?...
— Ainda que não paguem, ora essa!
Dos males o menor! Lembra-te de que o Amâncio não inventou a pólvora e pode,
muito bem, ser fisgado por aquela lambisgóia!... A cabra não tem nada de
tola!... Que achas tu?!
— Sim, mas também para deixá-los ir
com o nosso cobre...
— Fica-se com um documento selado e
podemos persegui-los a todo o tempo!
— Isso é asneira!
— Asneiras é perdermos o futuro de
Amelinha por causa de alguns mil-réis!...
Mme. Brizard ainda hesitou.
— Então? insistiu Coqueiro. — A termos de tomar esta
resolução, deve ser já e já, que a oportunidade é magnífica; talvez até nunca
mais pilhemos um ensejo tão favorável! — Minha filha, nem sempre há
cataporas!...
A outra, afinal, consentiu, e ficou
deliberando que Pereira e Lúcia seriam postos na rua, se não saldassem
imediatamente as suas contas.
— Estão ali, estão fora!...
profetizou o locandeiro, esfregando as mãos.
Algumas horas depois, quando Pereira descrevia
tropegadamente a sua órbita consuetudinária entre a mesa do jantar e a
preguiçosa, Coqueiro, entrepondo-se-lhe no caminho, meteu-lhe na mão uma folha
de papel dobrada sobre o comprido, e disse-lhe em tom seguro e repassado de
urgências:
— É uma nova continha de suas
despesas. O amigo desculpe, mas, se me pudesse pagar isto até amanhã, não seria
mau, porque tenho de satisfazer aos fornecedores.
— Havemos de ver... balbuciou o
hóspede, correndo pelo papel os olhos meio fechados.
O credor advertiu-o em voz baixa de
que havia já esperado muito e que o Sr. Pereira, pelos modos, não se lembrara
dele.
— Tem toda a razão... concordou o
dorminhoco. — Juro-lhe, porém, que me não esqueci do senhor. Ainda não recebi
dinheiro, sabe?
— Sim, retorquiu o outro — mas o
senhor também sabe que eu preciso fazer face aos gastos da casa e...
— Tenha paciência... bocejou
Pereira. — Tenha um pouco de paciência. Hei de cuidar disso.
— Mas é que não posso esperar mais,
Sr. Pereira!
— Não há novidade! Pode ficar
descansado, que não há novidade, respondeu aquele espreguiçando-se, já
importunado com o transtorno de não se poder estirar na cadeira. E entregou a
conta a Lúcia, que se aproximava com ar de curiosidade. Feito isto, deixou-se
cair na preguiçosa, inalteravelmente, como nos outros dias. Daí a pouco
ressonava.
A mulher leu a conta do princípio ao
fim, sem um gesto, nem uma palavra; depois, ainda em silêncio, dobrou-a de novo
e meteu-a no seio.
No dia seguinte pela manhã o
copeiro, apresentava-se-lhe no quarto, exigindo, em nome do patrão a reposta do
pedido que este na véspera fizera ao Sr. Pereira.
Lúcia, molestada com semelhante
pressa, respondeu de mau humor que — mais tarde daria uma resposta... O marido
ia sair para buscar dinheiro!
O criado retirou-se, e ela foi logo,
muito zangada, despertar Pereira com um violento empuxão.
— Você é uma lesma! exclamou. —
Põe-se a dormir desse modo, e cá fico eu para me haver com as contas!
— Que contas?... perguntou o homem,
esfregando os olhos pachorrentamente e escancarando a boca.
— Que contas! A conta de casa! a
conta do que você e eu.
— Deixa disso, nhanhã...
— Que contas! A conta da casa! A
conta do que você e eu comemos!
— Havemos de ver isso...
— Havemos de ver, não! Que é preciso
resolver qualquer coisa! O homem quer dinheiro; não me larga a porta!
E, puxando-o por um braço:
— Você não me ouve?! berrou a
mulher, desfechando-lhe um murro nas costas. — É preciso que lhe dê com os pés
para o acordar, seu burro?!
Pereira não fez caso e tornou a
aninhar-se na cama, encolhendo as pernas e os braços.
— Não me amole! tartamudeou ele, sem
voltar o rosto. Lúcia, que já se não podia conter, saltou-lhe ao gasganete e encheu-lhe
a cara de bofetões.
Pereira ergueu-se num pulo, e, muito
estremunhado, olhou sério para a mulher:
— Ora vamos lá!... disse, e começou
a espreguiçar-se, retesando os braços.
— Diabo do sem-préstimo! resmungou a
outra com desprezo, enviesando a boca e cuspindo o olhar por cima do ombro. —
Não tem um vislumbre de brio naquela cara!
— Já trouxeram o café?... perguntou
o sem-préstimo, cuidando de lavar o rosto e os dentes.
Lúcia respondeu-lhe com uma injúria
e saiu do quarto arremessando a porta; mas reveio logo e gritou em tom de
ordem:
— Vista-se já e ponha-se em caminho,
que é preciso arranjar dinheiro!
Pereira vestiu-se demoradamente,
sempre a abrir a boca, depois seguiu para o primeiro andar no seu passo miúdo,
os braços a jogarem-lhe num movimento pendular, como se os tivesse seguros à
omoplata apenas por um atilho. Tomou o seu café com leite e o seu pão com
manteiga e foi espaçar para a chácara, à espera do almoço.
A mulher seguiu-o e, logo que o
alcançou, bateu-lhe no ombro:
— Então você não se avia, criatura?!
você não vê que o homem quer dinheiro e que estamos ameaçados de ir para o olho
da rua, seu Pereira?!
— Mas, que hei de eu fazer,
nhanhã?...
— Ponha-se em movimento! Vá aos seus
parentes, vá aos seus amigos, vá ao inferno! contanto que arranje alguma coisa
para tapar a boca daquele judeu! Não me volte de mãos abanando, porque não lhe
abro a porta do quarto, percebe?! Você bem sabe que, se bem o digo, melhor o
faço!
E, vendo que Pereira não se mexia:
— Então?
— Mas eu hei de sair sem almoçar
nhanhã?...
— Pois vá lá! Almoce. Mas é engolir
e pôr-se a andar!
— E dinheiro para o bonde?
— Quê? Você já gastou os cinco
mil-réis que lhe dei anteontem?!
Pereira explicou que os havia gasto
contra a vontade, porque uns sujeitos o obrigaram a pagar cerveja e doces numa
confeitaria.
— Você é um palerma! disse a mulher.
— Tome lá mil e quinhentos. Mas veja agora se também os vai comer de doce!
*
* *
Desde a véspera, entretanto, que Amelinha não se despregava
do lado de Amâncio, senão quando este dormia ou quando precisava ficar só;
levou a costura para o segundo andar, e pôs-se a coser no corredor, assentada à
porta do quarto do seu doente.
Uma esposa não se mostraria mais
afetuosa; ao menor gemido do enfermo, corria logo para ele, sempre meiga,
sempre desvelada. Procurava ajudá-lo a suportar a monotonia da moléstia;
procurava animá-lo, distraí-lo, fazendo por ter graça, recorrendo, para o
entreter, ao que sabia de mais espírito. Seu pezinho, leve e calçado de
duraque, parecia não tocar no chão; seu rostinho, mimoso e fresco como um
jambo, não se contraía ao fartum insalubre das variolóides.
E dir-se-ia que tudo aquilo não
visava outro interesse que não fora a mesma caridade e a mesma dedicação. Nem
uma queixa, nem um suspiro, nem um olhar, nem um gesto, que traíssem a
esperança de recompensas futuras. Era o bem pelo bem.
O provinciano, muito desvigorizado
com a moléstia sentia perfeitamente que os lúdricos impulsos, que dantes lhe
inspirava a graciosa rapariga, iam-se agora destecendo e dissipando à luz de um
novo sentimento de gratidão e respeito. A primitiva Amélia desaparecia aos
poucos, para dar lugar àquela extremosa criança, àquela irmãzinha venerável,
que lhe enchia o quarto com o frescor balsâmico de sua virgindade e rociava-lhe
o coração com a trêfega mimalhice de sua ternura.
Nos momentos da comida é que se
podia ver. Amâncio tinha grande inapetência e torcia o nariz aos alimentos; mas
a pequena metia-o em brios, chamando-lhe piegas, fracalhão, dizendo que ele
“parecia um neném” e que precisava levar uns petelecos para tomar juízo.
E atava-lhe ao pescoço o guardanapo,
esfriava-lhe a canja, soprando amorosamente as colheradas, e, para lhe provar o
apetite, paparicava também o que vinha e, com estalinho de língua, dizia e repetia
que estava tudo muito bom e muito gostoso.
Ele, às vezes, já se fazia mais
doente e mais carecido de cuidados, só para desfrutar os mimos da enfermeira.
XII
Dias depois, o médico declarou que
Amâncio estava livre do maior perigo. — As bexigas foram boas e secariam
prontamente, sem quase deixar sinal na pele.
Dentre em pouco abria-se a janela,
do n.º 6, recolhia-se a última roupa que servira à moléstia, defumava-se o
quarto pela última vez, e o mimalho entrava afinal na convalescença.
Logo, porém, que deixou a cama,
apareceram-lhes dores reumáticas na caixa do peito e nas articulações de uma
das pernas. Era o sangue de sua ama-de-leite que principiava a rabear. Bem
dizia outrora o médico a seu pai, quando este o encarregou de amamentar o
filho.
E, pois, vieram os remédios para a
nova enfermidade, e Amâncio, a despeito de sua impaciência por ganhar a rua,
continuou encurralado na casa de pensão e submetido a uma dieta rigorosa.
Sabino, que Campos lhe remetera na véspera, tomou conta do lugar que o copeiro exercia durante a
noite.
Nesses dias, Lúcia muito pouco se
chegou para o estudante, receava com isso provocar da parte do Coqueiro alguma
violência contra si. — Ah! ela bem sabia que era guardada à vista; toda aquela
família já nem ao menos disfarçavam a vigilância em que a trazia; andavam todos eles, desde a velha
até o pequeno, a fariscar os passos, descaradamente empenhados em afastá-la o
mais possível de Amâncio. — Súcia de bandidos!
Com efeito, nunca mais lhe foi
possível até aí fazer ao rapaz uma outra visita noturna. Mas, justamente no dia
em que se arejou o quarto, estava Amâncio estendido na cama, a reler um
esfacelado volume de Alencar, quando de repente se abriu a porta e Lúcia
surgiu, aflita e apressada, correndo para ele num formidável alvoroço.
Seriam mais de onze horas da noite e
a família de Coqueiro estava já recolhida.
Amâncio assustou-se com a visita,
mas nem por isso a estimou menos.
Quis, antes de tudo, saber que
terrores eram aqueles.
— Que diabo havia acontecido? — Mas
se alguma coisa ruim acabava de suceder, era, com certeza, por castigo, que ela
estava uma ingrata muito grande; já não aparecia aos infelizes; naturalmente
tinha medo das bexigas!...
— Oh! não! não! vozeou a ilustrada
senhora, agarrando-lhe ambas as mãos com transporte. — Não! Tudo que vier de
ti, Amâncio! tudo que te pertence e te diz respeito é bom e sublime para mim!
E correu de novo à porta,
certificou-se de que a casa estava bem sossegada, e tornou para junto do
estudante, apalpando dos lados e circunvegando olhares inquietos.
Sabino já se havia esgueirado
discretamente pelo corredor; enquanto o senhor-moço, ainda meio aturdido com a
agressão melodramática de que fora vítima, apanhava, uma por uma, as folhas do
Alencar, que se tinham espalhado aos pés da cama.
— Pois olhe, ninguém o
acreditaria!... disse ele voltando, afinal, do seu espanto e pousando o livro
sobre o velador.
— Por quê? interrogou Lúcia muito
séria e muito dura defronte do rapaz.
— Ora, porque!... porque já não há
quem a veja! porque a senhora arribou deste quarto, como se aqui alguém lhe
quisesse fazer mal!
Ela respondeu com um sorriso de
tristeza e um resignado sacudimento de cabeça.
— Os fatos, pelo menos, assim o
afirmam... acrescentou o doente.
— Mas, valha-me Deus! tornou a outra.
— Pois não vês a perseguição que sofro aqui por tua causa?! Não vês que
estou espiada, seguida e vigiada a
todos os instantes! Não vês o ciúme que Mme. Brizard, Coqueiro, a tal Amélia,
Nini, o diabo! afetam por ti?!
— O ciúme?... perguntou Amâncio, deveras
espantado. — Mas o ciúme, como? por quê?
— Criança!... disse ela. E passou a
mão na testa. — Estás na aldeia e não vês as casas!
— Eu?!
— Sim tu!
E, assentando-se à beira da cama,
para lhe ficar mais perto, continuou diminuindo o tom da voz:
— Pois não percebes, filho, que toda
esta gente quer fazer de ti uma propriedade sua; que esta gente te considera um
tesouro precioso e teme que lho furtem? Não percebes, meu Amâncio, que há aqui
um plano velho, tramado para te fazer casar com Amelinha, isso porque és rico
e, na tua qualidade de homem de espírito, pouca importância ligas ao
dinheiro?!...
— Não! Dou-te a minha palavra em
como, até aqui nada percebia de tudo isto!...
— Pois fica, então, sabendo que há
uma grande conspiração contra ti ou, por outra, contra os teus bens!
— Ora essa! disse ele em voz baixa.
— Todos esses carinhos que eles
ostentam, todos esses cuidados e desvelos, artísticos, são laços armados à tua
ingenuidade!
— Estão bem arranjados!... respondeu
Amâncio, — se esperam que eu case com Amelinha!
— Não sejas hipócrita!... acudiu a
outra. — Tu gostas dela; não negues!
— Ah! gosto, não nego. Mas gosto,
sem intenção de espécie alguma; gosto, coitada, porque ela nunca me fez mal,
porque até lhe sou grato aos seus obséquios! Mas daí para casar!...
E, depois de um assovio de grande
esperteza:
— Não é o meu tipo, o meu ideal.
Demais, ainda não penso em casamento, nem sei se algum dia pensarei nisso!
— Por quê?
— Ora, respondeu ele — não vale a
pena a gente se casar! Há por aí tanta desgraça, tanta decepção que, para falar
com franqueza, não tenho ânimo...
— Julgas assim tão mal as
mulheres?...
— Com franqueza, é exato, filha! Não
digo que não haja mulheres virtuosas; isto, porém, é tão raro!... Prefiro não
arriscar!...
— Desconfio de tanto ceticismo na
tua idade!
Ele agitou os ombros.
— Um homem com esses princípios é
incapaz de amar... ajuntou ela.
— Tens em mim a prova do
contrário... retorquiu Amâncio sorrindo.
— Em ti?...
— Sim, e sabes disso perfeitamente!
— Disso, o quê?
— Que te amo...
— Não creio...
— Nesse caso, o cético não sou eu!
— Se me amasses, já mo terias
provado...
— Provado?
— Está claro. Não acredito nesse
amor cauteloso e metódico, que de tudo se arreceia, que se não quer expor, que
tem calma para medir todas as conveniências, que teme os olhares, os ditos, as
considerações de todo o mundo, que vem finalmente muito mais da cabeça que do
coração!
— Não creditas, então, que eu te
ame?...
— Não, decerto! Não te crimino por
isso!... És ainda muito criança, para sentires o verdadeiro amor, a verdadeira
paixão. Essa que não conhece obstáculos; que tudo pode e tudo vence; que é
capaz de todos os sacrifícios, sejam do bem ou sejam do mal; essa que levanta
os grandes crimes ou os grandes heroísmos! Amar, tu! E porventura saberás ao
menos o que é o amor?! Algum dia experimente, por acaso, o ciúme, o desespero,
a loucura, a que nos conduz o objeto amado! Não! Não queiras amesquinhar o
único sentimento que até hoje se tem conservado puro! não queiras amesquinhar a
coisa única respeitável que resta sobre a Terra! Para que possas falar a esse
respeito, primeiro é necessário que ames! é preciso que dês alma, vida, futuro,
esperanças, tudo, a uma mulher! é preciso primeiro que te esqueças de teus sonhos
mais queridos, de tuas melhores aspirações, para só cuidares nela viveres dela
e para ela! Então, sim! eu acreditaria em ti!
E Lúcia apoderou-se novamente das
mãos de Amâncio, e as palavras borbulharam-lhe com mais febre:
— Amor é o que sinto por ti,
entendes?! Amor é o que me faz esquecer a minha responsabilidade, o meu
destino, o meu dever, para estar aqui a teus pés, alheia a tudo, esquecida do
passado, descuidosa do futuro; só para te ver, só para te ouvir, só para me
saturar toda de tua presença!...
— Entretanto... disse Amâncio,
procurando afinar a voz pelo tom enfático com que falava a outra — entretanto,
nunca me permitiste fruir contigo os verdadeiros e mais saborosos proveitos do
amor! Tiveste a cruel habilidade de transformar um manancial de gozos em fonte
perene de tormentos e dissabores! Se me amas, digo-te eu agora, porque evitas a
todo transe que eu vá além dos nossos beijos?... Se me amas, por que impões o
suplício do teu rigor? Ah! eu só acreditaria na sinceridade de tais protestos se
fosses mais generosa comigo...
— Não! não! contrapôs ela,
abraçando-o. — Nunca faltarei aos meu deveres! nunca trairei meu marido! Sou
capaz de uma loucura; não, porém, de uma infâmia! Seria capaz de fugir contigo,
abandonar tudo por tua causa; mas introduzir-te covardemente na minha alcova,
nunca! Aceitaria um crime, sim! mas havia de aceitá-lo sob todas as
responsabilidades, com todas as conseqüências, que ele viesse a produzir! Seria
tua, mas não enganando a outro; seria tua, mas toda, inteira, lealmente!
Abandonaria por tua causa meu marido; antes, porém, de o fazer, dir-lhe-ia com
franqueza: “Fulano! Amo um outro! Não posso continuar ao teu lado, sem que te
engane todos os dias e a todos os instantes! Por isso — vou! Amaldiçoa-me, se
quiseres, mas não perturbes a minha felicidade!” Deixaria de ser esposa, para
ser concubina! Trocaria meu nome, minha posição, por algumas horas de delírio,
por algumas horas de sonho; mas, em todo o caso, a consciência nunca me
acusaria, o coração jamais se teria de maldizer!
— Vês?! disse ela, esfolegando
cansada de falar. — É por isso que até hoje me tenho portado deste modo
contigo; é por isso que domo os meus impulsos e os meus arrebatamentos! — Sou
de outro, não me possuo, não posso dispor disto!
E sacudia todo o corpo, com uma
obstinação provocadora e canalha.
Amâncio olhava para ela, mordendo os
beiços:
— Se é verdade que me queres
possuir... disse a intransigente, depois de uma pausa em que se ouvia a
respiração dos dois. — Arranca-me das mãos de meu marido e leva-me para onde
bem quiseres, faze de mim o que entenderes! Serei tua amante, tua companheira,
tua escrava; serei tudo que ordenares, contanto que eu tenha comprado com o
risco de minha vida a felicidade de nós ambos!
E Lúcia, agitando romanticamente os
cabelos, que ela por cálculo trazia soltos essas noites, perguntou com ímpeto:
— Compreendes agora a minha
reserva?! Compreendes que, apesar de minhas reclusas, eu te adoro, meu Amâncio,
meu amor, minha vida?!
— Entretanto, acrescentou ela,
quando se convenceu de que Amâncio não queria cair no laço — tenho fatalmente
de abafar todos os meus sentimentos, tenho de calcar todos os meus desejos,
porque amanhã nos separamos.
Amâncio ergueu-se, pasmado.
— Como nos separamos?... interrogou.
— Eu amanhã retiro-me desta casa...
esclareceu Lúcia, sem erguer os olhos. — Vou, e ainda nem sei para onde! Mas
não posso deixar de ir: manda-me a dignidade que aqui não fique nem mais um
instante!
— Como assim? explica-te!
— Oh! não me perguntes nada! Não me
perguntes nada, porque só o que te posso afirmar é que esta súcia... E indicava
o andar debaixo com um gesto trágico. — Esta súcia, receosa de que eu te
dispute à Amelinha, obriga-me a sair, obriga-me a separar-me de ti! Ah! os
miseráveis sabem o quanto eu te amo meu Amâncio! Temem que eu seja um estorvo
ao teu casamento com ela.
— Mas, filha, como te podem eles
constranger a sair?...
— Não me obrigues a falar, por amor
de Deus! Eu não quero, não devo dizer mais nada!
— Ora! Isso não é generoso de tua
parte! Se não podes usar de franqueza, para que então me excitas deste modo a
curiosidade?
— Não! Não te posso dizer mais nada!
Repele-me, se assim entendes, manda-me embora, mas, por piedade não me obrigues
a corar em tua presença!...
— Corar em minha presença?... Não
entendo, filha! Fala por uma vez. Abre o coração!
— Nunca! nunca!
— Mas é que tu me torturas, Lúcia!
E acarinhando-a:
— Vamos! não sejas criança, fala com
franqueza... Dize o que te fizeram! Não acreditas então que sou teu amigo? teu
amiguinho? Não crês que representas em minha vida uma preocupação constante, um
sonho, uma esperança?...
— Sim, sim, acredito, meu amor, mas
não mo obrigues a tratar de coisas, nas quais ainda não tenho o direito de
te falar!...
— Ora! que segredo pode ser esse,
tão negro, tão repugnante, que não mo queiras dizer?... É preciso que eu mereça
muito pouco da tua confiança!...
— Não, não é isso, mas é que me
falta o ânimo para confessá-lo... Mudemos de conversa...
— Não queres dizer? Bem! Acabou-se!
— Oh! não me fales desse modo, meu
querido!
— Então dize o que é.
— E prometes que não me acharás
ridícula?... prometes que a revelação do que te vou dizer não me amesquinhará
aos teus olhos?...
— Juro!
Lúcia tirou uma carta do seio e
entregou-a ao estudante.
Logo que este principiou a leitura,
ela cobriu o rosto com as mãos, como para esconder a vergonha.
Amâncio leu o seguinte em voz baixa:
“Sr.ª D. Lúcia Pereira. Há quatro dias que entreguei a seu
marido uma segunda conta do mês passado e deste mês, e, visto que até agora não
tenho recebido senão desculpas e promessas, tomo a liberdade de participar-lhes
que, de hoje em diante, não posso continuar a lhes oferecer comida e que
preciso urgentemente de cômodo ocupado pela senhora e seu marido. Espero, pois,
que até amanhã esteja o quarto n.º 8 desembaraçado e a minha conta selada e
assinada pelo Sr. Pereira; sem o que, pesa-me dizê-lo, não consinto que VV. SS.
levem consigo a sua mulata, que é o único bem de que posso lançar mão para
garantir a dívida.”
Estava assinado por extenso o nome
de João Coqueiro.
Amâncio dobrou a carta
silenciosamente, ao passo que Lúcia continuava a esconder o rosto.
— Em quanto importa?... perguntou
ele depois.
Ela conversando uma das mãos nos
olhos, tirou com a outra a conta do seio, e passou-lhe, sem dizer nada.
—“Quatrocentos e sessenta mil-réis”,
leu o moço para si. E fez um trejeito com os olhos.
Lúcia, ao lado, soluçava, sempre de
rosto coberto.
Amâncio pensou um instante, e disse:
— Não te aflijas... Eu posso, se
quiseres, arranjar o dinheiro para amanhã...
Ela, então, descobriu a cara e, sem
uma palavra, abraçou-se ao rapaz e começou a chorar.
— E hoje, perguntou ele, quando
Lúcia já se dispunha a sair — hoje mereço um beijo?...
Ela correu para Amâncio, sorrindo, e com os olhos fechados,
estendeu-lhe os lábios.
O estudante, com as duas mãos
abertas, segurou-lhe a nuca e principiou a sorver o “seu beijo”, demoradamente,
voluptuosamente, como se estivesse bebendo por um canjirão.
Lúcia, porém, ao perceber que a
coisa se demorava muito, arrancou a cabeça das mãos do rapaz e fugiu.
*
* *
Às nove horas da manhã subseqüente, voltava Sabino da casa
de Campos com a resposta de uma carta em que o senhor-moço pedia o dinheiro
necessário para satisfazer as dívidas de Lúcia.
João Coqueiro ficou assombrado
quando recebeu a quantia; correu logo em busca da mulher.
— Sabes? disse, assim que a viu. —
Pagaram!
— Hein?! fez Mme. Brizard, com
espanto. — Pagaram?! Tudo?!...
— Integralmente! Cá está o cobre!
E, depois do silêncio da admiração:
— E que te parece, a ti, hein,
Loló?!...
— Parece-me bom... A metade está
feita; agora já não se trata de receber-lhe a conta, é só de os pôr fora de
casa!
— Sim... mastigou o marido — mas
agora também é mais difícil fazê-los desarvorar! Já não temos um pretexto para
isso!...
—Pretextos não faltarão... respondeu
a francesa, e acrescentou: — O que me faz cismar é este dinheiro arranjado
assim à última hora... porque eles, ainda ontem, estavam bem apertados e
Pereira não arredou pé de casa durante o dia!
O marido refletiu um instante, e
depois exclamou, com vislumbres de quem se sente roubado:
— Ora, querem ver que aquela raposa
arrancou estes cobres ao Amâncio?!...
Mme. Brizard confirmou o alvitre com
um gesto de cabeça.
— E olha que não é outra coisa!
repetiu Coqueiro. — Que hoje Sabino, desde muito cedo, tinha já que fazer à
rua!
— Ora essa!... resmungou Brizard,
indignada e ressentida, como se aquele desfalque na carteira do estudante lhe
trouxesse um prejuízo imediato. — Ora essa!...
— Mas deixa estar que hei de saber
de tudo!... prometeu o locandeiro.
E, com efeito, daí a pouco o próprio
Sabino lhe confessava que fora pela manhã à casa de Campos levar uma carta e
que voltara com outra, recheadinha de dinheiro em papel.
O locandeiro revoltou-se, mas a sua
indignação subiu verdadeiramente ao cúmulo, foi quando lhe constou que o bom do
Amâncio, para ter ocasião de estar mais a tempo com Lúcia, recorria a todos os
meios e modos de afastar Amélia do quarto.
— Diz que não quer ser importuno,
contou a rapariga — que já bastam os incômodos que me tem dado, que não se acha
com o direito de fazer de mim uma irmã de caridade, e de obrigar-me a suportar
as suas amolações! E que eu viesse aqui para baixo, rir e conversar com os
outros, que ele teria nisso muito mais prazer!
— E tu, que lhe disseste? perguntou
o irmão.
— Eu disse que sentia o maior gosto
em prestar ao Sr. Amâncio aquela insignificância de serviço; que, se os fazia,
era por motu próprio!
— E ele?
— Ele disse que não, que não
admitia, e que ficava até muito contrariado, se eu não me viesse embora!
— Vês?! perguntou João Coqueiro à
esposa, apontando para a irmã. — Vês?! Tudo isto é obra da Sr.ª D. Lúcia!
E, depois de uma pausa, aflita:
— Aquela mulher não nos pode ficar em
casa! Haja o que houver preciso que ela se vá daqui quanto antes!
E deu a sua palavra de honra em como
havia de pôr cobro a semelhante patifaria.
Não sossegou essa noite. Enquanto os
mais dormiam, andava ele lá por cima, a farejar nas trevas, grudando-se contra
as paredes e escondendo-se pelos cantos.
Passou assim algumas horas; mas,
afinal, viu Lúcia sair do quarto, pé ante pé, atravessar a medo o corredor e
sumir-se, às apalpadelas, na porta do n.º 6.
A sua primeira idéia foi chamar
Pereira e mostrar-lhe a mulher no latíbulo do amante, mas considerou que o
homem seria capaz de romper com ela e, nesse caso, a ligação de Lúcia com o
provinciano tornar-se-ia inevitável! — Nada! pensou ele. Deixemo-nos disso.
Mas, também, não convinha esperdiçar uma questão tão boa
para desmascarar a velhaca.
Encaminhou-se, pois, na direção do
quarto do estudante. Lúcia, ao sentir que alguém se aproximava, correu a fechar
a porta por dentro, e fez sinal de silêncio ao enfermo.
Coqueiro parou defronte do n.º 6 e
bateu.
— Quem é? perguntou Amâncio, no fim
de pequena pausa, com a voz levemente alterada.
— Sou eu, disse o outro. Precisava
dar-te duas palavras... como vi luz no quarto...
— Desculpa! respondeu o doente. —
Mas agora não me posso levantar. Até logo!
— Boa noite! resmungou o dono da
casa, e afastou-se.
Lúcia fingiu-se muito assustada com
aquilo: — Coqueiro, se veio ali, foi para mostrar que sabia de tudo!
Naturalmente espiara pela fechadura!
E pendurou logo uma toalha na chave.
— É o que se chama ter fama sem
proveito!... observou Amâncio, a quem as negaças da mulher de Pereira já
impacientavam.
— Está em tuas mãos!... volveu ela.
— Já te expus com franqueza as circunstâncias...
— Tira-te do marido...
— Está claro!
— Isso por ora é impossível... Mais
tarde, não digo que não, mas por enquanto...
— É porque não me amas, disse a ilustrada senhora, abaixando
os olhos.
— Se te amo, minha vida! se te
amo!...
E ameigava-a, procurando beijá-la.
Ela fugia com o rosto, dizendo
aflitivamente que preferia nunca o ter visto. “Antes de conhecê-lo, ainda
conseguia suportar o marido abominável a que a prendera o destino, mas, depois
que fantasiara a possibilidade de viver com Amâncio, de possuí-lo, todo, sem
que outra o disputasse, não mais podia entestar com a miserável existência que
levava e com os dilacerantes sacrifícios que lhe cumpriam!”
Dito este fraseado, foi-se do
quarto, como das outras vezes, a fazer-se rogada, a medir os beijos que dava, a
prometer que não voltaria mais, se Amâncio persistisse nas costumadas
exigências.
— Ora bolas!... praguejou este,
quando se achou só. — Desta forma é melhor mesmo que não venha! Põe-me neste
estado e afinal musca-se, ainda por cima emburrada! Gaitas!
Mas a idéia de que aquela
resistência talvez não durasse mais do que o tempo da moléstia o consolava em
parte. — Sim, porque, em ficando bom, as coisas seriam de outro feitio! Tinha
graça que ele estivesse a pagar contas de quatrocentos e tantos mil-réis, só
para desfrutar a certeza de que a Sr.ª D. Lúcia o amava com todo o ardor de que
é capaz uma alma pura e apaixonada! Qual! Por semelhante preço preferi não ser
amado!
E adormeceu, impaciente por sair da
moléstia e entrar no gozo da felicidade que ele acabava de pagar adiantado,
como se abrisse para todo o ano uma assinatura de amor.
A ilustrada senhora conseguira o que
esperava: as suas negaças faziam-na mais desejada pelo rapaz e davam-lhe, aos
olhos deste, irresistíveis fascinações de coisa proibida.
Certas mulheres, quando se negam,
estão como a onça recuando para melhor armar o salto sobre a presa.
*
* *
Logo pela manhã do dia seguinte, já Coqueiro se apresentava
no quarto do provinciano, mas com o aspecto muito ressentido, os gestos duros,
o olhar cheio de recriminações.
— Então, ontem à noite, tinhas aqui
a Lúcia?... inquiriu de chofre, depois de cumprimentar Amâncio secamente.
O interrogado fez uma cara de
espanto.
— Não podes negar! Eu a vi sair!...
— É exato, respondeu o doente,
franzindo as sobrancelhas.
— Há, porém, de permitir que eu te
diga que andaste muito mal!... repontou Coqueiro. — Tens de concordar que eu
não posso, nem devo consentir em casa semelhante coisa!
E foi até a janela, olhou a rua
pelas vidraças. Amâncio não dava uma palavra.
O outro voltou, muito comprometido:
— Isto aqui é uma casa de família!
Sabes perfeitamente que temos conosco uma menina solteira — uma virgem! Não é
por mim, nem por ti, nem tampouco pela Lúcia; mas é por ela, sebo! por — minha
irmã! — a quem sirvo de pai! é por minha mulher, é por minha enteada e pelo
menino, é pelos hóspedes enfim!...
— Pois acredita que não houve nada
demais!... balbuciou Amâncio.
— Não, filho, tem paciência! Lá fora
o que quiseres, mas daquela porta para dentro, não admito, nem posso
admitir!... E passeando pelo quarto com as mãos nas algibeiras: — Que diabo! Eu
te preveni!...
— Ora o quê! resmungou Amâncio,
indignado com a hipocrisia do colega, mas sem coragem para dizer o que sabia a
respeito dele e dos costumes da casa. — Não abro o exemplo!... acrescentou.
— O que queres dizer com isso?
— Quero dizer que sei, tão bem como
tu, que aqui nem todos são santos!...
— Não te percebo...
— E é melhor justamente que não
percebas...
Mas, como o outro ainda se quisesse
fazer de desentendido, ele declarou, frisando as palavras, que nem sempre
ficava a dormir no quarto durante as noite e que então enxergava, às vezes,
melhor do que mesmo de dia... E falou indiretamente nas entrevistas do médico
do n.º 11 e no que sabia do próprio Coqueiro com referência à mucama.
— Olha! concluiu: — O que te posso
afiançar é que a mulher de Pereira só vem aqui ao quarto depois que me acho
doente, e, longe de ser com mau fim, coitada, é até com muita boa intenção! —
Entra, cavaqueia um pouco, dá-me a tomar o remédio e assim como veio se vai
embora, entendes tu?!
— Não há dúvida... gaguejou o
hoteleiro, cuja fúria se esvaziara de repente às bicadas do outro, que nem um
balãozinho de borracha. — Não há dúvida que tu és incapaz de cometer qualquer
leviandade dentro de uma casa de família; mas, a questão são as aparências, são
as más-línguas, são os outros hóspedes! Não os conheces, filho! Nenhum deles
acreditará que Lúcia venha ao teu quarto só para te dar o remédio e meio dedo
de palestra!... Sei perfeitamente que isso é exato, basta que o digas; eles,
porém, não terão a mesma boa fé! muito mais sabendo, como sabem, de quanto é
capaz aquela sujeita! Logo quem!...
— Oh! interjeicionou Amâncio. — Uma
senhora casada!...
— Casada o quê!... Da missa não
sabes nem a metade!
— Ela, então, não é casada com
Pereira?...
— Nunca o foi! com ele, nem com
pessoa alguma! Conheço até a mulher do Pereira, a legítima — uma velhusca, de
óculos, gorda, com um olho agachado, cheio d’água. Mora na Rua da Pedreira.
Amâncio estava tão pasmo quanto
indignado; aquela denúncia do colega produzia-lhe o mau efeito que
experimentado ao dar por falta do relógio. — Pois o demônio da mulher nem ao
menos era casada?... Ele, então, que diabo de papel representara?!...
— Cínica! disse em voz alta.
— Ora! fez o outro. — Não trates de
abrir os olhos e dir-me-ás depois as conseqüências!...
No Rio de Janeiro, prosseguiu —
havia muito artista daquela força! Amâncio precisava acautelar-se, se
não queria ser esfolado completamente. Lúcia o que desejava era agarrá-lo para
amante: farejava-lhe os cobres! Ele, porém, que não fosse tolo! que se não
deixasse fisgar por uma tipa de tão baixa espécie!
O provinciano jurava que, até ali,
jamais conseguiria coisa alguma das mãos dela.
— Isso sei eu!... tornou Coqueiro,
com um riso de velha experiência — isso não é necessário que me digas, porque
já conheço a tática das Lúcias! Negam-se, fingem-se difíceis, para valer mais!
Quer obrigar-te a cair, toleirão!
— Está bem aviada! exclamou Amâncio,
justamente como ainda na véspera havia respondido à Lúcia, quando esta lhe
falou a respeito de Amélia.
Ainda nesse dia Coqueiro aproveitou
a ocasião em que Pereira fazia a sesta e foi se entender com Lúcia.
Disse-lhe o que sabia a respeito das
visitas noturnas ao quarto de Amâncio e declarou terminantemente que não estava
disposto a consentir em casa semelhantes escândalos. Ela, que tivesse
paciência, mas fosse tratando de fazer as malas e cuidando de pôr-se ao fresco,
se não queria sofrer alguma decepção maior!
A ilustrada senhora ficou lívida, e
disparou sobre o locandeiro o mais terrível dos seus olhares. Uma cólera
massuda principiou a entupir-lhe a garganta. — Não queria acreditar em tamanho
atrevimento!
É! gritou por fim, trincando as
palavras. — Você põe-me fora de casa, porque tem medo que eu lhe tome o amante
da irmã!
— Insolente! bradou Coqueiro,
avançando um passo.
— Não te tenho medo, ordinário!
retrucou Lúcia empinando o peito contra ele. — Sairei daqui se bem quiser! Não
te devo nada, entendes tu?! Nada!
— Ah! Não deve porque ele pagou!
— E que tem você com isso?! Que tem
você com o dinheiro dos outros?! Ou, quem sabe se a donzela da irmã passou-lhe
procuração!...
— Seja lá pelo que for! eu é que não
a quero aqui, nem mais um instante. É fazer a trouxa e — rua!
— Também não preciso ficar nesse
bordel! exclamou ela, e rabanou com direção ao segundo andar.
— Que diz você, sua aquela?!
assistiu Mme. Brizard, cortando-lhe o caminho.
— É isso mesmo! respondeu Lúcia,
escarrando no chão com desdém. E as duas mulheres ficaram alguns segundos a
olhar em silêncio uma para a outra, de mãos nas cadeiras.
Coqueiro e Dr. Tavares meteram-se
entre elas.
Lúcia subiu ao n.º 8, aprontou as
malas num abrir e fechar de olhos, em seguida vestiu-se para sair, e já de
chapéu, a sombrinha na mão, o indispensável enfiado no o caráter de
uma refeição de hotel, em mesa-redonda. Agora compareciam apenas cinco pessoas:
Amâncio, Amelinha, Mme. Brizard, Coqueiro, Cezar e Dr. Tavares. O guarda-livros, esse continuava a não comer em
casa.
Mme. Brizard suspirava à vista dos
lugares vazios. — Oh! Que aperto de coração lhe fazia aquilo! Não podia
resistir a tanta contrariedade ao mesmo tempo!...
Pelo correr do jantar, falou a
respeito de Nini, queixou-se de saudades. Já à sobremesa, recrudesceram-lhe as
ternuras maternais, vieram-lhe nostalgias, uma lágrima saltou-lhe do olho
esquerdo. Chamou César para junto de si, abraçou-o e beijou-o repetidas vezes e
ficou a passar-lhe a mão pela cabeça. Um silencioso constrangimento se apoderou
das pessoas presentes; depois, ainda com a voz quebrada de comoção, ela pediu
ao Coqueiro que se não descuidasse de cobrar o que Lambertosa e Melinho ficaram
a dever. — Agora precisavam muito e muito de dinheiro!...
Mudaram-se no dia seguinte. Amâncio
ia muito incomodado, amanhecera pior, quase que não podia mexer com as pernas;
todos lhe profetizavam, entretanto, rápidas melhoras em Santa Teresa. O cômodo
que lhe destinaram era da casa o mais espaçoso e arejado.
Amelinha não o desemparava, já não escondia até os seus
carinhos, chegava-se abertamente para o rapaz, como se fora casada com ele. Às
vezes dizia-lhe segredos na presença do irmão ou da francesa; prestava-lhe
pequeninos serviços amorosos: levantar-lhe, por exemplo, a gola do fraque, se
fazia frio; abotoar-lhe o colarinho, se estava desabotoado; atar-lhe a gravata,
se o laço se desmanchava; chegar-lhe para junto a escarradeira se Amâncio
queria fumar.
Em Santa Teresa esses desvelos
multiplicaram-se. Aí já era a menina quem lhe metia os botões na camisa e as
fivelas no colete, quem lhe escovava a roupa e o chapéu, quem lhe punha o
perfume no lenço e lhe dava corda no relógio, e, quando fazia bom tempo e o
rapaz tentava um passeio pelo morro, era ela quem corria a lhe trazer a bengala
ou o chapéu de sol, perguntando muito solícita se ele não se esquecera dos
charutos e dos fósforos, se já tinha lenço, se levava dinheiro.
Mas, às vezes, resignava, quase que
ralhava com o estudante. Fazia-lhe censuras, tomava-lhe contas de umas muitas
coisas: Se Amâncio passara por tal rua, se estivera durante a ausência a
passear sempre ou se encontrara alguém porventura em alguma parte; quando lhe
sentia cheiro de álcool queria saber o que o rapaz bebera.
Amélia, enfim, se derramava por todo
ele, sem Amâncio dar por isso; invadia-o sutilmente, como um bicho que entra na
carne.
A nova residência punha-os muito mais juntos, muito mais unidos do que
a da rua do Resende. Os quartos eram pequenos, chegados uns dos outros; havia
um sótão com escadaria para a sala de jantar. Amâncio morava aí, sozinho.
Tinha de seu uma alcova e um pequeno
gabinete de trabalho; janelas para o nascente e para o acaso, despejando sobre
o jardim.
Embaixo, então, era a sala de
visitas, a de jantar e mais quatro cômodos, sem meter os quartos da criadagem,
a cozinha, a despensa e o banheiro. Num daqueles cômodos ficou João Coqueiro
com a mulher; no outro Amelinha; no outro o guarda-livros, e Dr. Tavares no
último.
A respeito da mobília, só se
carregou da Rua do Resende a que era de todo indispensável. Não se vendeu sequer
um objeto; o casarão renderia muito mais com os trastes e, além disso. Mme.
Brizard contava, mais dia, menos dia, reabilitar a sua antiga e afamada casa de
pensão. — Porque, dizia ela — era impossível que as coisas não voltassem ao
estado primitivo!...
Coqueiro é que parecia, como nunca,
satisfeito de sua vida. Cuidava da nova casa com muito interesse; falava em
melhoramentos e aconselhava a Amâncio a que comprasse uma mobiliazinha catita
para ver como “ficava então naquele sótão melhor que um príncipe no seu
castelo”.
A casa, de fato, convidava às
fantasias do gosto, porque era perfeitamente nova e bem-feita; o papel das
paredes estava imaculado, o chão limpo e os tetos virgens ainda de moscaria.
Amâncio experimentou rápidas
melhoras; quis logo descer à cidade, mas Coqueiro não lhe permitiu ir só.
Aproveitaram o passeio para comprar
a mobília. O provinciano recebera nesse mês dinheiro do Norte e retirara mais
algum da casa de Campos; João Coqueiro levou-o a uma loja de trastes e escolheu
ele próprio o que podia convir ao outro; isto é, uma cômoda, um lavatório, uma
boa cama de casados, uma secretária, duas estantes, um velador e seis cadeiras;
tudo de mogno e trabalhado a gosto moderno.
Estes arranjos pediam outras coisas;
escolheram-se também dois quadros para o intervalo das portas, um belo espelho
de parede, um relógio de pêndulo, tapetes, capachos e escarradeiras.
*
* *
Coqueiro, muito empenhado na
condução dos trastes, havia-se afastado alguns passos de Amâncio, quando este
sentiu baterem-lhe no ombro.
Era Paiva Rocha.
— Oh! exclamou, satisfeito com o
encontro. — Como vais tu? Há quanto tempo não nos vemos!... Que é feito de ti?
— Ai, filho, apoquentado! respondeu
Paiva. Ultimamente tem sido uma enfiada de coisas más!... Há dois meses que não
recebo dinheiro do correspondente; tinha aí um lugar de revisor numa folha e os
ladrões passaram-me a perna em mais de duzentos mil-réis; além de que, a besta
do diretor lá da escola lembrou-se agora de exigir uma infinidade de maçadas e
obrigar-nos a despesas impossíveis! O diabo!
E, mudando de tom, perguntou como ia
Amâncio; onde se metera, que ninguém o via?
O outro prestou contas de sua vida,
expôs os pormenores de sua moléstia, falou nos incômodos que dera à família de
Coqueiro, principalmente D. Amélia, que, por sinal, era uma excelente menina.
— Maganão!... disse o
comprovinciano, esbarrando-lhe intencionalmente no braço.
Amâncio repeliu com febre aquela
insinuação. O colega fazia uma tremenda injustiça, tanto a ele, Amâncio como à
pobre rapariga!
— Ora, filho! Queres tu agora dizer
a mim o que é a gente do Coqueiro!...
Amâncio abriu grandes olhos.
— Morde aqui! acrescentou o outro,
apresentando-lhe o dedo.
E em troca de um gesto negativo do
amigo:
— Não queres falar por ora, e fazes
tu muito bem! Mas é impossível que a tua ingenuidade chegue ao ponto de tomares
a sério a irmã de Coqueiro — a Amélia dos camarões!...
— Juro-te que, até aqui, só a tenho
tratado com todo o respeito!
O outro soltou uma risada.
— É fato! insistiu Amâncio, aborrecido
já com aquela troça do companheiro, mas ao mesmo tempo feliz por imaginar que
as suas esperanças sobre a rapariga eram perfeitamente justificáveis.
— Pois, se é fato, acredita que tens
representado um papel de tolo! Fazem-te a barba, filho!
Amâncio, então, para provar a pureza
de sua conduta, pintou o estado em que se achara ultimamente — entrevecido de
reumatismo, sem préstimo para nada. E contou o que sofrera com as bexigas.
— Ora, dize-me cá... volveu o outro
em tom de segredo. — Coqueiro já te não tem dado algumas facadinhas...
Confessa...
Amâncio, nem só confessou, como
disse até o dinheiro que por várias vezes emprestara ao senhorio.
— Hein?! bradou Paiva, fazendo-se
muito fino. — Queres mais caro?... E ainda tens escrúpulos, criança! Pois olha
que te não fazem nenhum favor — tu pagas, filho, e pagas bem!
E lembrou que não seria mau tomarem
alguma coisa num botequim próximo.
O outro declarou que estava ali à
espera de Coqueiro.
— Deixa lá o Coqueiro, homem! Tens
medo de ir só para casa?...
— Mas é que não sei se me fará mal
beber alguma coisa. Ainda estou em uso de remédios.
— Não sejas idiota! exclamou Paiva,
puxando-o pelo braço.
Amâncio deixou-se levar, não tanto
pelo prazer da companhia, como pela circunstância de se livrar de Coqueiro, o
que lhe dava esperanças de ver Lúcia ainda essa tarde.
No café, defronte dos copos, a
conversa voltou de novo à gente de Mme. Brizard.
— Gentinha! qualificou Paiva,
atirando a palavra com o desprezo de quem lança fora o sobejo de um copo.
E, depois, entortando os lábios,
numa obstinação torpe:
— A questão está no pagamento!
Amâncio riu. Sentia-se feliz; aquele
dia de liberdade, depois de tamanho recolhimento, os cálices de xerez, as
palavras degotadas de Rocha; tudo isso lhe picava o espírito com uma pontinha
de alegria devassa. Seus gostos, suas tendências luxuriosas, volviam-lhe em
revoada, como pássaro de arribação. Ficou expansivo, disposto aos
desabafamentos da vaidade. Em breve,
contava tudo o que se passara com ele na casa de Mme. Brizard, descrevia
as maneiras de Amelinha com sua pessoa, os pequenos cuidados amorosos, as
pequeninas frases significativas; narrou minuciosamente as cenas com Lúcia e
disse que, ao sair do café, iria visitá-la à Tijuca.
— Está claro! trejeitou o outro,
cuspilhando a areia branca do chão de pedra e batendo com a ponta da bengala
sobre os pés cruzados. — Eu, no teu caso, já teria desforrado melhor os cobres!
— Achas então que eu devo...
— Ora, filho, é o que se leva deste
mundo! A respeito de virtudes temos conversado! Eu cá só acredito numa
castidade — a da velhice!... tirando daí...
E concluiu a sua idéia com um gesto
feio.
Amâncio já recorria à moléstia para
justificar aos olhos do amigo a atitude respeitosa que ocupara ao lado de
Amélia — o colega que não o julgasse um tolo!... Mas que diabo havia ele de
fazer, tolhido de dores, como estava, numa cama?...
Quando se despediram, Paiva deu a
entender que precisava de dinheiro; mas Amâncio negou-o, apesar de bem provido,
dizendo com a voz triste que “sentia muito não poder servir naquela ocasião”.
O outro, sem mais querer ouvir coisa
alguma, retirou-se logo.
*
* *
Amâncio, assim que se viu livre,
correu a tomar um tílburi e bateu para a casa de pensão, onde estava Lúcia.
Era um palacete, com magnífica aparência.
Janelas de sacada, grande corredor ladrilhado de mármore e velhas escadarias
encentradas de tapete de oleado, preso a cada degrau por um fio de metal
amarelo.
Foi recebido cerimoniosamente no
salão por uma mulheraça muito gorda, de lunetas, extremamente decotada,
mostrando entre as almofadas do peito ramificações de veiazinhas escarlates,
que pareciam miniaturas de árvores secas desenhadas a bico de pena. Em um dos
braços luzia-lhe uma jóia e, por debaixo do vestido de cambraia, aparecia-lhe o
pé quase redondo e empantufado de veludo azul.
Tinha a voz grossa, cheia de uu,
e o lóbulo do queixo coberto de penugem negra.
Ao saber que Amâncio não ia com a
intenção de tomar algum cômodo, mas sim para falar à Lúcia, retirou-se
sacudindo os rins; e da sala o estudante lhe ouviu gritar ao criado “que fosse
prevenir à senhora do Sr. Pereira de que aí estava um cavalheiro que lhe
desejava falar!.
Lúcia mostrou-se no fim de meia hora, a pedir mil perdões
por se haver demorado mais um pouco. Fizera toilette especial para
recebê-lo e parecia muito lisonjeada com a visita.
Declarou, logo, que o achava mais gordo, de melhor
fisionomia. — Abençoada moléstia, a dele!
E, em resposta ao que o rapaz lhe
perguntava sobre aquela nova residência, elogiou muito a casa, o serviço.
“Sempre era outra coisa! Nem havia termo de comparação entre esta e a de Mme.
Brizard!”
Amâncio voltou-se todo na cadeira,
considerando a sala. Uma rica sala, apesar de velha — grande, espelhada,
cortinas de ramagem, consolos cobertos de jarras com flores artificiais de
pena. A um dos cantos um piano antigo e no centro do teto de estuque, no lugar
donde espipava o lustre, um grande escudo de cores, rebentando em cabecinhas de
anjos.
Falaram logo sobre as novidades da
casa de pensão de Coqueiro: a saída dos hóspedes, a morte do tísico, a mudança
para Santa Teresa.
— Você ali está seguro!... disse
Lúcia.
O estudante protestou com um gesto,
em que já havia alguma coisa das revelações que pouco antes lhe fizera Paiva
Rocha.
E, discutindo os amores de Amelinha,
foram pouco a pouco empurrando a conversa para o verdadeiro motivo da visita,
até que Amâncio conseguiu tratar de si, das suas saudades, do quanto desejava
Lúcia, do quanto sofria por causa daquela ingrata que ali estava!
— Mais baixo! Olha que te podem
ouvir!...
Ele então chegou-se mais para a
ilustrada senhora, tomando-lhe as mãos que cobria de beijos, e, no seu ardor,
com a voz abafada, os olhos acendidos, procurava arrancar-lhe uma resposta
definitiva, uma palavra qualquer que o restituísse por uma vez à tranqüilidade.
— Está quieto! respondeu a tirana. —
Está quieto!
E, vendo que o demônio não a
escutava, em risco de comprometê-la aos olhos de quem por acaso entrasse na
sala, propôs mostrar-lhe a chácara enquanto esperavam pelo jantar. — Que ela já
o não deixava sair sem ter jantado!...
Havia duas descidas; uma pelo
corredor e outra pela varanda. Tomaram por esta.
Lúcia, muito disfarçada, ia-lhe
apontando os cômodos e as benfeitorias da casa, com tanto empenho e gosto como
se fora mesma proprietária; mostrou-lhe o banheiro, os tanques para a lavagem
de roupas, o coradouro, o cercado das galinhas e por último o jardim.
Colheu logo uma rosa e, por suas
próprias mãos, enfiou-a na gola do fraque de Amâncio.
Em seguida atravessaram a horta.
Canteiros grandes cobertos de
verdura, saturavam o ar de um cheiro fresco de hortaliças. As alfaces brilhavam
ao sol dourado de julho. Mais adiante havia um sombrejar melancólico e
delicioso de árvores grandes; era a chácara; viam-se no ar as folhas largas e
recortadas da fruta-pão faiscarem, como lâminas de metal brunido; ao passo que
as bojudas mangueiras se debruçavam sobre a terra numa concentração pesada de
sono.
Os dois prosseguiram de braço dado
por entre o murmurejar tristonho daquelas sombras. E lentamente, e sem trocarem
uma palavra, se deixaram ir até a espalda de um muro que servia de limite à
chácara.
Havia um grosseiro banco de pau meio
escondido entre bambus e trepadeiras. Assentaram-se. Um fio d’água corria da
montanha e os passarinhos remigiavam trilando na mole embalsamada das estevas.
Amâncio passou um braço na cintura
de Lúcia e chamou-lhe o corpo para junto do seu. Ela deixou-se arrebatar,
bambeando a cabeça, num encontro apaixonado de lábios.
O rapaz parecia louco no seu desejo.
— Não! Isso não! dizia a outra. —
Mostre que é um homem de espírito! Não se queira confundir com esses
materialões que há por aí!
Ele opunha as razões que lhe vinham
à cabeça para justificar os seus rogos: “Lúcia que não quisesse desvirtuar o
amor, o verdadeiro amor, fazendo de um sentimento real e fecundo uma pieguice
romântica e desenxabida.” Lembrou-lhe o que ela própria dissera, quando pela
primeira vez estiveram juntos.
E, num esfolegar febril e ruidoso,
suplicava-lhe um pouco de compaixão, ao menos; que não o torturasse daquele
modo; que não o obrigasse a sucumbir ao desespero de sua paixão!
Lúcia não atendeu. — Ele que
deixasse a casa de Mme. Brizard e viesse tomar um cômodo ali na Tijuca.
Assim... bem! Mas, naquele momento e naquelas circunstâncias... Não! não! e
não!
Apesar da enérgica recusa, Amâncio insistia sempre.
— Não seja teimoso, repreendeu ela,
arrancando-lhe as saias da mão. — Oh!
Ele, porém, não se desenganava e até
já recorria à violência.
— Pior! disse a mulher, notando que
o estudante lhe desgrenhava os cabelos e machucava-lhe as roupas. — Já não vou
gostando muito da brincadeira!
E, a um movimento desabrido do
rapaz:
— Ora pílulas! Isso agora também já
é estupidez!
Amâncio ao seu lado bufava, imóvel,
emitindo sobre ela olhares de cólera.
— O senhor faz-se desentendido!
exclamou Lúcia, afinal, endireitando o penteado e armando as lunetas. — Há
muito devia compreender que nada alcançará de mim, enquanto eu estiver com meu
marido!
— Marido o quê! desmentiu o
provinciano, com a voz sufocada. — Tão marido como eu!
Lúcia olhou para ele, apertando os
olhos.
É isso! sustentou aquele. — Sei de
tudo! A senhora quer fazer de mim um tolo, pois fique sabendo que não faz!
Trate de arranjar outro, porque comigo perde o seu tempo!
Ela o mediu de alto a baixo,
levantou desdenhosamente o lábio superior, e afastou-se com um grande ar
emproado e senhoril, murmurando entredentes:
— Ordinário!
Amâncio calcou o chapéu sobre os
olhos, e, de cabeça baixa e passos lentos, retomou pelo caminho andando, a
fustigar com a bengala as ervículas da estrada. Saiu pelo portão da chácara.
Já na rua, sacudia os ombros e disse
a meia voz:
— Que a leve o diabo!
XV
O rapaz acordou muito bem disposto
no outro dia, estava, ou pelo menos parecia, restabelecido completamente. Os
ares tonificantes de Santa Teresa produziram-lhe efeitos miraculosos.
— Até que enfim podia mandar ao
diabo os xaropes e as tisanas que, de tempos a essa parte, lhe melancolizavam a
vida e relaxavam o estômago. E, ainda metido entre lençóis, na matinal preguiça
das sete e meia, dispunha-se a filosofar sobre o ridículo episódio da véspera,
quando um leve rumor na porta do quarto lhe desviou o curso das idéias. Era a
menina que trazia o café.
Viu-lhe a pálida mãozinha medrosamente surdir por entre a
fisga da porta mal cerrada, para depor no chão, como era de costume, a chávena
de porcelana. Amâncio, porém, desta vez saltou da cama e, correndo de gatinhas,
a empolgou nas suas.
A mãozinha quis fugir, ele não
consentiu, e com ela veio um braço que as folhas da porta arremangavam.
Começou a beijá-lo sofregamente,
desde a ponta dos dedos até os bíceps; enquanto Amélia, sempre escondida ia
consentindo, toda ela arrepiada em cócegas.
— Um beijinho... pediu ele,
mostrando o rosto.
— Logo!
— Com certeza?...
— Com certeza!
E a pequena desapareceu muito
ligeira — tique, tique, tique, pela escada.
Pouco depois combinaram a primeira
entrevista. Ela subiria ao sótão, logo que a casa estivesse completamente
recolhida. Amâncio que a esperasse no escuro e com a porta do quarto apenas
cerrada.
O rapaz não pôde ficar tranqüilo
mais um instante.
As horas nunca lhe pareceram tão
longas e as conversas tão intermináveis. Um sobressalto feliz perturbava-o
todo, tirava-lhe o apetite e não lhe permitia um pensamento que não fosse cair
aos pés de Amélia.
Por maior caiporismo, Dr. Tavares
tinha essa noite uma visita que parecia disposta a não largá-lo. Era um velho
de sua província muito falador de política, apaixonado pelas eleições, pelos
conservadores, mas que, nem à mão de Deus Padre, pronunciava os rr e os ss
e dizia: “Os partido liberá, os senado”, e outras barbaridades.
— Quando se irá este cacete?...
pensava Amâncio, trêmulo de impaciência.
E Tavares a puxar pelo demônio do
homem, a fazer-lhe perguntas sobre perguntas e a despejar contra ele a sua
retórica inexaurível.
Até o guarda-livros que às vezes
passava dias e dias sem dar uma palavra, estava essa noite disposto a falar
pelos cotovelos. Ainda pilharia o chá e, repimpado na cadeira, com um brilhante
a luzir num dedo, o ar satisfeito, os punhos bem engomados, taramelava a
respeito dos seus projetos de casamento. “Sim, que ele, havia coisa de ano e
meio, estava para desposar uma linda menina e de educação esmeradíssima. Já há
que tempos a pedira!... Só esperava que a casa, onde trabalhava desde os seus
quinze anos, desse sociedade, como, aliás, havia já prometido. — Ah! Toda a sua
ambição era fazer família! Quer vidinha melhor que a do casado?... o matrimônio
era um complemento do homem... A gente
enquanto moço não sentia a falta da esposa, mas depois... quando chegasse a
velhice?... Aí é que seriam elas! Não! não podia admitir um eterno celibato!...
A vida de solteiro tinha seus encantos, tinha, para que negar?... os espinhos,
porém eram em maior número; se eram!...
E citava os casos.
Amâncio retirou-se da varanda,
sufocado de raiva. Preferia esperar no quarto.
Deu doze horas. Amelinha pediu
licença e também se recolheu. Mme. Brizard, à cabeceira da mesa, já bocejava,
entretendo os dedos a fazer pílulas das migalhas de pão que ficaram do chá; o
marido, ao lado dela, estudava mecânica racional.
Veio finalmente o copeiro levantar a
mesa e buscar César para a cama. O guarda-livros apertou as mãos de todos e
sumiu-se; o sujeito dos partido liberá, a despeito das insistências do
amigo, despediu-se igualmente e, quando o advogado, que o fora acompanhar até o
portão da chácara voltou à varanda, já não encontrou ninguém.
Em pouco a casa era toda silêncio e
trevas. Então, Amelinha deixou o quarto sorrateiramente, tirou as botinas,
apanhou as saias e galgou a escada do sótão.
Amâncio, que a esperava na porta,
logo que a teve ao alcance da mão, puxou-a para dentro, e deu uma volta à
fechadura.
Desde esse momento, a vida em casa
de Mme. Brizard tornou-se para ele uma coisa muito agradável. Ninguém mostrava
desconfiar, ao menos, de suas intimidades com Amélia, pelo seu lado parecia
satisfeita com o estado das coisas.
Só uma ligeira circunstância
covardemente o arreceava: é que a pequena não lhe exibira amor em quarta ou
quinta edição, como dizia Paiva, mas em comprometedoras primícias, com todos os
cruentos requisitos de uma estréia.
Fugiu o primeiro mês da lua-de-mel,
sem o menor eclipse. Contudo, ele agora puxava um pouco mais pela bolsa: a família
estava em crise; a pensão de Nini absorvia os proventos que se obtinham de
Tavares e do guarda-livros; o casarão da Rua do Resende apenas conseguiria
alugar em parte; os gêneros de primeira necessidade eram mais caros em Santa
Teresa.
Mas que valia tudo isso posto em
confronto aos gozos que lhe proporcionava a deliciosa rapariga?
Ela parecia viver exclusivamente
para lhe dar carinhos e afagos. Era como se fora sua esposa; deixava tudo de
mão para só cuidar do amante. — Ele estava em primeiro lugar! Agora a pequena
lhe fazia a cama; levava-lhe ao quarto o moringue d’água, penteava-lhe os
cabelos, e exigia que o rapaz lhe dissesse os passos que dava, por onde
estivera, com quem falara e o dinheiro que gastara. Revistava-lhe conjugalmente
as algibeiras, lia-lhe as cartas e, sempre desconfiada, cheirava-lhe as roupas.
Amâncio sorria de tais ciúmes, com o ar seguro de quem
desfruta em paz uma felicidade legítima e abençoada por todos. Já não furtavam
beijinhos assustados por detrás das portas; não roçavam os joelhos por debaixo
da mesa, e não se serviam das mãos como instrumento de amor; guardavam-se para
as liberdades da noite, para a independência do quarto. Na ocasião, porém, em
que ele saía para as aulas ou à noite para o passeio, beijocavam-se, sempre, como
dois bons casados.
Entretanto, as épocas de exame
batiam à porta. Amâncio vivia em desassossego com os seus estudos tão mal
apercebidos; mas Coqueiro dava-lhe coragem, ensinam-lhe como devia proceder,
dizendo-lhe o que devia estudar de preferência, aconselhando-o a que não
tivesse medo. “Amâncio que se apresentasse de cabeça erguida: o bom êxito nos
exames dependia quase sempre do desembaraço mais ou menos atrevido do
concorrente!” E citava exemplos: “Fulano, que apenas conhecia dois pontos de
tal matéria, chimpara distinção, só porque era de um descaramento
imperturbável; ao passo que sicrano, apesar de muito bem preparado, não
conseguiria passar com a sua vozinha trêmula e o seu todo raquítico e
assustado!”
Um novo acontecimento veio, porém,
desviar Amâncio daquela preocupação: por telegrama de sua província,
constou-lhe que o velho Vasconcelos morrera de beribéri fulminante.
Os pormenores chegaram no primeiro
vapor: “Vasconcelos fora atacado como hoje e morrera como depois de amanhã. Ia
pela rua, muito senhor de si, quando, de repente sentiu afrouxarem-se-lhe as
pernas e teria desabado no chão, se dois homens que passavam não o socorressem
prontamente.
Foi recolhido à primeira casa, que
era felizmente de um amigo. Meia hora depois já lhe principiava a faltar a respiração: a moléstia subia,
ameaçando-lhe o estômago. Fez-se uma junta de médicos; ficou resolvido que o
doente devia seguir, sem perda de tempo, para qualquer parte, — Caxias,
Rosário, mesmo Alcântara, a Vila do Paço, que fosse, contanto que saísse da
cidade quanto antes, até aparecer um vapor que o levasse para mais longe.
“Partiu nesse mesmo dia, dentro de
uma rede, com direção à Vila Paço. Mas o terrível beribéri subia sempre; os
membros por onde ele atravessava iam ficando paralisados e frios como membros
de defunto. A onda maldita galgara finalmente a caixa torácica, Vasconcelos não
pôde respirar de todo e morreu.”
Amélia, ao receber a inesperada
notícia, rebentou num berreiro e tratou de cobrir-se de luto fechado.
O irmão também se vestiu de preto,
fez cerrar as portas e as janelas de casa por sete dias e, durante esse tempo,
andou tristonho e anojado.
*
* *
Amâncio perturbou-se deveras com a
morte do pai. Há bastante tempo mentalizava projetos de, em voltando à
província, tratá-lo de modo tão carinhoso e tão amigo, que sua consciência,
ficasse por uma vez, tranqüila a esse respeito. Havia no segredo de tal
intenção o sabor inefável de um voto religioso. E seus planos, assim malogrados
de repente, enchiam-lhe agora o coração de tristeza e as noites de sonhos
tormentosos.
Mas Amelinha lá estava para o
consolar, para lhe reprimir os gemidos com a polpa vermelha de seus lábios e
espantar-lhe os negrumes do desgosto com a luz voluptuosa de seus olhos e com a
doçura cristalina de suas palavras.
Veio Campos. Trataram longamente do
“triste acontecimento”: Amâncio queria dar um pulo ao Norte: a mãe com certeza
precisava dele ao seu lado, quando mais não fosse para tratar do inventário.
O negociante já não compreendia
assim: “Estavam a chegar os exames; Amâncio, se saísse da Corte naquele
momento, perderia o ano; o melhor, por conseguinte, seria esperar pelas férias.
Pois então! eram mais alguns dias de demora que não prejudicavam a ninguém!...”
Coqueiro pensava do mesmo modo. “Nem
o colega encontraria alguém com um bocadinho de juízo que lhe aconselhasse uma
semelhante viagem antes do ato. Era até loucura pensar nisso.”
Cruzaram-se cartas entre o Rio de
Janeiro e Maranhão. Amâncio foi considerado
maior pelo Juiz de Órfãos podia receber o que lhe tocava na herança. Mas
a firma liquidante ofereceu-lhe sociedade em comandita; ele aceitou, a conselho
de Campos, e instituiu na província um advogado de confiança para lhe curar dos
bens. Escolheu-se o Dr. Silveira, o dos cabelos pintados, aquele mesmo que, no
dia do exame de português, se mostrara tão entusiasmado pelo rapaz.
Até que enfim estava Amâncio livre e
senhor de sua bolsa; podia gastar à farta, sem sofrer daí em diante as peias da
mesada. E não o amedrontava igualmente o risco de cair na penúria, porque ainda
havia para reserva o que tinha a herdar da mãe e da avó.
Os carinhos e as solicitudes da
família Coqueiro inflamaram-se, já se vê, com os últimos acontecimentos. O
estudante era cada vez mais adulado e em compensação mais explorado. Agora, o
irmão de Amélia não punha o menor escrúpulo em lhe aceitar os obséquios e a
casa ia ficando a pouco e pouco às costas do provinciano.
Era sempre por intermédio de Amélia que ele sofria a
cardadura. Hoje tratava-se do aluguel da casa, amanhã seria a conta do Eiras,
depois a dos fornecedores; se entrava um barril de vinho para a despesa, ou um
saco de feijão, se aparecia um novo aparelho de porcelana à mesa do almoço ou
do jantar, Amâncio ficava à espera da fatura que, à noite, impreterivelmente, passava
das mãos da rapariga para as suas.
Amelinha, essa então, já não
procurava rodeios para lhe arrancar as coisas. Quando precisava de um vestido,
de uma jóia, de um chapéu, dizia-lhe secamente: “Deixa-me tanto, que amanhã
tenho de fazer compras.”
E as despesas da casa recrudesciam,
à proporção que minguavam os lucros. O guarda-livros despedira-se porque afinal
chegara a época do seu casamento, e ninguém o substituiu; só ficou o advogado
que deixaria por mês, quando muito, uns duzentos mil-réis.
Amâncio ia suportando a carga
silenciosamente, certo de que não encontraria dificuldade em despejá-la, assim
que a coisa lhe cheirasse mal.
Todavia, o dinheiro era já o único
recurso de que dispunha para fazer calar a amante, quando esta lhe falava em
casamento. Em tais ocasiões, a rapariga chorava quase sempre; dizia-se infeliz;
queixava-se da sorte. “Que Amâncio fora a sua perdição! que ela cedera aos
rogos dele na persuasão de que era amada e de que mais tarde seria sua esposa!”
— Ora, filha! Nós, antes de cairmos
na asneira em que caimos, não tocamos
uma só vez em casamento; E, se queres que
te diga com franqueza, eu até nem supunha ser o primeiro com quem
tivesses relações!...
Ela irritava-se ao ponto de
ameaçá-lo com um escândalo. Amâncio que se não enganasse, pois que havia ainda um João Coqueiro sobre a terra! Ele
que não caísse no descoco de querer desampará-la, porque então as coisas lhe
sairiam mais atravessadas!
Estas rezingas terminavam sempre por
uma nova exigência de Amélia. E já se não contentava com um chapéu ou com um
par de botinas, queria vestidos de seda, jóias de valor e dinheiro para gastar.
Uma noite, Amâncio ficou abismado por lhe ouvir falar na
compra de um chalé nas Laranjeiras.
— Sim! reforçou ela, ao perceber que
o rapaz não tomava a sério suas palavras. — Despedia-se Tavares e ficaríamos à
vontade por uma vez! Eu não estou satisfeita aqui!...
Ele tornou a sorrir. — Amélia com
certeza estava gracejando...
Mas a rapariga jurou que não,
recorrendo a todos os segredos de sua ternura. Afinal, vendo que o amante não
cedia, zangou-se como de costume.
— Tu assim o queres; disse,
arrancando-se dos braços dele — pois bem, tu assim o terás! Amanhã hás de ver o
que sai nesta casa!
Amâncio encolheu os ombros.
— Não te importas?! Pois veremos
quem tem razão!
E limpando os olhos:
— Ingrato! Porque sabe que a gente o
estima, abusa deste modo! Tola fui eu em me deixar seduzir!...
— Eu não a seduzi! Ora essa!
— Até fez mais, replicou ela —
desonrou-me!
— Pois desonrada ou seduzida, não tenho
dinheiro para comprar casas!
Amélia saiu essa noite do quarto do
estudante ameaçando fazer estourar a bomba no dia seguinte.
E, pela manhã, quando Amâncio, ao
seguir para as aulas, lhe foi dar o beijo favorito, ela muito amuada, voltou o
rosto, resmungando “que a deixasse”.
O rapaz prometeu que “ia pensar” e à
noite daria uma resposta.
Mas nessa noite, Amélia, pela
primeira vez, depois do seu novo estado, não se apresentou às horas habituais
no quarto do estudante.
Amâncio, sem perder as esperanças de
a ver surgir de um momento para outro e precipitar-se-lhe nos braços, não
conseguiria ficar tranqüilo. Aquele procedimento, vindo de quem vinha, o
revoltava como a mais infame das ingratidões!
Ouviu dar três horas, quatro, cinco.
Não se conteve, levantou-se, pisando forte, desceu à varanda e foi bater à
porta de Amélia.
Nada.
Bateu mais rijo.
— Que é? perguntou ela asperamente.
— Preciso falar-lhe.
— Não são horas próprias para isso!
— Ouça! Quero dizer-lhe uma coisa...
— Não tenho negócios! Entenda-se com
meu irmão!
Amâncio voltou ao quarto,
desesperado. Não que o acovardassem as ameaças da rapariga; bem percebia que as
suas relações com ela não eram em casa nenhum segredo e, além disso, desde que
aceitavam o pagamento, — ora adeus! nada podiam dizer! mas apoquentavam-se com
a falta que já lhe fazia o diabrete da pequena. Habituara-se a dormir ao calor
perfumado daquele corpinho branco, ajeitara-se ao cômodo amor daquela
mulherzinha nova e palpitante e, agora, não podia voltar, assim sem mais nem
menos, às suas tristes noites desacompanhadas de outro tempo.
Acordou muito tarde no dia seguinte.
Amélia, quando ele saiu do quarto, não lhe deu palavra; estava arrumando uma
caixa de retalhos, e arrumando ficou. Mme. Brizard havia saído para ver Nini. —
Coqueiro e os hóspedes achavam-se também na rua.
— Então a senhora não me quer falar?
perguntou Amâncio, fitando-lhe as costas.
Ela interrompeu o que cantarolava e,
sem se voltar, disse friamente:
— A culpa é sua...
E continuou a cantarejar, muito
embebida nos seus retalhos de fazenda.
Aquele desdém, namorador e
artístico, a tornava ainda mais desejável aos olhos do rapaz.
Parecia-lhe até mais bela esse dia;
como se os seus encantos, intervindo na perrice, florejassem caprichosamente
durante aquela noite de soledade.
Amâncio nunca lhe achou a pele tão
fina, os dentes tão brancos, os olhos tão vivos e tão formosos. O pálido e
ondulante pescoço da menina jamais lhe pareceu tão misterioso: a sua garganta,
macia e doce, jamais o cativara tão despoticamente. Ele, enfim, nunca a sentira
tão necessária, tão indispensável.
E as cenas venturosas dos seus
primeiros dias de amor lhe perpassaram vertiginosamente diante dos olhos,
derramando-lhe por todo o corpo um apetite brutal que lhe fugia por entre os dedos,
como um vinho precioso que se derramava.
— Então a culpa é minha?... disse
ele, afinal apalpando com a vista a carne esperta dos quadris e dos braços da
amante.
— Pois você não vê, respondeu ela,
voltando-se espevitada — que as coisas não podem continuar como até aqui?! É
uma canseira insuportável! Quase que já não durmo! Preciso esperar de olho
aberto que toda a casa se recolha e recolher-me ao quarto antes que o mais se
levantem! O resultado é que não descanso; ando tresnoitada; estou enfraquecendo!
Já tenho até uma dor do lado. Quem pode com esta vida?! Ah! você não sente, bem
certo! porque muita vez o encontro a dormir, e dormindo o deixo quando saio!
Mas eu?! se quero que não aconteça como outro dia (que nem sei como não deram
pela coisa!) o remédio que tenho é ficar alerta e não deixar que o dia me
surpreenda a dormir no seu quarto! Vê você?!
— Mas daí?... perguntou Amâncio, no
fundo compenetrado de que “a pobre menina” não deixava de ter o seu bocadinho
de razão.
— Daí... esclareceu Amélia — é que
nessa tal casa de que lhe falei, e que está para se vender muito em conta, há,
além dos cômodos necessários para Loló e Janjão dois quartos magníficos, com
entradas independentes e comunicáveis entre si por uma pequena alcova. Ora, um
dos quartos dá para a sala de visitas e o outro para a sala de jantar; no caso
que arranjássemos o negócio, você ficaria com um e eu ficaria com o outro, e
dessa forma acabavam-se os sustos e as canseiras; porque durante o dia
abriam-se as do lado de fora e fechavam-se as de dentro, mas à noite
praticava-se justamente o contrário, e ficávamos nós em completa liberdade!
Compreende você agora?...
— Sim. Amâncio compreendia e até
achava o plano muito bem lembrado, mas a questão é que não via necessidade de
comprar a casa, era bastante alugá-la...
— Sim, sim! mas é que o dono não a
aluga, quer vendê-la. E onde você encontra outra casa nessas condições?...
— Hei de passar por lá...
— Não. Vamos hoje mesmo, à tarde.
Loló já prometeu que nos acompanha.
— Pois sim.
E Amâncio puxou Amélia pelo braço,
para lhe dar um beijo.
— Sabes? bradou logo ao entrar,
empurrando a porta com fúria. — Aquela bêbada e o marido acabam de me enxotar
daqui por tua causa! Têm medo que eu te coma! Não posso ficar nem mais um
instante! Desejo que me emprestes o Sabino!
— O Sabino estava às ordens, mas
para onde se atirava ela com tanta precipitação?
— Não sabia! Havia, porém, de
encontrar um canto, onde se metesse! Havia de descobrir um buraco, ainda que
fosse no cemitério!
E Lúcia levantou os punhos até às
fontes, como para se esmurrar, mas cobriu o rosto com as mãos e abriu num
pranto muito nervoso. Era a reação que chegava.
Amâncio saltou da cama e correu para
ela. Desembaraçou-a do chapéu, da bolsa e da sombrinha e puxou-a depois sobre
si.
— Não te consumas... disse — não te
mortifiques desse modo.
— Sou uma desgraçada! respondeu a
mulher, assoando as lágrimas. — Nada se cumpre do que eu desejo! Nada! O melhor
é dar cabo desta vida miserável!
E soluçava com o rosto escondido no
peito do rapaz.
Na febre daquele choro agitado, os
seus movimentos transformavam-se em carícias. Amâncio sentia-lhe as lágrimas
quentes e o contato carnal dos lábios, que elas ensopavam. Os desejos
assanhavam-se-lhe de novo pelo corpo, como insetos que voltam com o calor.
E tornava a cobiçá-la com os mesmos
ardores primitivos.
— Não me queria separar de ti...
queixou-se ela, afinal, virgulando as suas frases com soluços suspirados. — Em
ti havia firmado todas as minhas esperanças de ventura, todos os sonhos de
minha vida! Amava agora a existência, só porque alguma coisa me fazia acreditar
que ainda um dia seríamos felizes!...
— E por que não havemos de ser?...
perguntou Amâncio condolentemente.
— Ora!... prosseguiu ela —tudo me
persegue, tudo me sai contrário... Foi bastante que eu te amasse, foi bastante
pensar que poderíamos ser um do outro, para que aqui se levantassem todos
contra mim e ferissem a guerra que tens visto!
E, desagarrando-se de Amâncio, para
segurar de novo a cabeça, num movimento de embaraço doloroso:
— Mas, imagina tu, que estou
inteiramente sem recursos!... Tenho que fazer a mudança e ainda não sei como
pagar o carreto das malas!... Vê tu que situação, que triste situação!
Amâncio beijou-a na boca e perguntou
se ela não lhe dava uma esperançazinha para depois que se mudasse.
Lúcia respondeu que dava, não uma
esperança, mas “uma certeza”. E, sem desprender os lábios dos lábios do rapaz,
afiançou — que lhe mandaria dizer por escrito o lugar onde seria encontrada; e
que ele fosse por lá as vezes que entendesse. — Aí ao menos estariam livres de
Coqueiro e das outras pestes!
— Prometes então?... insistiu ele, procurando garantir o
compromisso.
— Prometo, prometo o que quiseres, tudo! disse ela, ainda
chorosa.
Amâncio foi à algibeira do fraque,
abriu a carteira. Havia trezentos mil-réis, tomou uma nota de cem e entregou-a
a Lúcia, dizendo com pesar que era o único dinheiro que possuía na ocasião.
— Talvez te façam falta...
considerou ela escrupulosamente, sem querer tocar na cédula.
— Não! não! apressou-se a declarar o
rapaz. — Desculpa não te poder ser mais agradável.
Lúcia beijou-o de novo, e desceu
enfim ao primeiro andar, acompanhada pelo Sabino que já estava à sua
disposição.
Ordenou ao moleque de buscar, num
pulo, uma carrocinha, e logo que esta chegou fez embarcar as malas e mandou
chamar uma carruagem.
Enquanto esperava, reclamou a sua conta, atirou com o
dinheiro sem olhar para quem o recebia, embolsou o troco e, em seguida, foi
acordar Pereira.
— Onde vamos? perguntou este entre
dois bocejos, assim que a viu em trajes de sair.
— Venha daí homem! E deixe-se de
perguntas!
Pereira levantou-se espreguiçando-se
e acompanhou a mulher.
Esta o fez entrar na carruagem que
já havia chegado, assentou-se junto dele e disse ao cocheiro que tocasse para a
Tijuca. Deu-lhe o número.
Era o número de uma outra hospedaria
nas mesmas condições da que deixavam. Lúcia, que já pressupunha aquelas rápidas
mudanças, tinha por cautela, uma lista das principais casa de pensão da Corte
e, à medida que se servia de cada uma, riscava-a da coleção. A de Coqueiro era
no rol a sexta inutilizada com o traço enérgico de seu lápis.
Entretanto, ia Pereira
silenciosamente se atufando nas almofadas e, aos balanços monótonos do carro,
procurava reatar o sono interrompido.
XIII
A casa de pensão de Mme. Brizard
sofreu muito com as variolóides de Amâncio. Desmanavam-se hóspedes que era uma
coisa por demais.
O gentleman, o Piloto e a
pérola do n.º 9, “o estimável Melinho”, desde a fatal noite das cataporas, não
davam notícias suas. Fontes e a mulher sumiram-se logo no dia imediato, e, por
conseguinte, não metendo o tal médico do n.º 11, que já não aparecia há
bastante tempo, apenas seis hóspedes restavam dos quatorze primitivos.
E ainda mesmo destes seis nem todos
eram aproveitáveis; porque Paula Mendes e mais a mulher levantariam o vôo,
assim que lhes chegasse uma aragenzinha de dinheiro, e o estafermo do n.º 7
também estava a despedir-se por um daqueles dias, não da casa, mas do mundo.
Certos, só Amâncio, o guarda-livros
e o esquisitão do Campelo que, fugindo ao pigarro do tísico, mudara-se para o
andar de baixo, mal pilhara um cômodo desocupado.
Mme. Brizard estava, pois,
inconsolável. — Em sua vida de hospedeira jamais tivera um mês tão ruim!
E azoinada por essas contrariedades
e já de natureza um tanto supersticiosa, agora em tudo descobria sinais de mau
agouro e motivos para desconfiança. — Pois se até o ilustre Sr. Lambertosa, “o
respeitável gentleman, a flor dos homens finos, uma criatura tão cheia
de circunspecção”, quem o diria?... aproveitar ao ensejo das bexigas para lhe
passar a perna!
E o Melinho? “o estimável Melinho! a
pérola do n.º 9, o homem das frutas cristalizadas!” também não deixara as suas
contas em aberto?...
Só o Piloto, o estúrdio, aquele de
quem menos se esperava, aparecera três dias depois da fuga, perguntando, ainda
muito escabreado, de quanto era a sua dívida.
— É mesmo caiporismo! gemia a
francesa.
O marido, porém, soprava-lhe a
coragem: — Ela que não desanimasse por tão pouco! Nem tudo se perdera! Enquanto
tivessem o Amâncio não se podiam queixar da sorte; este valia por todos os
outros!
Mas o precioso Amâncio não estava
também muito satisfeito com a casa, talvez desconfiando que a esta coubesse em
parte a responsabilidade daquele maldito reumatismo que ora parecia extinto e
ora o obrigava a guarda a cama, tolhido de dores.
À noite, quando lho permitiam as
pernas, descia a cavaquear na varanda com os senhorios. Agora os serões tinham
um caráter mais íntimo e eram freqüentemente animados com a presença de uma família,
que voltara às relações de Mme. Brizard depois de seis meses de inimizade.
Tocava-se piano, jogava-se a
víspora, quase todos os dias e, às vezes, se dançava.
A casa de pensão nunca ofereceu aos
seus hóspedes um aspecto tão divertido; menos para o rabequista, Paula Mendes,
que parecia cada vez mais triste e apoquentado da vida. A circunstância de já
não comer à mesa de Coqueiro obrigava-o a desperdiçar muito tempo com o
restaurante e dificultava-lhe a subsistência da mulher, cujo mau humor ia se azedando
ao peso de tanta necessidade e de tanta humilhação. O infeliz marido conseguiu
afinal que ela fosse passar alguns meses na companhia dos parentes em Niterói.
Mme. Brizard, ao vê-la partir,
receou a premeditação de uma fuga e exigiu logo que Mendes, para garantir a
dívida, hipotecasse o piano que tinha no quarto.
O pobre homem consentiu, sem dizer
palavra, mas, de envergonhado, deixou de aparecer nos serões da sala de jantar.
E desde então, por alta noite,
quando toda a casa era silêncio, Amâncio ouvia no corredor o som de passos
trôpegos e um vozear confuso de alguém que monologava.
A casa de pensão, definitivamente,
ia se tornando insuportável ao estudante.
Não podia sair à rua; o médico,
havia quase um mês, jurara pô-lo pronto em quatro dias, se Amâncio não fizesse
alguma extravagância; a conversa de toda a família Coqueiro, à exceção de
Amelinha, o enfastiava; a leitura muito pouco o distraía, e, para complemento
do enjôo, o maldito tossegoso do n.º 7, o qual por caridade entregara ele
ultimamente ao seu médico, parecia morrer de cinco em cinco minutos e não lhe dava um momento de sossego.
Mas a causa principal desse tédio
era, sem dúvida, a ausência de Lúcia. Desde que ela se foi, o coração do rapaz
turgia de saudade; longe de esquecê-la, cada vez a desejava com mais
sofreguidão.
As trevas da ausência faziam-na destacar melhor e mais
linda, como um fundo negro a uma estátua de mármore.
Sentiu sobressaltos deliciosos
quando recebeu a primeira carta das mãos dela. Era extensa, cheia de imagens poéticas
e figuras de grande alcance amoroso; terminava dizendo “que Amâncio, logo que
pusesse os pés na rua, a fosse procurar”. O endereço vinha à parte, num
pedacinho de papel.
— E não poder ir quanto antes!...
Que espiga! considerou ele, sinceramente penalizado.
E cresciam-lhe os enjôos.
Só Amélia, com os estiletes da sua
perceptibilidade feminina, conseguiu penetrar no âmago daquelas tristezas, mas
não se deu por achada e redobrou os desvelos e meiguices para com ele.
Amâncio, por mais de uma vez beijou-lhe
as mãos suspirando que ela era o seu bom anjo, a sua consolação única no meio
de “tantos dissabores”!
Assim se passaram quinze dias. O
apaixonado já a tratava por tu, por você, raras vezes por senhora.
Era a piedosa Amelinha quem lhe
arrumava o quarto, quem lhe cuidava da roupa, e já por fim, era até quem lhe
levava o cafezinho pela manhã. Mas não entrava, apenas metia o braço pela
abertura da porta que ficava sempre encostada, depunha cautelosamente a xícara
sobre o soalho, e, se Amâncio ainda dormia, gritava-lhe no seu falsete
aprazível:
— Preguiçoso, acorde! são horas!
Depois, apanhava novamente as saias e descia a escada,
ligeira e sem rumor.
Outras vezes, ao anoitecer, subia
para lhe pedir um livro emprestado, para saber se ele queria o chá no quarto ou
se preferia descer à sala de jantar. Sempre havia um pretexto para lá ir e,
depois de lá estar, sempre arranjava um motivo de demora. Entretinha-se a ver o
que se achava sobre a mesa; examinando tudo; lia a lombada dos livros, e
brincava com um esqueleto que jazia pendurado a um canto do quarto.
Amâncio, de uma feita, não pôde
deixar de rir, quando a encontrou muito espantada a examinar as gravuras de um
tratado fisiológico de Vernier.
Estava, porém, mais e mais convencido de que toda aquela familiaridade
e toda aquela confiança da rapariga procediam do modo e das maneiras
respeitosas e fraternais com que ele, até ali, a tratara. E então, fazia por
domar os seus impulsos luxuriosos, receoso de cair-lhe em desagrado.
Verdade é que, em grande parte,
contribuía para esse estranho heroísmo de garanhão, não só a moléstia, como a
ilimitada confiança que, muito propositadamente depositavam nele Coqueiro e a
mulher.
Se Amélia e Lúcia trocassem os
papéis, isto é, se aquela se negasse e esta se oferecesse, é de supor que
Amâncio desdenhasse a última e ambicionasse a primeira.
Mas o Sr. João Coqueiro, apesar de
tão fino, não calculou que, em naturezas viciadas como a de Amâncio, o mais
forte estímulo para o amor é a proibição.
Embalde deixavam o rapaz horas e
horas no salão, às voltas com a menina; embalde Mme. Brizard lhe dava a
perceber o quanto era ele amado pela cunhada; embalde lhe chamava “coração de
gelo”; embalde lhe preparava todos os laços. — Nada produzia o efeito desejado;
Amâncio tornava-se cada vez mais respeitoso e mais frio em presença de Amélia.
Era para desesperar!
Uma ocasião, todavia, estava ele no
quarto, de costas para a porta e muito entretido a ler defronte do gás, quando
Amélia, pé ante pé, entrou sem ser sentida e, encaminhando-se contra o moço,
tomou-lhe a cabeça nas mãos e cobriu-lhe o rosto de beijos.
Amâncio quis prendê-la, mas a
rapariga não se deixou enlear, e fugiu, como um pássaro assustado.
*
* *
O rapaz, então, nunca mais receou
cair-lhe em desagrado. Mas o demônio do reumatismo lá estava erguido entre ele
e a provocadora menina. A despeito do tratamento, as dores recrudesciam-lhe de
vez em quando e assanhavam-se-lhe a bílis. Amâncio principiou a emagrecer,
tomado de uma estranha prostração, muito assustadora. O médico aconselhou-o
logo a que se mudasse para um arrabalde de bons ares, como Santa Teresa, por
exemplo, e esta notícia produziu enormes sobressaltos na família dos
locandeiros.
Mme. Brizard parecia ter um filho em
risco de vida; Coqueiro declarou, cheio de dedicação, que não deixaria o “pobre
amigo” ir assim desamparado para uma casa de saúde ou para um hotel; Amelinha
choramingava ao lado da cama do enfermo, e, quando se achava a sós com este,
beijava-lhe as mãos, afagava-lhe os cabelos e soluçava palavras de ternura.
Nesses dias Amâncio era assunto
obrigado das conversas da casa. À mesa e durante os serões não se falava noutra
coisa. Lembravam-se todos os expedientes: — uma mudança geral da família;
alugar fora uma casinha e levá-lo a passeio até que se restabelecesse;
abandonar a casa de pensão ou entregá-la aos cuidados de alguma pessoa de
confiança.
Nada, porém, ficava resolvido. A
conversa turbinava em volta do mesmo assunto, sem descobrir uma saída.
Nini era a única que parecia não
ligar a mínima importância a tudo aquilo; de olhos muito abertos, sonâmbula,
ouvia em silêncio as conversas da família, apenas suspirando de espaço a
espaço.
Não obstante, já uma noite estava a
casa recolhida, quando despertaram alarmados com o baque de um corpo que, entre
medonhos gritos, rolava pela escada do segundo andar.
Acudiram todos, num levante.
— Que era?! Que acontecera?
Nini, coberta de sangue, jazia
estendida sem sentidos ao sopé da escada. Rolara vinte degraus a partira a
cabeça em dois lugares.
Ia fazer uma visita ao seu esquivoso
enfermo, mas no patamar da maldita escada perdera o equilíbrio e baqueara
desastradamente.
Tomaram-lhe as feridas a pontos
falsos, friccionaram-lhe o corpo inteiro com aguardente canforada e deram-lhe a
beber cerveja preta.
Supunham, todavia, que amanhecesse
morta. Foi o contrário: Nini melhorou muito de seus antigos padecimentos e
apresentou uma inesperada lucidez de idéias, como há muito não possuía. — O
choque fizera-lhe bem e não menos o sangue que derramou da cabeça, afiançou o
médico.
Aquele trambolhão era uma
providência!
À noite, conversou-se bastante a
esse respeito; vieram as amigas de Mme. Brizard; choveram os comentários sobre
Nini; citaram-se as anedotas correlativas ao fato, e Amâncio, que se achava
então mais desembaraçado das pernas, entendeu de sua obrigação fazer uma visita
à pobre criatura.
Nini estava melhor que nunca: tranqüila; havia comido
regularmente e mostrava-se até mais satisfeita e mais comunicativa; ao dar,
porém, com Amâncio, que entrara no quarto com o seu risinho de boa amizade,
abriu de repente a estrebuchar na cama, bramindo impropérios e atassalhando as
roupas.
Para sossegar um pouco foi preciso
que o rapaz fugisse o mais depressa de sua presença. E, desde então, a
desgraçada não o podia ver, que lhe não voltassem logo as insânias e os
frenesis.
Estabeleceu-se um cuidado enorme
para evitar que os dois se encontrassem. Já não era permitido a Amâncio dar um
passo fora do quarto, sem se precaver e indagar se Nini estava por ali por
perto.
O médico declarou que um novo
encontro exacerbaria os padecimentos da enferma e talvez lhe produzisse a
loucura absoluta.
Mme. Brizard pranteava-se toda,
quando lhe falavam na filha. — Era uma desgraça, dizia, com os olhos espipados
pelo esforço que faziam — era uma grande desgraça! Antes Deus a levasse logo
para si, coitada!
Um encontro, que Amâncio não pudera
evitar, a despeito de suas precauções, deixou Nini em tal excitação nervosa,
que o doutor proibiu que a consentissem fora do quarto. Ficou presa desde esse
dia.
Malgrado a felicidade prevista ao
lado de Amélia, o provinciano sentia já bastante desejo de se tirar dali. —
Assim que estivesse bom!
Campos, em uma visita que lhe fez
por essa ocasião, falou muito na generosidade com que se portara a família de
Coqueiro durante a moléstia do rapaz. — Que aquilo era uma fortuna que nem
todos abichavam! Citou principalmente as canseiras de Amelinha e concluiu
declarando que, segundo o seu fraco modo de pensar, Amâncio tinha obrigação de
fazer à menina um qualquer presente de valor.
Sim! porque, no fim de contas, era
muito difícil encontrar aquilo nas casas de pensão! Outros foram eles, que
Amâncio teria de pôr os quartos na rua! — Não. Inquestionavelmente, era preciso
dar o presente!
E, depois de se concentrar numa
pausa:
— Aí uma jóia de uns cem mil-réis...
Que diabo! esse dinheiro não o faria pobre...
Mas o estudante, em voz discreta e
abafada, confessou a Campos que a brincadeira não lhe havia saído tão de graça,
como parecia à primeira vista: Só o mês passado gastara perto de seiscentos
mil-réis, sem contar que Sabino vivia numa dobadoura, de casa para a botica e
da botica para casa, e eram remédios para Nini, remédios para o tísico do n.º
7, água de flor de laranja para Mme. Brizard, xaropes para Coqueiro; um
inferno!... E toda essa droga caía na sua conta! — E os dinheiros
emprestados?... E as fitas, os botões, as linhas, as tiras bordadas, que
Amelinha estava sempre a lhe pedir que mandasse buscar nos armarinhos sem nunca
dar dinheiro para isso?... Não! Sr. Luís Campos não podia calcular o que havia!
— Hoje cinco mil-réis, amanhã vinte! E, no tirar das contas, parecia que tudo
isso, em vez de ser descontado, era aumentado nas suas despesas!... Que tal?! —
Recebera obséquios, sim senhor! mas também puxara muito pela bolsa!
Campos ignorava aquelas
particularidades... mas entendia que Amâncio, nem por isso devia menos
obrigações à família de Coqueiro.
E ofereceu a “sua modesta choupana”,
caso o estudante não quisesse continuar ali.
Amâncio rejeitou, um tanto por se
lembrar das esperanças que embalava a respeito de Amélia, um tanto por se não
querer sujeitar ao regime do negociante e um tanto por mera cerimônia.
— Enfim, disse o marido de
Hortênsia, despedindo-se — acho que o senhor deve fazer o presente e tratar
logo de sair daqui; já não digo pela questão da despesa, mas porque lhe convém
a saúde. Escolha um arrabalde de bons ares ou então dê um passeio a Petrópolis;
o médico afiançou-me que o senhor tem ameaços de febre paludosa, e isso é o
diabo na época que atravessamos: a febre amarela grassa por aí que não é
brinquedo!
*
* *
Logo que constaram as novas
disposições de Amâncio a respeito de mudança, houve uma grande consternação por
toda a casa.
— Deixar-nos? exclamou Mme. Brizard
em sobressalto. — Não consentimos! Se para o seu completo restabelecimento é
necessário um arrabalde, vamos todos para o arrabalde! Só — isso é que não!
Seria até uma falta de humanidade, coitado!
E formou-se um zunzum de opiniões.
Cochichava-se pelos cantos, em magotes, discreteando-se projetos em voz de
mistério, como se tratasse de um moribundo. Coqueiro andava de um lado para
outro, coçando deseperadamente a cabeça, gesticulando, à procura de um meio de
conciliar os seus interesses.
Amélia, afinal, subiu ao quarto do
doente, e, com uma aflição a quebrar-lhe a voz, toda a tremer, os olhos úmidos,
perguntou se ele tencionava deixar a casa.
Amâncio, ignorando o que ia por
baixo a seu respeito trejeitou uns momos de indiferença e respondeu: “que não
sabia ainda ao certo... havia de ver!... mas que o médico lhe ordenara que
fosse”...
Como se só parecesse por aquelas
palavras, o pranto da menina irrompeu violentamente.
Ele, meio surpreso, a tomou nos
braços, indagando com ternura “o que significava aquilo?”...
Amélia não respondeu logo, mas
depois, levantando a cabeça, que lhe havia pousado no colo, exclamou entre
soluços angustiados:
— Não! não! não hás de ir! peço-te
que não vás!
O provinciano quis saber por quê.
— Eu te amo! disse ela, escondendo
de novo o rosto. — Eu te amo e não posso me separar de ti! Vejo a tua
indiferença! percebo que me detesta, mas que hei de eu fazer?! Adoro-te, meu
amor!
— Ah! se eu não estivesse tão
doente!... suspirou Amâncio.
XIV
O tísico do n.º 7 há dias esperava o
seu momento de morrer, estendido na cama, os olhos cravados no ar, a boca muito
aberta, porque já lhe ia faltando o fôlego.
Não tossia; apenas, de quando em
quando, o esforço convulsivo para arrevessar os pulmões desfeitos sacudia-lhe
todo o corpo e arrancava-lhe da garganta uma ronqueira lúgubre, que lembrava o
arrulhar ominoso dos pombos.
Contavam que expirasse a todo o
instante. Amâncio cedera o seu moleque para lhe fazer companhia, e dos braços
de casa era o único que lhe aparecia lá uma vez por outra.
Não é que espetáculo daquele
aniquilamento lhe tocasse o coração, mas porque lhe mordiscava a curiosidade
com esse frívolo interesse de pavor, que nos espíritos românticos provocam os
loucos e os defuntos.
Uma noite, seriam duas horas da
madrugada, o tísico gemeu com tal insistência que acordou o estudante. Amâncio
levantou-se, tomou uma vela e foi até ao quarto dele.
Ficou impressionado. O homem estava
muito aflito, debatendo-se contra os lençóis, no desespero da sua ortopnéia. A
cabeça vergada para trás, o magro pescoço estirado em curva, a barba tesa,
piramidal, apontando para o teto; sentia-se-lhe por detrás da pele empobrecida
do rosto os ângulos da caveira; acusavam-se-lhe os ossos por todo o corpo; os
olhos, extremamente vivos e esbugalhados, de uma fixidez inconsciente, pareciam
saltar das órbitas, e, pelo esvasamento da boca toda aberta, via-se-lhe a
língua dura e seca, de papagaio, e divisavam-se-lhe as duas filas da dentadura.
Não podia sossegar. O seu corpo,
chupado lentamente pela tísica, nu e esquelético, virava-se de uma para outra
banda, entre manchas excrementícias, a porejar um suor gorduroso e frio, que
umedecia as roupas da cama e dava-lhe à pele, cor de osso velho, um brilho
repugnante.
Faltava-lhe o ar e, todavia, pela
janela aberta para o nascente, os ventos frescos da noite entravam impregnados
da música de um baile distante, e punham no triste abandono daquele quarto uma
melancolia dura, um áspero sentimento de egoísmo; alguma coisa da indiferença
dos que vivem pelos que se vão meter silenciosamente dentro da terra.
O médico recomendara que lhe dessem todo o ar possível e lhe
fizessem beber de espaço a espaço uma porção do calmante que receitara. Uma
lamparina de azeite fazia tremer a sua miserável chama e cuspia o óleo quente.
Havia um cheiro enjoativo de moléstia e desasseio.
Sabino dormia a sono solto no
corredor. Amâncio acordou-o com o pé.
— É dessa forma que velas pelo
homem? perguntou.
O moleque ergueu-se estremunhado e
deu alguns passos, esbarrando pelas paredes, sem cair em si.
— Vamos! Desperta por uma vez e
dá-lhe o remédio! Ele parece que tem sede!
O tísico, ao ouvir a voz de Amâncio,
principiou a agitar os braços, como se o chamasse, grugulejando sons roucos e
ininteligíveis.
O estudante não quis atender, mas o
doente insistia com tamanho desespero, que ele, afinal, vencendo a repugnância,
se aproximou, a conchear a mão contra a língua trêmula da vela.
Apesar de seus fracos estudos de
medicina, fazia-lhe mal aos nervos aquela figura descarnada, que se exinania na
impudência aterradora da morte; fazia-lhe mal aqueles membros despojados em
vida, aquele esqueleto animado, que, na sua distanásia, parecia convidá-lo para
um passeio ao cemitério.
E o tísico rouquejava sempre,
agitando os braços.
O moleque, ao lado, derramava-lhe colheradas
de remédio na boca; mas o líquido voltava em fios pelo canto dos lábios do
moribundo e escorria-lhe ao comprido do pescoço e pela aridez escalavrada do
peito.
Amâncio tomou-lhe um dos pulsos. O
contato pegajoso e úmido fez-lhe retirar-lhe logo a mão com um arrepio.
— Qual, nhô, ele está assim a um ror
de dias! Leva nisto e não decide!...
— Não! Creio que agora está
morrendo...
E olhou para o doente.
Este espichou a cabeça e respondeu
que não, com um movimento demorado.
— Ele ouviu?... perguntou Amâncio,
impressionado com a intervenção inesperada do moribundo.
A caveira tornou a agitar-se nos
travesseiros para dizer que sim.
— Olha!... fez o estudante
arregalando os olhos. E aproximou-se da porta, recomendando ao Sabino que se
não descuidasse da pobre criatura; que se não pusesse a dormir como ainda há
pouco!
O tísico, que havia serenado alguma
coisa com a presença do rapaz, principiou de novo a espolinhar-se, rilhando os
dentes e agitando os braços e as pernas.
Amâncio, porém, não atendeu desta
vez e saiu. O tísico rosnou com mais ânsia, procurando lançar-se fora do leito,
numa aflição crescente.
— Fica quieto! gritou Sabino,
obrigando-o a deitar-se.
*
* *
Logo que o estudante se afastou com a vela, o quarto recaiu
na sua dúbia claridade modorrenta. Os ventos frios da madrugada continuavam a
soprar. O moleque foi até a janela, olhou a rua em silêncio, acendeu um cigarro
e, quando viu que o seu homem parecia serenado, tratou de reassumir o sono.
O senhor é que não podia sossegar,
com a idéia naquele pobre rapaz, que ali morria aos poucos, sem família, nem
carinhos de espécie alguma; sem ter ao menos quem o tratasse, nem dispor de um
amigo que se compadecesse dele.
— Infeliz criatura! pensava. — Além
do mais, longe da Pátria, longe de tudo que lhe podia ser caro!
E, sacudido de estranhas
condolências, imaginava o pobre desterrado saindo de sua aldeia em Portugal,
atravessando os mares, atirado no convés de um navio, afinal no Brasil, neste
país-sonho, a trabalhar dia a dia durante uma mocidade, e economizar, e sofrer
privações; depois — falir, perder tudo de repente, achar-se em plena miséria e
com a ladra da tísica a comer-lhe os pulmões! Oh! cortava a alma!
Não se podia esquecer do desespero
com que o desgraçado o chamava, como se lhe quisesse pedir alguma coisa, fazer
alguma revelação: — Talvez, quem sabe? até o tomasse, no seu delírio, por algum
amigo; porque Amâncio se não enganava, chegara a distinguir-lhe balbuciar o
nome de alguém — Não podia ser outra coisa, o mísero chamava por um amigo!
— Mas, também, que idéia, a sua, de
andar por aquelas horas a visitar moribundos! Que diabo tinha ele, no fim de
contas, com o tal tísico?... Ora essa!
O vulto esquelético não lhe saía,
porém, de defronte dos olhos, com a sua ronqueira lúgubre, sempre a lhe
estender os longos braços sem músculos e a rolar nas órbitas, convulsivamente,
aqueles dois bugalhos luminosos.
Fechou a porta do quarto, despiu o
sobretudo que havia enfiado, apagou a vela e assentou-se à mesinha diante de um
livro.
O tísico gemia.
— Que maçada! resmungou Amâncio, sem
se safar da impressão que trouxera do quarto “daquele diabo”! E cansava os
olhos contra as páginas do livro, lendo sem compreender.
Vinham-lhe bocejos repetidos,
ardiam-lhe os olhos. — Agora talvez dormisse. O importuno parecia sossegado,
pelo menos não se lhe ouvia gemer.
Amâncio voltou à cama, sem ânimo de
apagar a vela.
Quando estava quase adormecido,
passos agitados no corredor o despertaram em sobressalto e uma pancada em cheio
na porta fê-lo erguer-se de pulo e precipitar-se para ela.
Sabino, o tísico, vieram-lhe à
memória. Ouriçaram-se-lhe os cabelos, enlixou-se-lhe a pele, e o coração
bateu-lhe com mais força. — Que teria sucedido? A mão tremia-lhe ao forçar o
trinco.
A porta afinal cedeu, e Amâncio
sentiu cair desamparadamente no chão o corpo comprido e nu do tísico.
Estava horrível. Queria erguer-se, e
em vão agitava as pernas e os braços. Amâncio tentou ajudá-lo, gritando ao
mesmo tempo pelo Sabino. Os membros do tísico pareciam quebrar-se-lhe nas mãos,
que escorregavam com a gordura fria do suor, e no soalho manchas de umidade
desenhavam-lhe já o feitio do corpo.
O estudante desejava chamar por
alguém. — Sabino dormia com certeza! — Peste! Fez um movimento para sair; mas o
esqueleto agarrou-lhe violentamente os pulsos e pediu-lhe com uns vagidos
dolorosos que ficasse.
De seus olhos corriam duas lágrimas
compridas.
Depois de um esforço terrível,
conseguiu falar. Eram sons apenas murmurados, fracos, quase imperceptíveis.
Amâncio tinha razão: o desgraçado,
no delírio de sua fraqueza, o tomara por algum bom amigo. Suas palavras
vinham-lhe aos lábios roxos impregnadas de confiança e de amor. Falava de
coisas estranhas ao outro; perguntava-lhe por indivíduos desconhecidos para
Amâncio e reprovava-lhe a culpa de não ter vindo mais cedo.
Depois referiu-se dolentemente a sua
terra; tratou da infância, rindo, com os olhos cheios d’água. Pediu que
Amâncio, logo que lá voltasse, fosse à procura do senhor padre, e
encomendasse-lhe três missas.
Em seguida, fez um esforço para
chegar ao ouvido do rapaz e começou, em ar de mistério, a ensinar-lhe um
caminho longo, muito longo...Ensinava-lhe ruas, as voltas que era necessário
fazer para chegar lá; afinal, dava-se com uma choupana. Uma velhinha entrevada
fazia meia a um canto da casa. Amâncio que se aproximasse dela e lhe dissesse
em segredo que o seu João, o seu querido filho...
Uma agonia violenta tolheu-lhe a
fala. Ele ainda tentou dizer alguma coisa, mas o sangue purulento já lhe
golfejava da boca e caía-lhe em jorro pelo corpo. Estirou-se todo, dobrou a
cabeça para trás e, depois de entesar num estremecimento os membros rechupados,
foi pouco a pouco cerrando os lábios e empenando o corpo com um gemido longo e
sentidíssimo.
Lá fora, a música duvidosa continuava,
ao longe, entristecendo.
Amâncio teve um assomo de cólera;
seu temperamento nervoso e egoísta, revolucionava-se com o choque daquele
incidente desagradável, que lhe dizia respeito e vinha-lhe todavia roubar
despoticamente o sossego.
Logo que o tísico expirou, correu a
acordar Sabino com um murro. O moleque levantou-se, como da primeira vez, e
correu à cama do tísico. A lamparina bruxuleava sobre o velador, projetando em
volta, pelas paredes, sombras que se iam dobrar no teto.
Sabino abismou-se ao dar com o leito
vazio, olhou em torno, muito pasmo, chegou a levantar a colcha e a espiar para
baixo da cama; depois correu à janela e interrogou a solidão fria da rua.
— Ué! Disse.
— És uma peste! gritou-lhe Amâncio.
— Por tua causa o tísico foi morrer no meu quarto! Ande! Vá chamar Dr. Coqueiro
ou alguém que trate do corpo! Aqui em cima, creio que não há ninguém, nem
sequer o Paula Mendes.
O rabequista, com efeito, havia
ficado essa noite em companhia da mulher em Niterói.
A notícia levantou embaixo um
rebuliço. À exceção de Campelo e do guarda-livros, ninguém mais se conservou na
cama.
Mme. Brizard arrepela-se, praguejando contra o maldito
caiporismo que a perseguia ultimamente. — Até já lhe vinham os tísicos morrer
em casa! Era demais!
Causou grande impressão a narrativa
de Amâncio sobre os últimos momentos do homem. Dr. Tavares desfez-se em altas
considerações a esse respeito. Coqueiro proibiu à irmã que subisse ao segundo
andar, enquanto o cadáver não estivesse convenientemente amortalhado e deposto
no sofá que às pressas se carregou para cima. Por toda a casa distribuíram-se
fogareiros de incenso e alfazema. Sabino fora, de um pulo, buscar à botica uma
garrafa de labarraque, e o copeiro saíra para lançar à primeira praia o
colchão, os lençóis e os travesseiros que serviram ao defunto.
Descarregou-se o quarto. A francesa
quis abrir um velho baú de folha, que jazia a um canto e que era o único objeto
deixado pelo morto; mas Dr. Tavares opôs-se-lhe energicamente, citando artigos
do código criminal e dizendo em tom de autoridade que o falecido era um súdito
português e, por conseguinte, só ao cônsul de sua nação competia fazer-lhe o
espólio dos bens!
— E o que nos ficou ele a dever?! E
mais a despesa dos lençóis, do colchão e do diabo?! perguntou Mme. Brizard.
— Recebe-se do consulado português
ou não se recebe de pessoa alguma, apressou-se a explicar Coqueiro, que já
sabia perfeitamente não haver dentro do tal baú coisa alguma de valor.
O corpo saiu no dia seguinte, em um
carro da misericórdia. E Amâncio declarou positivamente que não estava disposto
a ficar na casa de pensão nem mais um dia.
— Pois então vamos todos para um
arrabalde! — deliberou Mme. Brizard, em conseqüência dos repetidos conchavos
que fizera com o marido.
Diabo era o estado de Nini, a
pobrezita achava-se agora completamente desarranjada. Comia encostando a boca
no prato, como um bicho; não trocava palavra com pessoa alguma e nem mais podia
ficar em liberdade, porque de vez em quando lhe acometiam frenesis, que lhe
davam para morder os outros e espatifar as roupas até ficar nua.
O médico entendia, porém, que com um
bom regime hidroterápico, ela ainda podia restabelecer-se. Citou exemplos
animadores, “bonitos casos”, disse os belos resultados que ultimamente se
obtinham por meio das duchas de água fria no tratamento das enfermidades
nervosas, e terminou declarando que, só por esse meio, havia esperança de uma
cura radical.
E o doutor, logo que esteve a sós
com Amâncio, confidenciou-lhe, rindo:
— Já toquei à velha sobre aquilo que
falamos; creio que desta vez fica o senhor livre da histérica!
Venceram-se, com efeito, os
escrúpulos de Mme. Brizard e Nini foi para a Casa de Saúde do Dr. Eiras. A mãe
teria notícias dela todos os dias e havia de lhe aparecer em pessoa duas vezes
por semana.
— Aquela rapariga era o tormento de
sua vida! Antes Deus a tivesse chamado para si! Agora, o que não seria
necessário gastar com a tal casa de saúde?... talvez uns vinte mil-réis
diários, se não fosse mais! Onde iria tudo aquilo parar? Era caiporismo,
definitivamente!
Como desejavam, descobriu-se uma
casa em Santa Teresa. Dr. Tavares e o guarda-livros acompanhariam a família;
Campelo, o esquisitão, é o que não estava pela mudança. Logo que lhe falaram
nisso, pediu secamente a nota de suas despesas, pagou-a, e retirou-se muito
calmo, assoviando, de mão no bolso, cabeça erguida, na mesma fleuma inalterável
com que costumava sair todas as manhãs para o trabalho.
Todo ele ia como a dizer no seu
silêncio indiferente e egoísta: “A mim tanto se me dá seis como meia dúzia...
morar com Pedro ou morar com Paulo, tudo para mim é a mesma coisa, desde que,
em troca do — meu dinheiro — me apresentem um quarto limpo e a comida a horas
certas. Se dez anos continuasse aqui Mme. Brizard, dez anos ficaria eu na Rua do
Resende; mas, uma vez que se muda para Santa Teresa — adeus! vou bater à outra
freguesia... o que por aí não faltam são casas de pensão.”
Paula Mendes, ao entrar pouco
depois, recebeu um cheio a notícia de que a família Coqueiro ia deixar a casa e
que, por conseguinte, era preciso que ele saldasse as suas contas.
Mas o rabequista não tinha dinheiro
na ocasião. — Logo que o tivesse havia de pagar integralmente.
Os locandeiros não estavam por isso,
já lhes bastavam os calos do gentleman e do Melinho! E, depois de uma
troca agitada de palavras, Mendes propôs deixar o piano, ficando-lhe o direito
de resgatá-lo mais tarde com a devida importância.
Mme. Brizard queria dinheiro e não
instrumentos de música! O Sr. Paula Mendes que vendesse o piano e liquidasse depois
as suas contas!
Assim foi. O rabequista saiu, e,
quando à tarde voltou à casa de pensão, trazia consigo um homenzinho de barbas
compridas, que fechou o negócio por quatrocentos mil-réis. Mendes pagou o que
devia, fez tristemente as suas malas, e afinal se retirou de cabeça baixa e
mãos cruzadas para trás.
César, que o fora espreitar no
corredor, voltou à varanda, dizendo espantado que ele chorava ao descer as
escadas.
— Deixa-o lá, menino! resmungou a locandeira, e tocou a
sineta, chamando para a mesa.
O jantar já não tinhatyle='mso-tab-count:1'> — Deixe-me... rezingou ela, ainda
com um restinho de arrufo. — Você só cuida de si e das suas comodidades...
Egoísta!
— Não digas isso, meu bem!
— Pois não é assim?! Qual foi a
vontade séria que você já me fez? É bastante que eu mostre gosto numa coisa,
para você fazer justamente o contrário... Entretanto, eu, por sua causa,
sacrifiquei tudo que possuía!
E começou a chorar, muito infeliz, a
dizer que Amâncio tinha razão! — Ninguém lhe mandara ser tola! Ela nunca
deveria ter-se entregado senão depois do casamento!
E as suas lágrimas enxugavam-se nos
lábios dele.
E assim ficaram alguns minutos, até
que Amélia de repente, se lhe tirou dos braços e, abrindo distância, declarou
de longe em plena atração de seus encantos, que “não faria nenhum caso de
Amâncio enquanto não possuísse o chalé.”
Nessa mesma noite ficou assentado
que o rapaz, em nome da amante, compraria a casa de Laranjeiras.
*
* *
Com efeito, uma semana depois,
tratava-se da escritura de compra. O negócio correu a galope, visto que a
propriedade era de um pândego sequioso por dinheiro.
Podiam cuidar logo da nova mudança;
Amélia, porém, não consentiu em tal, sem que se realizasse umas tantas
benfeitorias que a “sua” casa reclamava; substituir, por exemplo, o papel da
sala de visitas, que era de mau gosto; meter-lhe água, que não havia ,e fazer esteirar os aposentos destinados para
si junto com seu homem.
Mas Amâncio não podia distrair tempo
com essas coisas: andava muito absorvido pela idéia dos exames que se
aproximavam.
Ultimamente, viera-lhe uma febre de
formatura, queria a todo o custo “passar” no primeiro ano. — Também era só do
que fazia questão, “passar no primeiro”, porque quanto aos outros, tinha
certeza de preparar-se melhor e com mais antecedência. Agora, lamentava o tempo
perdido na preguiça e na moléstia, dava aos diabos os seus amores, e vivia numa
dobadoura a arranjar empenhos e cartas de proteção. Agarrou-se ao Campos;
agarrou-se àquele Dr. Freitinhas (do baile do Melo) que era unha com carne de
um dos examinadores. E furou, e virou, e percorreu amigos desconhecidos, até se
julgar “garantido”. Então, pagou a segunda matrícula e entregou-se de olhos
fechados ao destino. “Seria o que Deus quisesse.”
Era, pois, Coqueiro quem dirigia as
obras da casa da irmã. O metódico rapaz sempre tivera paixão por esse gênero de
trabalho.
— Se fosse rico, afirmava ele —
muito prédio havia de fazer só pelo gostinho de acompanhar as obras!
XVI
Chegou, finalmente, a véspera do
amaldiçoado exame.
Que ansiedade! Que dia de angústias
para o pobre Amâncio! E que noite, a sua! — Não descansou um segundo; apenas,
já quase ao amanhecer, conseguir passar pelo sono; antes, porém, não dormisse,
tais eram os pesadelos e bárbaros sonhos que o perseguiam.
Via-se entalado num enorme rosário
de vértebras que se enroscava por ele, como uma cobra de ossos; grandes tíbias
dançavam-lhe em derredor, atirando-lhe pancadas nas pernas; as fórmulas mais
difíceis da química e da física individualizavam-se para o torturar com a sua
presença; os examinadores surgiam-lhe terríveis, ríspidos, armados de
palmatória, todos com aquela feia catadura do seu ex-professor de português no
Maranhão.
Pelo incoerente prisma do sonho, o concurso acadêmico
amesquinhava-se às ridículas proporções do exame de primeiras letras. Era a
mesma salinha do mestre-escola, a mesma banca de paparaúba manchada de tinta, o
mesmo fanhoso Sotero dos Reis presidindo a mesa. João Coqueiro, Paiva e Simões,
vestidos de menino, fitavam o examinando com um petulante riso de escárnio.
Amâncio sentia correr-lhe o suor por todo o corpo e agulhas visíveis
penetrarem-no até a medula. O professor, transformado em juiz e ostentando as
feições do falecido Vasconcelos, inquiria-o com asperezas de senhor; mas as
suas perguntas, em vez de concernirem às matérias do ato, só se referiam à
Amélia.
— Por que matou você a pobre
menina?! bramia o pai cravando-lhe olhares de fogo: — Responda, seu canalha!
responda! Ah! Pensa que ainda não sei de que você, para melhor a seduzir, lhe
havia prometido casamento e jurado olhar sempre por ela, seu cachorro?!
Coqueiro, lá do canto, sacudia a
cabeça afirmativamente e enviava a Amâncio caretas de vingança. Ao lado deste,
o cadáver de Amélia fazia-se todo vermelho com o sangue que lhe golpejava de um
dos seus seios rasgados de alto a baixo.
O réu queria responder,
justificar-se, expor a verdade; eram, porém, baldados os seus esforços: não
conseguia articular uma palavra; gelatinava-se-lhe a voz na garganta,
empacando-lhe a fala.
— Bem! gritou o velho Vasconcelos à
meia dúzia de soldados que escoltavam Amâncio. — Conduzam esse miserável ao
cepo e cortem-lhe a cabeça!
O estudante atirou-se de joelhos,
com as mãos postas, chorando, suplicando que o não o matassem. Mas os soldados apoderaram-se
dele com violência e ataram-lhe os braços. o Juiz, Coqueiro, Simões, Paiva,
sumiram de repente, soltando gargalhadas. Amâncio foi conduzido por um corredor
muito escuro e apertado; os soldados, quando o viam vacilar, batiam-lhe no
ombro com a coronha das espingardas. Chegou a um pátio lajeado e úmido, onde
milhares de homens armados formavam alas; no centro, sobre um toro de madeira
conspurcada de sangue, reluzia um manchado à sua espera; e, de joelhos,
abraçado a um crucifixo, um padre velho, de longos cabelos brancos, engrolava
latim.
Fizeram silêncio.
No meio das respirações abafadas, só
se ouviam os passos trôpegos e o aflitivo resfolegar do condenado que, à ponta
da baioneta, subia os degraus do cadafalso.
Veio o carrasco, despiu-lhe a camisa,
tosou-lhe os cabelos, e empunhou o ferro.
Amâncio não se resolvia a entregar o
pescoço, mas o velho Vasconcelos, que surgira por detrás dele, atirou-lhe um
murro à nuca e fê-lo cair de bruços contra o cepo.
Então, para lhe abafar os gemidos,
romperam todos os soldados num rufo estridente de tambores.
Amâncio sentiu o aço frio entrar-lhe
na carne de toutiço, espipar o sangue, e o corpo, de um salto, arrojar-se às
lajes.
Havia saltado, com efeito, mas da
cama. E o despertador, que ficara de véspera com toda a corda para as seis da
manhã, continuava o rufo penetrante dos tambores.
O estudante abriu os olhos e passou
em sobressalto a mão pela testa; os dedos voltaram ensopados de suor.
Com a perceptibilidade das coisas
foi aos poucos saindo daquele estado de excitação, mas voltando lentamente à
taciturna agonia da véspera.
Vestiu-se quase sem consciência do
que fazia: esqueceu-se até de escovar os dentes, porque, mal voltou a si,
correu aos livros, sem aliás, conseguir firmar a atenção sobre coisa alguma.
E Amâncio tremia todo só com a idéia
de sua inabilidade. À medida que as horas se esgotavam e o momento fatal se lhe
antepunha, um langor covarde e mulheril crescia dentro dele, produzindo-lhe
arrepios que principiavam na ponta dos pés e iam-se estendendo pela espinha
dorsal, até lhe interessar a cabeça, depois de percorrer as regiões abdominais.
Mas embaixo, na varanda, em presença
de Amélia e Mme. Brizard, fazia-se forte, a despeito da palidez que lhe
alterava as feições. Nem de leve falou nos sonhos dessa noite, e Coqueiro, a
título de metê-lo em brios, contou várias anedotas de examinandos ridículos.
Os dois tomaram café e por fim
saíram. O trajeto de casa à escola foi um martírio para Amâncio,
afigurava-se-lhe, como no sonho, que se dirigia ao patíbulo.
Chegou às dez horas. Alguns
companheiros de ato já lá estacionavam em magotes de quatro e cinco pelos
corredores ou à porta da secretaria; fumavam-se cigarros consecutivos,
discreteavam-se os assuntos da ocasião. Amâncio cumprimentou os conhecidos,
parando aqui e ali, falando sobre os pontos do exame; — qual preferia que
saísse, em qual se presumia menos fraco e capaz de fazer figura.
Agora sim, estava mais animado; a
presença dos colegas o robustecia com um vago espírito de coletividade. Sentia-se
mais forte e resoluto ao lado dos companheiros de perigo, como se a vitória
dependesse do número de combatentes.
Entretanto, faziam-se horas. Os
examinadores estavam já reunidos na sala de exames, em torno da sua mesa
forrada de pano verde. Amâncio lobrigava-os pela frincha da porta entreaberta e
ouvia-lhes o murmurar descuidoso da conversa, intercalada de risotas e
baforadas de charuto.
À vista daqueles homens
resfriaram-lhe de novo as mãos e voltaram-lhe os calafrios do terror, algum
resto de confiança, que ainda teria em si, evaporou-se de todo.
E, para não sucumbir, procurava
acreditar na eficácia dos empenhos que arranjara; seu espírito, como o náufrago
que braceja na agonia da morte, já não escolhia os pontos a que se agarrava;
tudo servia naqueles apuros, tudo era um pretexto de esperança; mas a
consciência da verdadeira situação vinha meter-se de permeio, arrancando, uma
por uma, todas as tábuas de salvação.
E Amâncio arquejava, desorientado,
perdido.
— Que diabo viera fazer ali?! Para
que se apresentara? por que não se guardou para o ano seguinte ou quando menos
para março? Antes não tivesse pago a segunda matrícula! Oh! se o arrependimento
salvasse!...
E, à proporção que se avizinhava o
momento supremo, mais e mais imprudente lhe parecia a sua temeridade.
— Naquela ocasião, pensava ele — bem
podia estar na província, à testa dos seus negócios, ao lado de sua querida
mãe, passeando, rindo, gozando, como nos outros tempos!... Era rico, era já tão
estimado antes da academia, para que então sofrer semelhantes torturas, passar
por aqueles maus quartos de hora, que ali estava curtindo?...
E vinham-lhe venetas de fugir,
abandonar tudo aquilo, sem dar satisfações a ninguém, correr à casa do Campos,
encher-se de dinheiro e arribar para a Europa, para o inferno! contanto que se
livrasse da obrigação de expor uma ciência que não tinha, escrever idéias de
que não dispunha!
Mas o bedel havia surgido e
principiava a “chamada”, e, a cada nome, recitado pausadamente, o seu olhar
mórbido, de funcionário público no cumprimento de um velho dever enfadonho,
consultava a multidão de estudantes, que em sussurros se apinhava pelo
esvaziamento das portas, empurrando-se una aos outros, impacientes, curiosos, o
pescoço espichado, a boca aberta, o calcanhar suspenso.
— Amâncio da Silva Bastos e
Vasconcelos, disse aquele arrastando a voz.
Amâncio sentiu uma pontada no
coração e tartamudeou:
— Presente.
Os companheiros, que lhe ficavam por
diante, arredaram-se logo, dando-lhe passagem, e ele foi ocupar uma das banquinhas
que havia na sala.
A chamada ainda durou algum tempo,
porque Amâncio era dos primeiros; afinal, o bedel mastigou o último nome;
fechou-se a porta da sala; e um silêncio formalista espalhou-se entre a turma
dos estudantes e o grupo dos examinadores.
O presidente da mesa tomou a lista
dos examinandos, arranjou os óculos, tossicou e, com um bocejo, chamou pelo que
estava em primeiro lugar.
Um rapazote louro, de buço,
ergueu-se e foi ter com ele. O presidente, com um segundo bocejo e um gesto de
cabeça, ordenou-lhe que tomasse um dos pontos da urna.
Amâncio ofegava. — Ia decretar-se o
ponto!
— Qual seria?... E se, por
caiporismo, fosse justamente um dos mais crus?
E o sangue trepava-lhe à cabeça,
pondo-lhe latejos nas fontes.
O rapazote louro meteu enfim a mão
na urna e tirou com as ponta dos dedos trêmulos uma pequena torcida de papel,
que passou ao presidente.
Este desenrolou-a e leu:
“Hidrogênio”.
Amâncio respirou: o ponto não podia ser melhor para ele do
que era! talvez fosse até entre todos o menos mal sabido; ainda essa manhã lhe
passara uma vista de olhos. Contudo, uma vez imposto o Hidrogênio, quis lhe
parecer vagamente que havia outros pontos preferíveis.
Estava, porém, mais tranqüilo, que
era o principal; já quase nada lhe tremia a mão ao receber das do bedel uma
folha de papel almaço, rubricada pelos lentes, das que ia aquele distribuindo
por todas as banquinhas dos examinandos.
— Ali, naqueles miseráveis dois
vinténs de papel, tinha ele de determinar o seu futuro, a sua posição na sociedade,
talvez a própria vida de sua mãe, dizendo o que sabia a respeito do tal
Hidrogênio!...
Experimentou a pena, endireitou-se
na cadeira, e escreveu, caprichando na letra e procurando obter estilo.
A areia da ampulheta esgotava-se
defronte da calva e dos bocejos do senhor presidente. Correu meia hora; Amâncio
ergueu-se afinal, entregou a sua prova e saiu da sala, a esfregar, muito
preocupado, os dedos da mão direita contra a palma da esquerda.
À porta, mal acendera sofregamente o
cigarro, contava já aos amigos o que havia exposto pouco mais ou menos. — Ah!
com certeza pilhava uma — nota boa! — Não era por querer falar, mas a sua prova
saíra limpa. “Assim não fosse o ponto tão ingrato!...”
E ficaria a prosar sobre o caso, se
Coqueiro, aguilhoado pela ausência do almoço, não o arrancasse dali.
A nota foi boa, efetivamente.
Soube-o Amâncio no dia seguinte,
logo que correu à secretaria. Não contava, porém, ficar tranqüilo, senão depois
do resultado de sua prova oral.
Novos sobressaltos foram se agravando
durante os dias que era preciso esperar. Voltavam-lhe as aflições; no fim de
algum tempo já não podia comer, não podia ligar duas idéias sobre qualquer
coisa e não conseguia repousar duas horas seguidas. Ficou ainda mais
desnorteado que da primeira vez.
Amelinha, então, o estimulava com as
suas garrulices de pomba que já fez ninho. Puxava por ele, tentando arrancá-lo
daquele estado, mas não conseguia despertar-lhe um só dos antigos momentos de
bom humor, nem lhe merecer uma de suas primitivas carícias.
O rapaz andava tonto, cheio de
pressentimentos e de sustos. Tornou-se até supersticioso. — Não podia ver
entrar no quarto uma borboleta de cor mais escura; não podia suportar o uivar
dos cães, nem queria que a amante prognosticasse “um bom resultado nos exames”.
— É melhor não falar!... dizia ele,
muito esmalmado.
Mas que prazer o seu voltar pronto
da escola! Jamais tivera um contentamento tão agudo. Ria sem motivo, sentia
ímpetos de abraçar a toda gente, pulava, cantava, parecia doido.
Soubera do resultado no mesmo dia da
prova oral, por intermédio de um dos professores. — Saíra aprovado plenamente.
Vencera!
Colegas o acompanharam até a casa.
Lá ia Paiva, sempre com o seu olhinho irrequieto e mexeriqueiro, o seu todo
enfrenesiado e farto “desta porcaria de mundo”. Lá ia o triste Salustiano
Simões, encasmurrado no seu ar incrédulo e bamba, a mascar o cigarro, a aba do
chapéu encostada à gola sebosa do fraque.
Abriram-se garrafas de champanha;
fizeram-se brindes. João Coqueiro desmanchava-se em sorrisos, como se
partilhasse diretamente de todas aquelas manifestações.
Foi muito elogiado o exame de
Amâncio, tocaram-se os copos, entre fervorosas palavras de animação: falou-se
em “filhos diletos da ciência”, em “liberdade”, em “geração nova”, em “mineiros
do progresso”.
Todavia, Amâncio em ar feliz e
pretensioso, confessava o pouco que estudara e gabava-se de sua fortuna. —
Podia dar a palavra de honra em como mal havia tocado nos livros durante o ano.
— Coqueiro e a família estavam ali, que dissessem!...
E bazofiava a respeito de sua
presença de espírito, particularizando circunstâncias comprobativas de uma
sagacidade a toda a prova.
— Cá o menino não se aperta! dizia
ele, muito satisfeito consigo.
Expediu-se um telegrama para o
Maranhão, dando notícia do grande “acontecimento”. Simões e Paiva ficaram para
jantar. Já estavam todos à mesa, quando apareceu o copeiro com uma carta que um
portuguesito acabava de trazer.
Era de Campos. O bom negociante
queria festejar o êxito feliz do jovem acadêmico — com “uma pequena reunião
familiar. Pena era que o Dr. Amâncio estivesse de luto”.
“Não há festa”, explanava a carta,
“apenas se reúnem alguns amigos para lhe beber à saúde; e o doutor bem pode
trazer em sua companhia mais alguns”.
Amâncio declarou logo que não
dispensava Simões e Paiva Rocha e exigiu que o Coqueiro levasse consigo a
família.
Pois iriam, iriam todos, até César.
Mas o festejado teve de franquear o seu guarda-roupa àqueles dois colegas que
não queriam apresentar-se mal amanhados em uma casa, onde entravam pela
primeira vez.
Coqueiro, em particular,
exprobrou-lhe essa franqueza:
— Foge da boêmia!... disse-lhe, no
seu diapasão de homem sério. — Foge da boêmia rapaz! Esses tipos não merecem
que se lhes faça a menor coisa!... Metem os pés — sempre! Já os conheço; não
seria eu quem os convidaria para a casa de ninguém! É gentinha que só está
habituada a cafés e botequins, não respeitam família! Para eles as mulheres são
todas iguais!...
Amâncio sorriu.
— Ora Deus queria que não tenhamos
de nos arrepender!... acrescentou o outro. — E, quanto àquela roupa, podes
rezar-lhe por alma... o que ali cai, fica!
O provinciano afastou-se sem
responder e lamentando interiormente que, logo nessa tarde, não estivesse em
casa o eloqüente Dr. Tavares, que seria uma excelente perna dos brindes da
sobremesa.
Mandarem-se vir dois carros. Num
iria Coqueiro mais a família e no outro Amâncio com os dois amigos.
Partiram às oito horas, alegremente,
num alvoroço gárrulo de festa. Mme. Brizard dera toda força à sua elegância:
atirou-se ao decote, pôs a pedraria ainda do tempo do primeiro marido, e exibiu
aquele rico pescoço, “que ela não trocava pelo de ninguém!”
Amelinha estreou um belo vestido de
escumilha azul que lhe dera o amante. No seu colo, cor de camélia fanada,
assentavam muito bem as pérolas e os rubis; seus braços, levemente dourados de
penugem, sabiam, no meio da confusão caprichosa das rendas valencianas, fazer
tilintar com graça os braceletes que se enroscavam nas compridas e
transparentes luvas de retrós.
A cunhada, ao vê-la sair do quarto,
dissera:
— Não parece uma brasileira!... Tão
linda está!
*
* *
Foram recebidos com transportes de júbilo por toda a família
do negociante. Campos entregou a casa ao festejado, “que a este competia,
naquela noite, obsequiar às pessoas presentes; fazer as honras da copa e da
mesa; promover quadrilhas e prender as moças até pela manhã. Era o dono da
festa, que se arranjasse!”
Amâncio tomou posse do cargo, sem
caber em si de contente. Muito o sensibilizava tudo aquilo que, de qualquer
modo, lhe pudesse afagar o amor-próprio.
E em suas mãos a festa tomou um
caráter assustador: o pianista não tinha tempo para fumar um cigarro; os
convidados eram constrangidos a beber nos intervalos da dança e a dançar nos
intervalos das libações. Paiva Rocha e Salustiano, a despeito de todas as suas
garantias de filósofos, intransigentes e péssimos dançadores, tiveram de
entrar, por mais de uma vez, nas intermináveis contradanças.
Ao inverso do que pressagiara
Coqueiro a respeito destes dois, tanto um como o outro se houveram
admiravelmente. Ninguém melhor que eles para respeitar senhoras; um espesso
acanhamento os encascava e tolhia, que nem a concha ao molusco. Salustiano,
principalmente, estava mais tenro e inofensivo que uma criança; na quadrilha,
mal ousava erguer os olhos para a sua dama e, querendo ser muito delicado,
apenas lograva, com os exageros da cortesia, trair a sua nenhuma freqüência nas
salas.
Para os intimidar bastava a
cerimoniosa presença de senhoras de boa sociedade. Aqueles dois pândegos, tão
céticos em teoria a respeito da mulher, ali, governados pelo meio, eram os
homens mais tolerantes deste mundo; seriam capazes de defender a existência de
Deus ou do diabo, se elas o entendessem. Fato é que o dono da casa gostou deles
em extremo e pediu-lhes que aparecessem aos domingos, uma vez por outra, para
jantar.
A festa correu sempre animada até as
três horas da manhã, quando Amâncio convidou as senhoras a tomarem lugar à
mesa. Ao desrolhar do champanhe ergueu-se este resolutamente e exigiu que o
acompanhassem num brinde.
Abstiveram-se da bulha, e o
estudante grupou em torno do nome inteiro de Campos todo o velho arsenal de
retórica aplicável à situação. Em substância nada afirmou, mas a sua palavra
sonora e cheia; as frases gorgolhavam-lhe dos lábios com essa verbosidade oca e
retumbante que se observa nos filhos do Norte do Brasil, e que, aliás tem
valido a muitos posição eminente na política. Aquela voz, estalada e aberta,
ferindo as vogais, tinha um sabor muito picante de ironia, vibrava no ar como
uma flecha selvagem e feria os tímpanos como um insulto em verso.
As damas interessaram-se pelo
discurso e alguns homens o ouviram sem pestanejar. E todos eram de acordo que
Amâncio estava talhado para o Direito e que havia de fazer “uma brilhante
figura”, quer na advocacia, quer na política, se por acaso abraçasse uma dessas
carreiras.
— É rapaz de talento!... diziam já
as senhoras cochichando.
— A mim comoveu tanto o demônio do
moço, que chorei!... segredou uma quarentona de chinó, que passava entre os
conhecidos por mulher de maus bofes.
E principiaram a olhar com certa
submissão para o esperançoso Amâncio.
E, com efeito, o seu tipo nervoso e
moreno de nortista, o seu modo sem-cerimônia de abrir muito a boca, mostrando
num gesto de pasmo a dentadura, o desembaraço de sua gesticulação, sempre que
entornava para dentro um pouco mais de vinho, e principalmente o metal daquela
voz enfática e encrespada pelo tal sotaque da província; tudo isso, sem dúvida
alguma, agravava depois de uma boa ceia, quando cada um não exige de ninguém
senão que lhe deixe tomar em paz o seu café e lhe permita acender o seu
charuto.
O caso é que Amâncio se converteu
num espécie de presidente de mesa. Era a ele que se dirigiam os que propunham
novos brindes; era para ele que mais se voltavam durante o discurso, e, tal e
qual no jantar de seu pai por ocasião do célebre exame de primeiras letras,
ainda era ele o alvo das melhores felicitações; com a diferença de que, neste
agora, em vez de consultar de instante a instante o famoso relógio alcançado
naquele dia, o que Amâncio consultava eram os olhos de Hortênsia, nele
igualmente presos, mas por uma cadeia de outra espécie.
E, ainda como na primeira festa, o
estudante abusou um pouco dos licores; mas, agora, em vez de pegar no sono,
deu-lhe a bebedeira para se abrir às
francas com a dona da casa, logo que a pilhou sozinha no terraço, ao fundo do
segundo andar.
Hortênsia não se indignou com isso,
mas também não se mostrou satisfeita; não repeliu com energia as palavras do
sedutor, mas não se pode dizer que as acolhesse de boa cara; não deu, enfim, os
beijos que ele pedia, mas por outro lado não retirou a mão que o rapaz agarrara
entre as suas.
— Eu te adoro, meu amor, minha vida!
dizia-lhe o velhaco, cheirando-lhe os grossos braços revestidos de filó. — Não
te disse há mais tempo por falta de coragem, juro-te, porém, que é verdade!
Amo-te, minha Hortênsia, amo-te com todo o entusiasmo, com toda a paixão de que
sou capaz.
Ela o ouvia em silêncio, a pensar,
os olhos ferrados a um ponto, o ar todo
caído e acabrunhado como por uma espécie de desgosto; não se mexia, apenas,
quando Amâncio teimava muito em querer beijá-la, desviava o corpo, sem voltar a
cabeça.
— Mas, então?... perguntou ele.
— Então, o que?... fez o outro como
interrompendo um longo pensamento.
— Não aceita o meu amor?...
— Não, decerto, não posso aceitar
semelhante coisa!
— Por que, minha santa?...
— Não tenho esse direito; conheço os
meus deveres e a minha responsabilidade. O mais que lhe posso dar é uma afeição
de irmã, de amiga, uma afeição sagrada e pura!
Amâncio declarou que pensava desse
modo justamente, mas agora queria um beijo, um só! o primeiro e último! — Nada
mais sagrado e puro do que um beijo!...
— Nunca! disse ela, fugindo com o
rosto.
Ele a tomou à força e a senhora
ficou ressentida, chegou a ter um gesto de impaciência e teria fugido, se o
estudante não a segurasse pela cintura.
— Solte-me!
— Perdoa, perdoa, meu amor!
segredava ele, quase ajoelhado. — Bem quisera ser para contigo o mais
respeitoso dos homens, mas não me pude conter, não me pude dominar... Perdoa!
— E jura que, de hoje em diante, não
cairá noutra?...
— Juro! juro! mas não te revoltes
contra mim!...
— E que nunca mais me faltará ao
respeito?...
Amâncio fez um gesto afirmativo, no
qual seus olhos, agora mais estrábicos sob a influência do vinho e do desejo,
luziam suplicantes, como os olhos de um cão que tem fome.
— Pois bem, murmurou ela, meio
compadecida. — Vá lá por esta vez! Está perdoado, mais fique prevenido de que,
se repetir a graça, não respondo pelas conseqüências.
Amâncio ia fazer novos protestos,
quando sentiu que alguém se aproximava; ergueram-se ambos, instintivamente, e,
fugindo ao rumor, seguiram de braço dado para a sala.
Tocava-se uma valsa. Ele, sem
consultar Hortênsia, enlaçou-lhe a cintura, e puseram-se os dois a rodar, a
rodar, tão certos e tão leves, que prendiam a atenção de quantos lá se achavam.
E Coqueiro, encostado à ombreira de uma porta, acompanhava-os com um sorriso de
felicidade, no qual havia alguma coisa de orgulho de pai que se revê num filho
prodigioso.
Mas o querido estudante, para o fim
da festa, já não parecia o mesmo: as bebidas e o cansaço davam-lhe um ar
grosseiro e desalinhado; já se lhe não via o colarinho, nem os punhos; a roupa
empastava-lhe com o suor e a cabeleira desguedelhava-se sobre a testa. E
vinham-lhe então pilhérias de mau gosto; tratava Amelinha quase licenciosamente
e regamboleava as pernas e os braços no meio da quadrilha, como se estivesse
num baile público. Já não dava excelência a ninguém e queria, por força, que
Simões e Paiva, depois da festa, o acompanhassem a um passeio ao alto da
Tijuca.
— Que diabo! rosnava ele,
cuspilhando para os lados. — Ou bem que a gente se mete na pândega ou bem que
não se mete!
Só se retiraram ao despontar da
aurora. César, que adormecera desde as onze horas da noite, ficou para passar o
dia com a família de Campos. Amâncio pôs um carro à disposição de Paiva e de
Simões e seguiu no outro com as duas senhoras e Coqueiro.
Este toscanejava durante a viagem,
ao lado da mulher que sumia na abundância de uma formidável capa de lã;
enquanto que Amâncio, a charutar derreado para um canto da carruagem, adormecia
com a mão direita esquecida entre as de Amélia.
XVII
Recebeu no dia seguinte uma carta de
Ângela; era a segunda que ela escrevia ao filho depois da morte do marido.
Já da primeira lhe suplicava que a
fosse ver, logo ao entrar das férias, pois agora estava muito só e acabrunhada
de desgostos; além disso, os seus padecimentos se agravavam. Amâncio que se
demorasse; a infeliz tinha para si que a presença do filho substituiria com
vantagem todos os remédios da botica.
Na segunda carta ainda se mostrava
mais impaciente e mais aflita pelo rapaz. Falava até no receio de morrer sem
abraçá-lo, caso Amâncio não se apressasse a ir em seu socorro. — A presença
dele tornava-se precisa, mesmo com referências aos interesses do inventário;
porquanto D. Ângela começava a desconfiar de Silveira, que não fazia outra coisa
senão lhe pedir dinheiro e mais dinheiro para as tais custas. — Enfim, por
todos os motivos, era urgente que Amâncio desse, quanto antes, um pulo ao
Maranhão.
Amelinha, que já não ficara muito
tranqüila com a primeira carta, assustou-se deveras quando o amante lhe mostrou
a segunda.
— Eu não consinto nessa viagem!
disse-lhe terminantemente.
— Mas não vês que se trata de um
caso urgente, que se trata de defender meus interesses, que se trata de salvar
a vida de minha mãe?... Ou queres tu que eu a mate, hein?...
Amélia não tinha nada que ver com
isso!... A sua questão resumia-se no seguinte: “Dera-se a um homem porque o
amava e porque se supunha amada por ele; esse homem a possuiu como bem quis, gozou-a como muito bem entendeu , e, um
belo dia, talvez por já estar farto, resolvia meter-lhe os pés e pôr-se ao
fresco!”... Boas! Não havia de ser com ela! Amâncio que não caísse em
semelhante asneira, porque então veria o bom e o bonito! Quem o afiançava era
“a Amelinha dos camarões”!
— Mas, filha, que queres tu que eu
faça?... Bem vês que esta viagem ao Norte é inevitável!
— Pois então vamos juntos... Casa-te
primeiro comigo!
A idéia foi tão intempestiva que o
estudante respondeu com uma gargalhada. Mas o demônio da rapariga, tornando às
boas de repente, saltou-lhe ao pescoço e disse-lhe, entre beijos:
— E por que não?... Por que não te
casas logo comigo, meu amor?...
— Porque era impossível!... explica
ele. “Casar não é casaca!” Era ainda muito cedo para cuidar nisso!... Primeiro
tinha de formar-se, praticar algum tempo em Paris, e depois então... sim
senhor, não dizia o contrário e havia de ser o mais empenhado em que a coisa se
realizasse! Mas por ora... “Deus nos acuda!” era até loucura pensar em
semelhante história!...
Amélia fez-se logo de mau humor;
vieram os remoques e os reviretes do costume; houve palavras duras de parte a
parte e, afinal, como estabelecido imposto de reconciliação, ficou assentado
que Amâncio arranjaria mobília nova para o chalezinho das Laranjeiras.
E o rapaz lá foi comprar os trastes.
Dois dias depois, realizava-se a
terceira mudança. Dr. Tavares, o último hóspede da famigerada Mme. Brizard,
pagou a sua última conta e recebeu da francesa um abraço de despedida.
— Ah! suspirou ela. — Até que enfim
se podia descansar um pouco! Já não era sem tempo!
O chalezinho de Amélia ficou muito
catita: parecia um ninho de noivos. Estava a pedir lua-de-mel!
A cachorra da pequena tinha gosto.
Exigiu tapetes, espelhos, cortinas de chita indiana para a sala de jantar,
cortinas de renda para a sala de visitas; quis moldura dourada nos quadros,
estatuetas pelas paredes; não dispensou nos aparadores e nos consolos jarras de
porcelana das mais à moda; jardineiras aqui e ali, vasos caprichosos com
begônias e tinhorões sobre a mesa de jantar; cestinhas artísticas, com
parasitas, para dependurar nas janelas; e ainda fez substituir na cozinha, nos
arranjos da comida e no arranjo dos quartos, tudo aquilo que lhe parecia em
condições de reforma.
E só com essas coisas e só com a
satisfação de tanta exigência é que Amâncio conseguia paliar as revoltas da
amante. O desgraçado já não tinha ânimo de contratariá-la, porque bem conhecia
o preço das resingas e, sem achar meio de reagir, via claramente que as
reconciliações se tornavam mais caras de dia para dia.
*
* *
Entretanto, depois da mudança, o amor dos dois tomou um
caráter mais digno e decente. Já não era necessário que a rapariga andasse à
noite em ponta de pés pela casa, tateando a escuridão para ir ter com o seu
homem. Agora dormiam à vontade, seguros de sua independência, com as portas bem
fechadas por dentro.
E só se despregavam, do lado um do
outro, quando tinham que abandonar o quarto. Então, cada um se servia da porta
competente: Amélia tomava a da varanda e Amâncio a da sala de visitas!
Não podiam desejar melhor!
Melhor, bem certo, para o descanso
do corpo e repouso do espírito; não, porém, para garantia do amor, essa
estranha função psicológica que só alimenta as suas raízes nos sobressaltos e
no perigo. Tamanha segurança e tamanha liberdade de ação deviam fatalmente
levantar a ponta de tédio, cujo novelo existe, mais ou menos escondido, no fundo de todas as
coisas.
Não vinha longe a saciedade; Amâncio
já lhe ouvia o bocejar. Iam-se-lhe pouco a pouco amortecendo os primitivos
arrebatamentos do desejo; os dois tinham-se já frouxamente, sem lumes de
entusiasmo, sem os esforçadores auxílios da imaginação. Assuntos práticos,
positivos agora se lhes intercalavam nas carícias, puxando-os grosseiramente à
calma realidade da vida.
Amelinha já lhe não surgia no quarto
com aquele trêfego ruçar-se de pomba assustada, o que lhe enchia as feições e
os movimentos de uma graça tão maliciosa e provocadora; agora se apresentava
com um ar muito tranqüilo, de casada, a arrastar os chinelos, o roupão desabotoado
e solto num farto abandono de alcova.
Despia-se defronte de Amâncio,
coçando negligentemente as partes do corpo que estiveram comprimidas durante o
dia, como a cinta, o lugar das ligas e dos canos das botinas. Despenteava-se
ali mesmo, ao lado da cama do rapaz, sacundindo o cabelo com ambas as mãos, num
movimento de traços erguidos que lhe mostrava a grenha das axilas; ele, também,
parecia não dar por isso, era todo do livro que lia à luz de uma vela pousada
no criado-mudo.
E os assuntos de suas conversas
materializavam-se completamente. Já só discutiam interesses práticos, arranjos
de vida e conveniências domésticas: “Era preciso arranjar um jardineiro, que
viesse uma vez por semana cuidar das plantas e limpar os tanques. — Era preciso
chamar o homem do gás para consertar tal candeeiro que não dava boa luz. — Era
conveniente alugar uma criada que soubesse lavar; porque a ladra da lavadeira
trocava as camisas e encardia a roupa, que fazia lástima!”
E, às vezes, na intimidade dessas
conversas, criticavam os atos de Mme. Brizard e de Coqueiro; censuravam-lhe
umas tantas coisas, com, por exemplo: a negligência destes para com César. “O
pequeno ia por um tal caminho, que, se não abrissem os olhos, havia de amargar
mais tarde! — Que diabo custava ao Janjão arranjá-lo aí em qualquer casa de
comércio ou, pelo menos, fazê-lo aprender um ofício?... Em casa mesmo já lhe
podiam ter metido nas unhas a carta do ABC e já lhe podiam ter ensinado alguma
coisa... Mas Loló não se queria incomodar! E senão, vissem o que se passava a
respeito de Nini; outra fosse a boa da mãe, que a pobre rapariga não levaria
semanas e semanas lá na casa de saúde, sem ter uma pessoa que olhasse por ela.”
Eram sempre deste teor os motivos de
sua conversa. Amélia, não obstante, fazia-lhe muito ligada aos menores
interesses do amigo: queria saber o que ele gastava por fora, com quem
estivera; reprovava-lhe certas relações, certas companhias “que não punham
ninguém pra diante”, e aconselhava-o a que se não descuidasse de outras que lhe
podiam ainda vir a servir; pregava-lhe sermões a respeito de economias. “O
mundo estava cheio de espertos: ele que desconfiasse de todos; cada um só
procurava chamar a brasa para a sua sardinha!” Queria estar a par de como iam
os negócios do amante na província. “Se o dinheiro ficara em boas mãos; se não
havia risco de uma quebra ou de alguma ladroeira.” E muito egoísta, muito
mulher, muito agarrada ao que lhe pertencia, desde Amâncio até ao pó de suas
gavetas, fazia justamente como fazem os sócios comerciais que, parecendo tratar
dos interesses abstratos de uma firma, estão mas é tratando dos próprios
interesses.
Outras vezes boquejavam sobre os
conhecidos, sobre as pessoas de amizade. Uma noite em que, durante o serão da
varanda, se conversou muito a respeito de Hortênsia, Amélia, já no quarto, em
fralda, com um joelho dobrado em cima da cama, enquanto tirava grampos da
cabeça e os arremessava para o velador, disse, como se continuasse um
pensamento:
— Ela, no fim de contas, não passa
de uma mulher como as outras!... Loló e Janjão, é que, quando gostam de uma
pessoa tiram tudo dos outros para enfeitá-la!
— Quem? D. Maria Hortênsia?
perguntou Amâncio, procurando num livro o lugar em que na véspera deixara a
leitura. E, depois de um movimento afirmativo da rapariga:
— Não, Coqueiro tem razão — a mulher
de Campos é uma excelente senhora. Muito honesta!
— Ora! É uma mulher como as
outras!... sustentou Amélia, galgando a cama por cima do amante, para se
aninhar do lado da parede.
— Como as outras, como? Em que
sentido?
— Não é lá essas purezas que a
querem fazer! Não é nenhuma santa!
— Estás enganada, filha! A Hortênsia
é uma mulher muito séria!...
— Quando não ri...
— Pelo menos até aqui, que me
conste, ninguém ainda se animou a dizer nada de sua conduta!
Amélia, então, possuída de um rancor
instintivo de classe, de uma surda antipatia de mulher suspeita por mulher
honesta, desencadeou os seus argumentos e as suas razões. Trouxe a lume
conversas inteiras, que bispara na tal noite do exame. “Amâncio via cara e não
via coração!... Aquele — meu bem para cá, meu bem para lá — que todos notavam
entre Campos e a mulher, era só dos dentes para fora! No íntimo, Hortênsia
detestava o marido! Achava-o muito bom homem, é verdade, muito generoso, não
podia se queixar de que lhe faltasse nada — boa mesa, boa casa, criados para
servir, teatros, bailes, seu bom carro, seu vestido de preço — sim senhor! mas
só! Quanto a carinhos — nicles! A respeito de certos confortos de que uma
mulher precisa — era uma miséria! Às vezes, passavam-se meses sem que o marido
a procurasse! O pobre homem andava lá com os seus negócios, coitado! E a doida,
em lugar de conformar-se com a sorte, punha a boca no mundo e eram queixas e
mais queixas pra frente! Que ela, Amélia, não soubera de tudo isso por parte
deste ou daquele — escutara com seus próprios ouvidos!”
— Pois bem, ainda me ajudas!... volveu Amâncio, tomando
extremo interesse pela conversa — ainda me ajudas, porque, se é como dizes, o
bom comportamento de D. Hortênsia torna-se muito mais digno de admiração!...
— Sim!... retrucou a rapariga
ironicamente. — Também acho bom, mas moro longe! — De um, quando mais não seja,
sei eu, por quem o tal “anjo de pureza” seria capaz de dar uma perna ao diabo!
E olha que, se ainda não a deu, foi porque ainda não teve ocasião para isso!
vontade não lhe falta! Ele que se apresentasse e veríamos!
Amâncio quis logo saber quem era o
sujeito.
— Um tipo! Não o conheces.
— Mas como se chama?
Amélia, depois de alguma hesitação,
confessou. — Era Sousa Antunes... Aí tinha!
— Que Antunes, homem! Aquele sujeito
da Câmara. Alto, de cavanhaque, aquele de castor branco, que uma vez
encontramos nas regatas, em Botafogo.
— Ah!... Já sei, já sei...
E Amâncio procurou disfarçar a sua
contrariedade, fingindo que se abismava na leitura. E parecia muito preso à
página, enquanto, aliás, o seu pensamento buscava descobrir no tipo de Sousa
Antunes os atrativos que cativaram a mulher de Campos. — Impossível! O tal
Antunes era um viúvo talvez de quarenta anos, pai de filhos, e vulgar, sem
talento de espécie alguma, vivendo de um ordenado oficial de secretaria, nem
tendo, ao menos, qualidades físicas que inspirassem paixão a qualquer mulher,
quanto mais àquela! aquela que não pôs dúvida em lhe atirar com uma recusa
pelas ventas!...
— Não! Isso deve ser história!...
considerou ele em voz alta.
— Qual história, o quê! retorquiu
logo Amélia. — É louca por ele! Quando o avista, fica tonta! Eu vi! (E
arregalou um dos olhos com o dedo.) Ainda outro dia, no São Pedro — que
escândalo! Não lhe tirava o binóculo de cima! O que a cegou, sei eu...
— Mas como vieste tu a saber disto?...
— Ora! Loló é toda das Fonsecas, que estão agora de cama e
mesa com a Hortênsia!...
— Fonsecas?...
— Aquelas moças esquisitas, aquelas
que foram à soirée!... Lembras-te? Ó homem! as Fonsecas... as de
Catumbi!...
A Amâncio pouco lhe importavam as
Fonsecas, o que ele desejava eram mais algumas informações a respeito do
escândalo. Não podia suportar a idéia de que Hortênsia, a mesma Hortênsia que
lhe repelira os beijos, tivesse um fraco pelo Antunes, o Antunes do cavanhaque!
— Que horror!
E, depois dessa conversa, principiou
a freqüentar a casa de Campos com mais assiduidade. Aparecia regularmente duas
vezes por semana e quase se demorava até as horas do chá.
Mas Hortênsia — qual! Não atava, nem
desatava. Era sempre a mesma criatura incompreensível; sempre aquela mesma
ambigüidade, a mesma dúvida, o mesmo querer e não querer! Hoje — um sorriso de
esperanças; amanhã — uma frieza esmagadora; depois — suspiros, meias palavras
de ressentimento, olhares misteriosos, vagos, ora muito colorido de ternura,
ora pulados de orgulho; tão depressa altiva e sobranceira, como suplicante e
humilde; tão depressa risonha como triste, generosa como sovina, dando com uma
das mãos para tomar logo com a outra.
O rapaz impacientava-se: — Fossem lá
compreender semelhante mulher! Um dia — toda condescendência, toda interesse
por ele, no outro — gestos desabridos, ameaças, palavras duras. — Sebo! — Já
passava a debique! No fim de contas não valia a pena!
Mas o ladrão da mulher tinha uns
olhos tão doces, uns dentes tão brancos, uma pele tão viçosa!... “Não! não
senhor! Era preciso acabar com aquilo! Ele estava fazendo um papel
ridículo!”...
E deliberava não pensar mais na
mulher de Campos. “Que diabo! Se se queria divertir, comprasse um boneco de
engonços!”... Quando, porém, dava por si no dia imediato, já os passos o tinham
conduzido para a casa do negociante.
“Entraria, mas lá dentro havia de ser forte, inabalável!” E
trepava pelas escadas, imaginando improvisar um namoro com a Carlotinha
estudando os assuntos de que teria de usar na conversa, calculando os efeitos
que a sua afetada indiferença devia produzir no espírito da caprichosa.
Bastava, porém, um sorriso de Hortênsia, uma palavra mais terna, um gesto mais
amoroso para o fazer ficar caído, desarmado, seguro como nunca. — Era o diabo!
Voltava para casa furioso, atirando
com as portas, respondendo de má vontade às perguntas que lhe dirigiam.
Amélia o estranhava, sem dar, contudo,
a perceber coisa alguma. Apenas lhe perguntava, aliás, como sempre, onde
estivera e, quando o rapaz dizia secamente: “Com Campos”, ela fazia:
— Ah!...
E não tocava mais em semelhante
coisa.
Uma noite ele entrou ainda pior que
das outras. Não quis ir à varanda, meteu-se no quarto, abriu um livro e aí
ficou, junto à secretária, com a fisionomia fechada sobre a página.
Todavia, seu pensamento trabalhava:
“Era preciso acabar com aquilo, custasse o que custasse! Era preciso definir as
posições! — Ou a mulher de Campos se explicava, ou ele não poria lá mais os
pés!”
E resolveu que o melhor seria
escrever-lhe uma carta, uma carta enérgica, decisiva, exigindo um “sim” ou um
“não”. Fosse a resposta qual fosse, contanto que viesse, contanto que Hortênsia
desembuchasse por uma vez!
Mas não queria escrever enquanto
Amélia não pegasse no sono. — Ele bem sabia o quanto era a rapariga desconfiada
e fina. Só quando a pilhou quieta e presumiu que já estivesse dormindo, foi que
se animou a minutar a carta.
Frases e frases desesperadas e
cheias de fogo acavalavam-se umas pelas outras, falando em martírios infernais,
em suplícios dantescos e terríveis aniquilamentos. E Amâncio, no seu epicurismo
estrepitoso e brutal, declarava que “já não podia suportar as meias promessas,
os dúbios sorrisos e lentas torturas que ao sangue recalcado lhe impunham as
atitudes perplexas, de Hortênsia. Preferia a dor por inteiro, completa, de um
só golpe. Ela que tomasse uma resolução, que despachasse! Se lhe não convinha o
amor que ele propunha, declarasse-o com franqueza: — ficaria o dito por não
dito! E assim, escusavam de prosseguir naquele encarniçamento desabrido, de
cujo oscilante resultado as dúvidas e incertezas o acabrunhavam e consumiam,
mais dolorosamente do que tudo que pudesse haver de terrível e cruel em uma
solução desfavorável!”
Quando deu por bem correto e limado
o que escrevera, tirou a limpo uma cópia, sobrescritou-a e, para que Amélia não
descobrisse nada, escondeu todos os corpos de delito no fundo de uma das gavetas
da secretária. Depois, como se tivesse alijado um novelo da garganta, respirou
desafrontadamente, amorteceu o bico de gás e, abafando os passos e
desfazendo-se em cautelas, foi meter-se nos lençóis, muito empenhado em não
acordar a amante.
Não levou dez minutos a cair no
sono.
Então, Amélia ergueu-se, ainda com
mais cuidado do que ele se recolhera, foi pé ante pé à secretária, tirou a
carta e, depois de guardá-la em lugar seguro, tornou de novo à cama, e desta
vez adormeceu deveras.
*
* *
Leu-a precatadamente no banho, às oito horas da manhã,
enquanto esperava que o tanque de mármore se enchesse.
Amâncio ainda ficara no quarto.
Ela, já despida, encostada ao
rebordo da banheira, os ombros curvos, uma perna sobre a outra, a cabeça
descaída molemente para os ombros polposos do seio, tinha em uma das mãos a
pequena folha de papel e, de tal modo a fitava, que parecia disposta a
consumi-la com o brilho iracundo de seus olhos.
Aquela carta a revoltava muito; não
por ele, mas por si mesma; não pelo afeto que teria ao estudante, mas pelo
ressentimento de seu amor-próprio ofendido. Não lhe podia sofrer a vaidade que
um homem, a quem, por merecer, ela fizera tudo que estava em suas mãos; um
homem por quem lançara em jogos os recursos de sua feminilidade; um homem por
quem barateara todo o valimento do seu corpo, tivesse ânimo de desprezá-la por
uma outra mulher!
E, com o olhar imóvel sobre a nudez
oriental de seus membros, a boca entreaberta, o colo palpitante, Amélia se
concentrava toda na idéia de uma vingança completa, tão completa, tão grande
que lhe atulhasse o rombo cavado no seu orgulho de mulher traída.
A água, que escorria da torneira com
um trapejar, monótono, punha no ambiente desagasalhado do banheiro uma
impressão ainda fria de umidade e desconforto; e aquele corpo nu destacava-se
ali como uma bela estátua desprezada. Sua carne tersa e maciça contraía-se,
empinando os lóbulos do peito e enrijando a vermicular protuberância dos
quadris.
Nisto, uma abelha voejou à roda da
cabeça de Amélia, tentando pousar-lhe nos cabelos; ela agachou-se toda, fugindo
logo num movimento medroso de caça que se assusta. Em seguida, puxou a toalha
do cabide e pôs-se a dardejá-la contra o dourado importuno.
Foi uma luta. O inseto fugia; ela
trepava-se à borda do tanque, equilibrando-se, ora num pé, ora no outro,
segurando-se à parede, vindo, recuando, a despedir para todos os lados golpes
perdidos na toalha.
Mas a abelha não se deixara prender.
Ia e revinha no ar, zumbindo, a sacudir as suas trêmulas asas de escumilha; até
que o sol, por uma frincha do telhado, veio buscá-la numa aresta de luz, ainda
mais dourada do que ela.
*
* *
Nessa ocasião, Amâncio, no quarto,
perdia a cabeça à procura da carta.
— Pois se eu a guardei aqui, com
estas minutas!... resmungava ele sozinho, depois de ter já desarrumado toda a
gaveta.
Imaginar que Amélia desse com ela,
não! não era possível! Não descobriria o lugar, onde Amâncio, tão
previdentemente, sepultara a maldita carta; além disso, quando ele se meteu na
cama, já a pequena dormia a bom dormir e, pela manhã, bem a viu acordar e
escafeder-se para o banho... Que diabo teria então mexido ali?... As portas
ficavam sempre fechadas por dentro!... Supor que tivesse guardado o demônio da
carta em outra parte... mas como? se a deixara justamente dentro das minutas, e
as minutas lá estavam?...
Mas Amélia vinha de entrar no quarto
ao pé.
— Ó Amelinha! viste por caso por aí
alguma carta?... perguntou o rapaz indo ao seu encontro.
— Que carta? fez ela com o ar mais
calmo e mais natural deste mundo.
— Uma carta que nem é minha!...
Guardei-a naquela gaveta, — desapareceu!... Agora não sei que contas prestar ao
dono! É uma entalação! uma verdadeira entalação! queixava-se o rapaz
convictamente.
— Mas, onde a puseste?
— Na gaveta da secretária; estou-te
a dizer!
— Então deve estar lá. Procura bem.
— Já vi. Não está!
— Pois aqui não entra mais
ninguém... Eu cá por mim, não mexo nunca nos teus papéis, e ainda nem abri, uma
vez sequer, qualquer dessas gavetas... Se puseste a carta aí, aí deve estar por
força!
— Qual está o quê! Já despejei a
gaveta! Já remexi tudo.
E a desordem em que se achava o
quarto dizia isso mesmo.
— Então não sei... concluiu Amélia,
sacudindo os ombros. E continuou tranqüilamente a enxugar os cabelos, cujo serviço
havia interrompido para atender às perguntas do amante.
— Mas a carta também não podia voar!
declarou este em tom áspero.
— Sei lá! replicou a outra. — Comigo
que não a tenho... isso afianço!
— Diabo! praguejou Amâncio, sem se
poder dominar. — Pois, nem uma miserável carta posso ter nesta casa?! Arre! que
inferno!
— Inferno são esses modos que tens
ultimamente! De certo tempo para cá é esta boniteza! Parece que falas ao
Sabino! Ora quem sabe!... quem sabe se tenho aqui algum senhor?!...
— Está bom! Basta!
— Basta vá ele! seu atrevido! Quero
saber que culpa têm os mais com os sumiços que levam as cartas, para ouvir
impropérios desta ordem!
— Eu não me dirigi a ninguém! Sebo!
Falo cá comigo! Creio que ao menos tenho o direito de zangar-me quando entender!
— Sim, mas é que os outros também
não estão dispostos a aturar desses repelões a todo o instante!
— Pois que não aturem!
— Malcriado! Agora, por qualquer
coisinha é isso que se vê! — Qualquer coisinha não! berrou Amâncio. — É que
ontem pus aqui uma carta (soltou um murro na secretária) e a carta desapareceu!
Irra!
— Mas quem é que te podia vir aqui
tirar a carta, criatura de Deus?! perguntou Amélia mais branda, encaminhando-se
para o amante, a modos de querer chamá-lo à razão.
— Não sei! O fato é que a pus aqui,
e ela cá não está!
— Há de estar, homem! Não a
encontras agora porque já não tens cabeça, mas, logo que te acalmes, hás de
descobri-la...
— Mas onde? Já corri tudo!
— Deixa estar; eu me encarrego de
procurá-la assim que saíres.
— Mas é que eu precisava levá-la
comigo! É negócio urgente!
Amélia, como em resposta à última
frase do rapaz, abaixou-se sobre os papéis espalhados no chão e começou a
examiná-los, um por um.
— Não está aí! observou Amâncio
zangado, a passear de um lado para outro. — Já revistei tudo isso mais de cem
vezes! Furtaram a carta, não tem que ver!
Amélia já não respondia e
continuava, muito afoita, a esquadrinhar o que havia pelo quarto.
— Se me lembro perfeitamente que a
meti naquela gaveta, ao fundo, dentro destas minutas!... acrescentou Amâncio,
depois de um silêncio colérico.
— Mas quando a trouxeste?... disse
Amélia, sem tirar os olhos do que rebuscava.
— Ontem à noite.
— Mas eu não te vi com ela...
— Já estavas dormindo, guando a pus
na gaveta.
— Quem sabe se ficou naquela
algibeira?...
E a manhosa, com um vislumbre,
largou tudo de mão para correr a examinar a roupa de cabide.
— Ó filha! Eu não estava bêbado
quando me recolhi! observou Amâncio.
E tocou para o banheiro traçando
furioso o lençol em volta do corpo, num gesto melodramático.
Quando tornou ao quarto, Amélia já
havia arrumado as gavetas e dispunha sobre a cama a roupa que o rapaz devia
vestir á volta do banho.
— Então?... perguntou ele, ao
entrar.
— Nada! volveu ela, com admiração na
voz.
— Com efeito! Isto contado não se
acredita!... rosnou Amâncio, enfiando as meias.
E gritou para fora:
— Ó Sabino! Olha essas botas,
moleque!
Amélia, ao lado, metia-lhe os botões
numa camisa engomada.
E depois, a escovar-lhe o paletó no corpo, quando o estudante já
estava ao ponto:
— E a carta, de quem era?...
— De Campos, respondeu ele, sem
hesitar.
E saiu. Amélia acompanhou-o pelas
costas com um riso de asco.
E logo que se viu só, tirou do seio
o seu furto e releu-o mais uma vez.
— Que devia fazer daquela carta?...
como se devia servir daquela arma?... Denunciar o infame? — atirar-lhe à cara a
prova de sua vilania e nunca mais o procurar para nada, ou devia simplesmente
fingir que não sabia de coisa alguma, e em segredo, tomar a vingança que lhe
parecesse melhor?
Despedi-lo por uma vez — não
convinha! isso nem por sonhos! Ficar, porém, eternamente resignada e submissa,
também seria asneira!
Seu amor-próprio estava mordido e
sangrava. O procedimento desleal de Amâncio assumia no tribunal egoístico de
seu espírito ignorante e mal-educado as proporções jurídicas de um crime, de um
monstruoso abuso de confiança, um estelionato. Não se podia conformar com a
idéia daquela tremenda injúria, lançada contra os seus direitos de mulher nova
e bonita.
— Canalha! murmurava consigo, a
esmoer o fato. — Bem me dizia o coração!... Agora, o que precisavas que te
fizesse, sei eu! Ah! Mas descansa que hás de pagar com a língua de palmo! para
não seres cão, meu safardana!
Foi-se, porém, todo o dia, sem que
Amélia deliberasse o destino que deveria dar à carta. Só na manhã seguinte
apareceu-lhe uma resolução.
For ter com o mano, chamou-o de
parte e entregou-lhe.
— Vê isto, disse.
Coqueiro abismou-se logo desde as
primeiras palavras: “Minha adorada e incompreensível Hortênsia.”
— Que vem a ser isto?... perguntou
ele intrigado.
— Lê! Respondeu ela.
E, enquanto o irmão devorava o que
vinha escrito:
— Vê tu só a hipocrisia daquele
sonso!...
— Ele já sabe que esta carta está em
teu poder? interrogou Coqueiro depois da leitura.
—Qual! nem pode descobrir!
— Ainda não deu pela falta?
— Já. Zangou-me um bocado,
arrepelou-se, mas afinal creio que se convenceu de que a tinha perdido.
— E agora o que tencionas fazer
disto?
— Não sei... Que achas tu?...
— Acho que por ora não convém fazer
nada.
— Calar-me?!
— Por ora, decerto! Esta carta pode
vir ainda a servir-te de muito, mas é preciso que, em primeiro lugar, apareça a
ocasião. Se quiseres, deixa-a comigo, que eu sei o destino que lhe devo dar.
E guardou-a no bolso depois de um
gesto aprobativo da irmã.
— Ele a teria escrito de novo e
feito chegar às mãos de Hortênsia, sabes?...
— Não sei, mas posso ver.
— Bem. em todo o caso, não te dês
por achada! Nem uma palavra a este respeito! Precisamos dar tempo ao tempo...
podes, todavia, ficar desde já tranqüila, que o que tem de ser — traz força! A
justiça não se fez para os cães!...
— É por isso mesmo que eu não confio
muito na tal justiça! observou a rapariga.
XVIII
Mas, no fundo, João Coqueiro
principiava a “cismar com o negócio”. Segundo os seus cálculos, a irmã, por
aquela época, já deveria estar pejada: circunstância esta que daria
oportunidade a um escândalo, de antemão preparado, forçando Amâncio a “reparar
sua falta”.
E, no entanto, Amelinha “nada de aviar”!
O bom irmão sentia até como um peso na consciência por haver contribuído
diretamente para aquela situação.
— Era sempre assim!... pensava ele
enraivecido. — Se não precisássemos de um filho, é que os pestinhas haviam de
aparecer aí de enfiada!
E o receio amargo de ter sacrificado
a menina, talvez sem os belos resultados que esperava para si e para ela,
invadia-lhe o coração e punha-lhe momentos maus na vida.
Mme. Brizard já não pensava do mesmo
modo. Aquela existência pronta, inteiramente desocupada, lhe viera muito a
propósito. “Ela, coitada de si! bem precisava de um bocado de descanso!”
As coisas, de fato, iam-lhe agora
admiravelmente: Tinha a sua mesa boa e farta, um bom quarto de dormir, a mucama
para lavar-lhe e engomar-lhe a roupa, um camarote no teatro de quando em
quando, aos domingos um passeio à cidade, e lá uma vez por outra uma “soirée”[1]
em casa de alguma amiga. “Ah! Não se podia comparar a existência que levava
agora com a peste de vida que curtira na Rua do Resende!”
É que então não havia a menor folga;
não se podia arredar pé do serviço! E todo o dia reclamações! E todo o dia — o
banho morno de fulano! O chocolate de beltrano! Este queria ir sem pagar a
conta; o outro se entendia no direito de dizer desaforos porque pagava! Arre! Assim
também não era viver! Seu corpo há muito tempo que pedia aquele repouso! Se
continuasse a labutar como dantes — credo! — estourava por aí um dia,
esfalfada!
E, com medo de perder a “pepineira”,
cercava Amâncio de adulações. Tinha-o na conta de um patrão, de um amo, com
direito a todos os carinhos e desvelos. Assim jamais o contrariava, nunca lhe
opunha censuras. — Aquilo que o rapaz fizesse estava sempre muito bem feito!
No seu entendimento mercantil de
locandeira, Amâncio não aparecia “como isto ou como aquilo”, representava pura
e simplesmente “um bom arranjo”. Ali não havia favores, havia negócio, ninguém
ficava a dever obrigações. — Ele despendia tanto em dinheiro, mas recebia em carícias e bom trato um valor
correspondente. — Estavam quites!
Apenas, como o negócio era rendoso e
agradava a boa mulher, esta fazia o que estava ao seu alcance por agüentá-lo o
maior tempo possível, como de resto, qualquer um procedia com referência a um
bom emprego. Quanto à posição de Amélia, Mme. Brizard a dava por natural e
coerente. Não via na cunhada uma vítima ou coisa que o valha, mas tão-somente
um membro solidário naquela empresa, envidando os esforços de sua competência
para o comum interesse da associação.
Isto, já se deixa ver, era o que
pensava a francesa, mas não o que ela expunha; de sorte que o marido ficou
muito espantado, quando, falando sobre a necessidade de tratar do casamento de
Amélia com o hóspede, lhe ouvia dizer:
— Homem... para falar com
franqueza... acho que o melhor é deixar seguir o barco como vai!...
— Como vai!...
E Coqueiro engoliu a frase
indignado:
— Ora essa! Tu, com certeza, não
estás falando a sério!
— Às vezes, quem tudo quer tudo
perde!... sentenciou a mulher.
— Mas que diabo quero eu?! retrucou
aquele. — Eu não quero senão o que é de justiça! Quero apenas que eles se
casem!
A outra, para quem o casamento de
Amélia não trazia vantagens imediatas e podia, aliás, comprometer o estado
feliz das coisas, saltou logo com uma bateria de opiniões contrárias: “Coqueiro
faria muito mal em precipitar os acontecimentos! Naquela situação o mais
razoável e o mais prudente era sem dúvida esperar! A natureza não dava saltos!
as coisas haviam de atingir um bom resultado, sem ser preciso lançar mão de
meios violentos!”...
— Mas é que ele nos pode escapar!...
argumentou Coqueiro.
— Não creias! retorquiu a velha com
um gesto arraigado na experiência.
— Mas filha, vem cá! — Não vês como
o Amâncio está ultimamente? Já não é o mesmo! Amelinha já não tem sobre ele
domínio de espécie alguma! O maroto já não pensa nela, é todo da Hortênsia!
— E que tem isso? O que tem que ele
farisque a Hortênsia? Está no seu direito — é moço, tem dinheiro!
— Ora essa!... exclamou de novo
Coqueiro, ainda mais indignado que da outra vez. — O que tem isso?!...
E cruzando os braços:
— É muito boa!...
Mas tornou logo:
— Tem, que ele deve uma reparação à
minha irmã! Tem, que ele, apaixonado pela Hortênsia, pode virar as costas à
pobre menina e abandoná-la no estado em que a pôs! — desonrada, perdida! “Que
tem isso?!” Ora faça-me o favor!
— Tolo! disse a francesa com um riso
cheio de filosofia, cuja tranqüilidade contrastava com as irritações do marido.
— Tolo! Bem que se vê que não conheces os homens!... Pois acredites lá que o
Amâncio despreze a rapariga por ter agora um capricho pela outra?... Não sabes
que a única mulher capaz de prender o homem é aquela com quem ele convive dia e
noite; aquela com quem ele se habituou; aquela que já lhe conhece as fraquezas,
os ridículos, as pequeninas misérias da intimidade?! Abandoná-la!... Digo-te
mais: — Hortênsia é até necessária! Deixa que ele a persiga, que ele a
conquiste à força de mil sacrifícios e de mil sofrimentos; deixe que ele a
possua, que a tenha inteira na mão! Deixa, porque ele há de voltar, e voltar
farto!... Meu amigo, paixão é fogo de palha! — não dura! Nas ocasiões de fadiga
e abatimento é com o amorzinho de casa que a gente se acha! E, fica então
sabendo que, para um homem amar deveras uma mulher, é preciso que ele se tenha
já desiludido com muitas outras! Tristes de nós, se assim não fosse! Há maridos
que, ao voltar de suas correrias, apaixonam-se pelas mesmas esposas, a quem
dantes só se chegavam por obrigação!
E a francesa velha, saboreando o silêncio que cavara no
adversário, concluiu depois de tomar fôlego:
— O rapaz quer, por graça, dar
cabeçadas?... Pois deixa-as dar! Que ele, quando partir a cabeça, há de fazer
justiça à tua irmã. Este fato da mulher de Campos, crê tu, foi uma providência,
foi um atalho que se abriu nos teus planos!
*
* *
E o fato é que Coqueiro acabou por
concordar com a mulher. “Amélia, desde que se convertesse numa necessidade para
a vida de Amâncio, este, com certeza seria o mais interessado em fazer dela sua
esposa; por conseguinte, agora o que convinha era que a rapariga também
ajudasse de sua parte, empregando todo o jeito e boa vontade de que pudesse
dispor: devia mostrar-se cordata, simples nos seus gostos, bem arranjadinha,
amiga do asseio, honesta, digna, enfim, de um marido!”
E dominado por esta idéia,
aconselhou logo à irmã que se fizesse meiga com o “noivo”, dócil, boa
companheira e fiel principalmente, fiel quanto possível, que todo o futuro
dela, bom ou mau, só disso dependia!
Mas a rapariga, com uma pontinha de
desânimo, contrapunha-lhe o feio procedimento de Amâncio para com ela naqueles
últimos tempos. Apontou as cenas de altercação que mais a humilharam; disse as
frases grosseiras que ouvira do amante, as ameaças que recebera, as palavras
que lhe escaparam, a ele, na febre das contendas; palavras, onde se enxergavam
claramente o fastio e a má vontade!
— Não faças caso! discreteou o
irmão. — Isto não vale nada!... fecha por enquanto os olhos a todas essas
coisas! Não convém o menor espalhafato antes que o tenha seguro de pés e mãos!
Nada de espantar a caça!... Lembra-te, minha rica, de que, no estado em que te
achas, só ele te poderá proporcionar uma posição legítima e definida!
Depois desta conferência, Coqueiro
ficou mais tranqüilo. Agora, a sua maior preocupação era o sobrado da Rua do
Resende. — Já lá se iam meses, sem que o conseguisse alugar; o diabo do prédio
era grande demais para família e, na disposição em que estavam os quartos só
mesmo podia servir para casa de pensão.
Nesta conjuntura, resolveu alugá-lo
a várias pessoas; mas, para isso, tinha de fazer obras e faltava-lhe um homem
de confiança, que estivesse disposto a ir para lá e tomar conta de tudo. — Ah!
Se não fora a família!... ninguém mais se encarregava disso senão o próprio
Coqueiro! E fá-lo-ia até por gosto!
Encontrou, porém, o seu homem num
velho conhecido empregado no correio e que, já em algum tempo, tomara a seu
cargo, nas mesmas condições, a casa de um outro amigo. Chamava-se Damião. — bom
rapaz, ativo e zeloso. Estava talhado para a coisa.
Damião, mediante a faculdade de não
pagar a parte que ocupasse na casa, comprometia-se a cobrar o aluguel dos
outros inquilinos e entregá-lo pontualmente ao senhorio; obrigava-se a
fiscalizar a conservação do prédio, a pregar escritos quando houvesse cômodos
desabitados e administraria enfim o serviço da pessoa que se encarregasse de
fazer a limpeza dos quartos, de varrer os corredores, encher os jarros e
moringues, tomar conta da chavaria e ter olho sobre quem entrasse e quem
saísse.
Para estes últimos cuidados
arranjou-se um homenzinho meio corcunda, português, rafeiro, esperto como um
rato, um pouco falador, mas muito experimentado naqueles serviços. Coqueiro
dar-lhe-ia alguma coisa por mês e um canto da casa para dormir. “Uma
pechincha!”
Fechado o negócio, tratou o proprietário de dividir a sala
de visitas e a varanda do sobrado em pequenos repartimentos de tabique, forrados de papel nacional. É
inútil dizer que neste ponto foi indispensável a intervenção pecuniária de
Amâncio, que ficou por conseguinte com direito sobre uma parte dos rendimentos
do prédio.
E também não é menos útil declarar
que o provinciano, nem de longe, sentiu jamais o cheiro de tais rendimentos.
*
* *
Mas o certo é que as obras se
fizeram, e a célebre casa de pensão de Mme. Brizard, outrora tão animada e
concorrida, transformou-se num desses melancólicos sobradões de alugar quartos,
que se observam a cada canto do Rio de Janeiro e onde, promiscuamente, se
aninha toda a sorte de indivíduo, mas de indivíduos que já foram alguma coisa
ou de indivíduos que ainda são nada.
Aí, as mais belas e atrevidas
ilusões vivem paredes-meias com o mais denso e absoluto ceticismo. Velhos
boêmios, curtidos no veneno de todos os vícios e no segredo de todas as
misérias, encontram-se diariamente, ombro a ombro, com os visionários
estudantes de preparatórios.
É nessas praias desamparadas à
ventania da sorte que a sociedade costuma arrevessar o destroço dos que
naufragam nas suas águas, mas é daí também que ela pesca às vezes novas pérolas
para o seu diadema. Há de tudo — homens de todas as nacionalidades, sujeitos de
vida misteriosa, solteiros libertinos e neutralizados pelo venéreo, artistas
completamente desconhecidos que se imaginam vítimas do meio, e supostos
talentos que vivem para amaldiçoar a fortuna dos que conseguiram vencer a onda.
Quase todos eles têm na sua vida um fato, uma época, uma
coisa extraordinária, para contar: um, apresenta a honra de lhe haver morrido
nos braços tal homem célebre; outro, diz que foi amante da senhora condessa de
tal; outro, afiança e jura ser o
verdadeiro, se bem que obscuro, promotor de tal acontecimento histórico; outro
revela um romance de amor que lhe cortou a carreira, mas que o imortalizará em
vendo a luz da publicidade; outro, confia numa invenção, “é o seu segredo”, um
projeto mecânico, ou industrial ou econômico-político; outro, não aceita
emprego nenhum do atual governo, e espera a ocasião de “pegar numa espingarda e
fuzilar as velhas instituições de seu miserando país”; outros, enfim (e são os
menos raros), têm apenas para exibir em honra própria a circunstância de algum
parentesco ilustre.
Ah! Não se encontram aí
notabilidades de nenhuma espécie, mas sim os parentes. Este, é o sobrinho de
tal poeta ilustre; aquele é irmão do ministro tal, que deu o nome a tal rua;
este outro, cunhado ou primo em terceiro grau do glorioso artista Fulano dos
anzóis.
E os tipos, quando lhe tocam nisso,
enchem-se de orgulho, como se participassem das glórias do festejado parente;
pelo menos, ninguém os apresenta a qualquer pessoa, sem acrescentar logo, com
assombro: “Irmão de Sicrano!... cunhado de Beltrano!”...
Então o apresentado costuma abaixar os olhos, sorrindo
modestamente, como se dissesse: “Ó senhor! Por quem é... não me confunda!”
É também desses viveiros sombrios e
malcheirosos que surgem certas figuras que, às vezes, nos espantam na rua — a
tossicar dentro de um sobretudo enorme, um xale-manta em volta do pescoço, um
bengalão entre os dedos e na fisionomia um ar melancólico e ao mesmo tempo
irritado.
É daí, desses quartos silenciosos,
úmidos e tristonhos, como sepulturas vazias, que surgem com o seu passo
inalterável e pausado os sinistros aranhões, que vemos passar estranhamente
pelos jardins públicos, ao sol das boas manhãs de inverno.
Coitados! São em geral homens sem
meios de vida, protegidos por algum figurão qualquer, de quem, ou foram colegas
na academia, ou ainda continuam a ser parentes com a mais cruel pertinácia.
Quando falam desse protetor feliz e rico não se animam a dizer mal, mas a sua
fisionomia acode um invencível sorriso cheio de velha bílis acumulada e sôfrega
por transbordar. Uns vão regularmente comer a certas casas comerciais, outros
se arranjam pelas impossíveis casa de pasto da Cidade Nova, os “freges”, onde
as refeições não passam de duzentos réis. Alguns têm almoço seguro à mesa de um
velo amigo de melhores tempos, o jantar em casa de outro; às sextas-feiras são
infalíveis nas comezainas gratuitas dos frades de São Bento. Uns, passam a
noite na jogatina, percorrendo espeluncas, tomando café nos quiosques às quatro
e meia da manhã e então, durante o dia seguinte, dormem a fartar; outros,
recebem donativos de alguma irmandade religiosa, à qual se filiaram em épocas
de prosperidade.
São sempre vistos, em horas
determinadas, no jardim do Rocio, no Passeio Público, assentados no banco de pedra,
lendo jornais à sombra das amendoeiras, às vezes têm ao lado a botina que
descalçaram por amor dos calos; são vistos igualmente nos edifícios públicos em
construção, acompanhando as obras com interesse, como se estivessem
encarregados disso, fazendo perguntas, ralhando com os operários, numa
necessidade irresistível de aplicar, seja como fôr, a sua atividade desocupada
e vadia. Não há motim, não há incidente de rua, por mais ligeiro, em que eles
não intervenham, tomando logo a parte principal na coisa, repreendendo o
agressor, conciliando o agredido, fazendo enfim acreditar que ali está uma
autoridade civil em pleno exercício de suas funções.
São violentos quando lhes falam de
política e só se referem aos homens de poder com palavrões brutais e desabridos;
a alguns nomeiam sempre com alcunhas determinadas e todos os outros, que ainda
não receberam o batismo de sua cólera invejosa, são indistintamente “os
ladrões, os patoteiros, os vis, os traidores, os capachos do rei!” Através dos
cerrados negrumes naquela miséria e daquele ressentimento, nada enxergam de bom
e de legítimo.
Coqueiro, não obstante, se mostrava
satisfeito com os seus inquilinos e dizia ter encontrado no Damião o “homem que
lhe convinha”.
Aparecia por lá constantemente;
gostava de ver como ia o prédio, gostava de dar um vista de olhos pelos cantos
da casa, em silêncio, de mãos no bolso, e sentia uma verdadeiro prazer sempre
que encontrava alguma coisinha para consertar — algum pedaço de papel solto da
parede, alguma régua despregada, alguma tábua fora do lugar.
A existência nunca lhe parecera tão
corredia e tão fácil; só faltava, para complemento da ventura, que o maçante do
colega desembuchasse por uma vez com aquele maldito casamento.
— Ah! então é que seriam elas!...
*
* *
Mas o “maçante do colega” estava bem
longe de pensar em casamento; todo ele era pouco para sofrer a cáustica
impassibilidade de Hortênsia.
A caprichosa continuava no seu
terrível sistema de não aviar nem desaviar. Amâncio fizera-lhe ir ter às mãos
uma segunda cópia da carta subtraída, e ela em resposta aconselhou-o a que não
escrevesse outra, sob pena de entregá-la ao marido.
— Pois que vá para o diabo que a
carregue! pensou o estudante, furioso, e resolveu dar o negócio por acabado.
Com efeito, durante um mês inteiro,
nas poucas vezes em que teve de falar ao Campos sobre questões de interesses
materiais, não passou do escritório.
— Homem! dizia-lhe o negociante. —
Você só aparece aqui por fruta, e faz visitinhas de médico! Não há meios de
apanhá-lo lá em cima! Neném até já se queixou!
Amâncio defendia-se com os seus
estudos e com os sobressaltos em que andava depois das últimas cartas do norte.
— Por quê? Há alguma novidade?!...
perguntou o amigo, cheio de solicitude.
— A velha não está boa!... explicou
o rapaz. — Desde que morreu meu pai, a pobre de Cristo ainda não levantou a
cabeça! confesso-lhe que tenho meus receios, tenho!...
E quedava-se abstrato, a fitar o
chão, com a fisionomia paralisada por uma tristeza vidente e ao mesmo tempo
irresoluta.
O outro não se animava a interromper
aquele silêncio doloroso e respeitável. Mas, por fim, lembrou discretamente,
com delicadeza, que não seria mau uma viagem à província; talvez com isso se
evitasse um desgosto maior... Amâncio era a menina dos olhos de D. Ângela...
bem podia ser que, só com a presença dele, a pobre senhora melhorasse!...
O estudante mostrou-lhe a última
carta da mãe; e os dois, tendo ainda conversado com o mesmo recolhimento,
vieram a concordar em que era indispensável um passeio ao Maranhão; Amâncio
retirou-se fazendo os planos da viagem.
— Oh! exclamava ele por dentro. —
Vou! não tem que ver! vou definitivamente! E provo àquela mulher que não ligo a
menor importância ao que ela me fez! Hei de provar-lhe que o seu procedimento
em nada me alterou. Que até sigo muito satisfeito e muito senhor de mim.
E via-se já na ocasião das despedidas — frio, indiferente,
sorrindo às lágrimas de Hortênsia. E sua fantasia, gozando do efeito desses
devaneios, armava-lhe ao sabor da vaidade, cenas muito espetaculosas, nas quais
representava ele sempre o papel mais brilhante e mais elevado.
Via Hortênsia a seus pés, lacrimosa
e mísera, suplicando-lhe por piedade que não se fosse, que a perdoasse, que se
compadecesse de tamanho desespero. “Ela ali estava submissa e arrependida,
pronta a cumprir de olhos fechados as ordens de seu querido Amâncio, do seu
senhor, de seu Deus, do seu tudo!”
Ele então, com um riso cruel,
voltando-lhe o rosto e acendendo um charuto: “Não, filha, tem paciência! E se
insistes, vai tudo às mãos de Campos!”...
Hortênsia, ao ouvir estas palavras,
estorcia-se numa aflição teatral, e logo que Amâncio se dispunha a partir,
desabava de costas, quase morta, justamente como as heroínas dos romances que
ele devorava aos quinze anos.
Mas a terrível concupiscência do
nortista, sobrepujando logo a fantasia do vaidoso, não resistia à tentação de
possuir, ao menos em sonho, aquele belo corpo desfalecido e, como dantes,
começava mentalmente a despi-lo, peça por peça, até deixá-lo em pleno escândalo
da carne.
Entrou em casa resolvido a levantar
o vôo, custasse o que custasse.
— Sim, era preciso ir! por
Hortênsia, por sua mãe, por Amélia, por mera distração, por tudo! Precisava
afastar-se daquele inferno, onde duas mulheres, como duas sombras, o torturavam;
uma fugindo e a outra perseguindo. Desde que recebeu a tremenda resposta de
Hortênsia, sentia-se muito nervoso e irascível; Amélia suportava-o, sabe Deus
como, fazendo milagres de paciência para não se afastar dos conselhos que lhe
dera o irmão. Quase que já se não podiam sofrer um ao outro. Além disso, as
cartas de Ângela repetiam-se agora desesperadamente. “Estaria a pobre mãe com
efeito em risco de vida?... pensava Amâncio. “Dependeria dele o salvá-la?... E
os seus interesses que havia tanto tempo o reclamavam?... E as saudades da
pátria? e os prazeres que encontraria à volta do primeiro ano acadêmico?”
Os prazeres, sim. Amâncio, pelo
derradeiro paquete, recebera em uma das principais folhas diárias de sua
província a seguinte notícia:
“MARANHENSE DISTINTO. — Acaba de
fazer brilhantemente o primeiro ano de seu curso na Escola de Medicina na Corte
o nosso talentoso comprovinciano, Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos, filho
do há pouco falecido e sempre chorado Comendador Manuel Pedro de Vasconcelos,
um dos mais estimados negociantes que foi desta praça. Enquanto não podemos
pessoalmente abraçar o digno jovem e esperançoso discípulo de Hipócrates,
apressamo-nos a enviar-lhe daqui os nossos sinceros parabéns, futurando em S.
S., mais uma glória legítima para a nossa Atenas, já tão rica, aliás, em
talentos privilegiados!”
*
* *
Ninguém poderá imaginar o efeito que
produziram tais palavras no espírito presunçoso de Amâncio. Era a primeira vez
que ele via o seu nome em letra redonda, seguido de alguns adjetivos
laudatórios.
Por detrás daquela notícia
pressentia o rapaz um paraíso de novas considerações que o esperava na
província; antevia o sorriso das damas, a reverência dos pais de família e a
inveja dos ex-colegas do Liceu.
— Não! não podia deixar de ir. O
Maranhão, naquele momento, e por todos os motivos, representava para ele uma
necessidade urgente. — Havia de meter a cabeça e varar por quantos obstáculos
se lhe antepusessem.
*
* *
Amélia ficou estonteada quando o
amante lhe deu parte dos seus projetos de viagem, tão calmo e resoluto foi o
tom em que o fez; mas, voltando do primeiro choque, rompeu um grande pranto e
atirou-se de bruços na cama, soluçando muito aflita. “Que era uma desgraçada!
Que Amâncio a queria abandonar, depois de a ter desonrado e perdido!”
— Eu volto, filha! disse ele,
procurando fazer-se meigo. — Vou tratar de meus interesses, ver minha mãe, e
volto para o teu lado! Não tenhas receio de que te engane! Eu ainda se
quisesse, não podia ficar por lá, já não digo por ti, mas, que diabo! pelos
meus estudos. Pois acreditas que eu cairia na asneira de abandoná-los, agora
que estou tão bem encaminhado?...
— Não sei! respondeu a rapariga,
erguendo-se rapidamente, com feições sumidas na vermelhidão do choro. — Você, é
impossível que não tenha no Maranhão alguém à sua espera!... E essa com certeza
não há de ser pobre como eu, não terá a boa fé que eu tive!... com essa você
não porá dúvida nenhuma para casar!...
E voltaram-lhe os soluços, como um
temporal que recresce.
— Estás a dizer tolices, filha!
Dou-te a minha palavra de honra em como nunca esquecerei de ti! Que mais
queres?!
— Pois então casemo-nos e partirás
depois!...
— Isso é impossível! Já te disse um
milhão de vezes! Oh! — Minha mãe espera-me há quatro vapores seguidos! Imagina
tu como não estará ela, coitada, com a morte do velho! Não hei de agora, em,
vez de minha pessoa, lhe apresentar uma carta pedindo licença para casar!...
Que espécie de filho seria eu nesse caso?! “Enquanto a pobre viúva se desfaz em
lágrimas; enquanto na família tudo é luto e desgosto, o bom do filho pensa em
casamento e, sem dúvida, prepara as festas do noivado!” Não! gritou ele
energicamente. — Isso não faria eu, nem se me cosessem a facadas! Pelo menos,
enquanto estiver com esta roupa sobre o corpo...
E sacudiu com força a aba do seu
fraque de lustrina.
— Enquanto estiver com esta roupa,
não penso em mulher! Nada! Antes de tudo, sou filho! Percebes?! Antes de tudo,
tenho de olhar por minha pobre mãe, que é muito capaz de morrer se não me ver
ao seu lado!
E foi, cheio de excitação,
debruçar-se no peitoril da janela, fitando as plantas do jardim, a roer as
unhas.
Houve um silêncio. Amélia já não
chorava; imóvel, apoiando-se ao espaldar da cama, entontecia a vista contra as
ramagens cruas do tapete.
— Nesse caso, ela que venha ter
contigo... disse afinal, sem erguer os olhos.
— Ora! resmungou Amâncio,
voltando-se vivamente na janela.
— Ou então iremos nós... acrescentou
a rapariga, fazendo um biquinho de enfado. E depois, com pieguice: — Tenho muito
medo das maranhenses!...
O estudante não respondeu, foi ter
com ela, tomou-lhe meigamente a cabeça entre as mãos.
— Esta cabecinha!... — disse — esta
cabecinha não sei quando terá juízo!...
E, passando a falar em tom sério,
protestou que era até injustiça supô-lo capaz de cometer uma perfídia daquela
ordem! Amélia já devia estar perfeitamente convencida de que ele a amava
deveras; de que ele não seria tão mau que a abandonasse, depois de receber
tantos carinhos. Ela que não estivesse a descobrir perigos, onde nem sombras
disso havia!... A tal viagem ao norte, no fim de contas, era uma questão de
dois ou três meses, e ele deixaria uma mesada regular e escreveria por todos os
vapores!...
— Não acreditas ainda que te estou
falando com sinceridade?... concluiu, a beijá-la nos olhos. — Que precisão
tinha eu de te enganar?...
— Sim, creio, creio que por ora
assim seja, não há dúvida! Mas também estou persuadida de que, logo que passes
a barra, tudo muda de figura!... Nos primeiros dias ainda te lembrarás da
infeliz que aqui deixaste, mas depois... com a presença de outras, com os novos
passatempos que te esperam... até hás de perguntar aos teus botões “como foi
que em algum dia chegaste a pensar a sério neste casamento?”...
— Bem se vê que não me conheces!...
retorquiu o rapaz.
— Não! não! não irás! sustentou
Amélia. — Adoto-te, és meu, não te quero perder! Ora essa!
— Mas, filha, observou Amâncio
impacientando-se — lembra-te de que é mais decente fazermos a coisa por bons
modos... Afinal, tu não me podes constranger a ficar, e, eu, em vez de ir,
deixando um compromisso de cavalheiro, sou capaz de ir, sem deixar coisa
alguma! Ora aí tens!
— Hein?! bradou ela,
transformando-se a contragosto. — Cai nessa! Experimenta só, para veres o gosto
que lhes achas!
Amâncio respondeu com um gesto
desabrido, enterrou o chapéu na cabeça, e saiu à toa, sem destino, com um fúria
surda a espezinhar-lhe o coração.
Mas, ao voltar, encontrou Amélia no
mesmo estado. E a questão reapareceu à noite, reapareceu na manhã seguinte, e
todos os dias, tomando um caráter de rezinga
permanente.
Amâncio perdeu de todo a paciência.
— Era demais! Sebo! Ele, no fim de
contas, não tinha obrigação nenhuma de aturar semelhante gaita nos ouvidos! Que
mastigação! Arre! Amélia que fosse atenazar o pai!
Ela respondeu possessa, deixando
escapar palavrões, “Supunha ter encontrado um homem, mas encontrara um quidam,
um canalha, um desfrutador!”
— Desfrutadores são vocês todos! —
Percebes tu?! berrou ele, colérico. — Desfrutadores — é teu irmão — é tua
madrasta e és tu! que só faltam me arrancar a pele! Súcia de filantes!
E lembrou o que até aí gastara com
eles, o que lhes dera, o que comprara e o que lhe desaparecia das algibeiras.
— Não me estás de graça, não!
exclamou, saindo afinal do quarto como da outra vez.
Desta, porém, quando voltou a casa
vinha com o ar mais despreocupado que se pode desejar. E logo que Amélia lhe
falou na questão da viagem, ele respondeu tranqüilamente que já não havia nada
a esse respeito. “Resolvera ficar.”
A rapariga compreendeu o disfarce e,
no dia seguinte, tratou de prevenir o irmão de que abrisse os olhos, se não
queria ver o Sr. Amâncio escapar-lhe por entre os dedos.
João Coqueiro ficou de orelha em pé.
XIX
A pequena tinha toda a razão;
Amâncio, parecia resolvido a desistir da viagem, era porque nessa mesma tarde
encontrara Paiva e, na sua necessidade de expansão, levou-o para o fundo de um
café e abriu-se com ele. Contou-lhe as dificuldades que o afligiam, e pediu-lhe
conselhos.
— Não há que saber!... disse o
consultado. — Não há que saber!... Aí só vejo dois partidos a tomar: — ser tolo
— ou — não ser tolo!
E, como o outro fizesse um trejeito
de má compreensão:
— Tolo, se ficares e — não tolo — se
te puseres ao fresco!
— Mas, Paiva, você então acha que
devo ir?... perguntou Amâncio, hesitando, a morder as unhas.
— Homem! volveu aquele — se precisas
ir ao Norte, prepara-te caladinho e vai! Que necessidade tens tu de que a gente
do Coqueiro saiba disso?... Deve-lhes satisfação de teus atos?... Se não deves,
é aprontar as malas e... por aqui é o caminho! olha! deixa-lhe uma carta, muito
delicada, já se vê, muito cheia de promessas. “Que voltas, que hás de fazer,
que hás de acontecer!” E, no entanto, vai-te raspando... Porque estas coisas,
filho, assim é que se decidem. E, quanto aos arranjos da viagem... cá estou eu
para te ajudar!...
Calaram-se por alguns instantes.
Paiva Rocha pediu um novo sherry-cobler e prosseguiu enquanto o amigo,
muito pensativo, fitava o mármore da mesa:
— Agora, se estás tão embeiçado pela
sujeita, que não tenhas ânimo de a deixar; isso é outra coisa!... Neste caso, o
melhor é escrever à velha, dizendo-lhe que venha, arranja um novo advogado de
confiança que se encarregue de teus negócios no Maranhão, e faze a vontade à
pequena — casa-te!
Amâncio torceu o nariz com enfado:
— Qual!
— Então, filho, que esperas?... É
perder o amor aos objetos que lá tens, e fazer o que já te disse!
— Mas Coqueiro não poderá tomar
alguma vingança?...
— Não sejas parvo! resmungou o
outro, bebendo de um trago o que ainda tinha no copo; e ergueu-se disposto a
sair. — Amanhã às mesmas horas, cá estou! Traze o cobre e deixa o resto por
minha conta!
Separaram-se concordes e que no dia
seguinte ficariam depositados na república do Paiva os apetrechos da fuga.
Em casa de Coqueiro, todos, à
semelhança de Amelinha, nem de leve mostravam suspeitar de coisa alguma;
pareciam até mais tranqüilos e satisfeitos. Nem um gesto de ressentimento, nem
uma palavra indiscreta que os denunciasse. Tudo era paz e bem-aventurança.
Reapareceram as primitivas noites de
amor, como boa estação que volta carregada de flores. Os dois amantes nunca se
possuíram tão satisfeitos um do outro e nunca se patentearam tão convictos da
mesma felicidade. No empenho comum de se enganarem, cada qual redobrava de
carinhos e meiguices; enquanto por dentro os corações lhes bocejavam,
aborrecidos e fatigados.
O dia da viagem chegou sem novidade
alguma. Amâncio levantou-se como das outras vezes, apenas um pouco mais cedo.
Olhou por um momento Amélia que ainda dormia, toda sumida nos lençóis,
vestiu-se cautelosamente para não a acordar; depois foi à varanda, bebeu café e
saiu em ar de passeio.
No Largo do Machado tomou um carro e
bateu para a república de Paiva.
Não encontrou o colega, havia já
saído. — Devia estar à sua espera com a bagagem, no cais Pharoux.
Amâncio mandou tocar o carro para
lá. E, à proporção que se aproximava do mar, crescia-lhe por dentro um vago
sobressalto de impaciência e de medo.
— Anda! Gritou ao cocheiro, espiando
repetidas vezes pela portinhola e apalpando de instante a instante o bilhete da
passagem que tinha no bolso.
Estava comovido, principiava a
sentir pena de deixar a Corte; apareciam-lhe saudades das boas noites com
Amélia, das patuscadas com os amigos. E um mundo de recordações formava-se e
transformava-se atrás dele, fugindo, desaparecendo como sombras que se esbatem.
Para disfarçar a impressão
desagradável de tais mágoas, procurava embriagar-se com a idéia das aventuras
que o esperavam na província, grupando na fantasia tudo aquilo que o pudesse
interessar de qualquer modo; e compunha, e construía, inventava episódios,
cenas, dramas inteiros, nos quais lhe cabia sempre a principal figura. E,
depois de bem mergulhado nos seus devaneios, depois de bem envolvido na
alacridade de seus sonhos de glória, o Maranhão aparecia-lhe risonho e
brilhante como a última expressão do que há de melhor sobre a terra.
Mas, na ocasião em que se apeava, um
tipo mal encarado, olhou por cima dos óculos, a barba grisalha, um tom geral de
porcaria no seu velho fato de pano preto, nas suas botas acalcanhadas, no seu
chapéu de pêlo cheio de manchas amarelas, aproximou-se dele e, com uma voz
enxuta e morfanha, intimou-o “a comparecer imediatamente em presença do
delegado de semana na secretaria de polícia”. Era um oficial de justiça.
— Mas que desejam de mim...
perguntou o estudante, empalidecendo e procurando o Paiva com os olhos. — Eu
não tenho nada com a polícia!
E recuou dois passos.
— O senhor está intimado! repetiu
secamente o outro, e, em voz baixa, disse a dois sujeitos que se haviam
adiantado: — Cerca! cerca o homem!
Então aqueles avançaram logo,
jogando o corpo num pé só, o chapéu para trás, um grosso porrete na mão.
— Comigo é onze! exclamou um deles,
muito canalha, a cuspilhar para os lados.
— Mas, por que me prendem?!...
perguntou o estudante, sentindo-se tolhido.
— São coisas!... responderam-lhe,
fazendo-o entrar no carro.
Amâncio ainda procurou descobrir
Paiva; depois, azoinado pela gentalha que se reunia em torno dele, saltou para
a almofada, perseguido sempre pelos três sujeitos.
O oficial segredou alguma coisa ao
cocheiro, e o carro deu volta e rodou em sentido contrário ao cais.
Amâncio cobriu o rosto com o lenço e
principiou a soluçar.
Coqueiro, desde a prevenção que lhe
fez a irmã, não se descuidou mais um instante de vigiar a sua presa:
seguiu-lhes os passos, farejando, até o momento em que Amâncio tomou bilhete de
passagem para o norte.
Então, correu à casa do Dr. Teles de
Moura.
O Teles era um advogado velho, muito
respeitado no foro; não pelo caráter, que o não mostrava nunca, nem pela sua
ciência, que não a tinha; nem tampouco pelo seus cabelos brancos, que a estes
nem ele próprio respeitava, invertendo-lhe a cor; mas sim pela sua proverbial
sagacidade, pelas suas manhas de chicanista, pela sua terrível figura de raposa
velha, pelos seus olhinhos irrequietos e matreiros, pelo seu nariz à bico de
pássaro e pela sua boca sem lábios, donde a palavra saía seca e penetrante como
uma bala.
O passado de Teles era toda uma
legenda de vitórias judiciais; atribuíam-lhe anedotas mais antigas do que ele;
muito processo se anulou naquelas unhas aduncas de tamanduá; muito criminoso
escapou às penas da lei por entre as malhas da sua astúcia; muito inocente foi
parar à cadeia ensarilhado nas pontas de seus sofismas.
Para ele não havia causas más; em
suas mãos qualquer processo se enformava ao capricho dos dedos como uma bola de
miolo de pão.
E o irmão de Amélia sabia de tudo
isso perfeitamente quando lhe foi bater à porta.
Seriam então nove horas da manhã; a
raposa almoçava.
Coqueiro esperou um instante e, só
terminado o barulho dos pratos, animou-se a tocar a campainha.
Apareceu um moleque, tomou o recado
no corredor e pouco depois trouxe a resposta. “O amo estava muito cheio de
ocupações naquele dia, não falava com pessoa alguma. Coqueiro que voltasse
noutra ocasião.”
Mas Coqueiro recalcitrou.
Esperaria... Tinha que falar ao Dr. Teles, custasse o que custasse. “Tratava-se
de uma causa importantíssima!”
Veio afinal o doutor, palitando os
dentes, o ar muito ocupado, os movimentos de quem tem pressa.
— Que era? O que desejavam?
Coqueiro, com a voz alterada, os
gestos dramaticamente desesperados, disse que ia ali buscar proteção de
justiça. “Era pobre, sim, mas estudioso e trabalhador. Sua vida aí estava —
limpa! Podia até servir de modelo! — Casara-se na idade em que os rapazes em
geral só pensam nos prazeres e nas loucuras!... Adorava a família; sim!
adorava, porque a família era o bem único de que ele dispunha na terra! Tinha
uma irmã, inocente e indefesa, a quem até aí servira de pai e de tutor...”
O advogado deixou escapar uma
tossezinha de impaciência.
— Pois bem, senhor doutor! exclamou
o outro, puxando com ambas as mãos, contra o peito, o seu chapéu de feltro. —
Pois bem! Essa menina, que era todo o meu orgulho, que era como o documento
vivo do bom cumprimento de meu dever... essa menina, que eduquei sob os maiores
sacrifícios... essa pobre criança...
— Que fez, perguntou o velho muito
calmo. — Arribou de casa?...
— Não senhor, acaba de ser vítima da
maior traição, da mais degradante maldade, que...
— Mas, afinal, o que houve?...
interrogou o doutor fugindo às preliminares.
— Foi
desvirtuada por um rapaz, um colega meu que, há coisa de um ano, hospedei, por
amizade, debaixo de minhas telhas!...
— E ele? perguntou o advogado, sem
se comover.
— Ele já está de passagem comprada
para o Maranhão e foge amanhã mesmo, se não houver uma alma reta e caridosa que
lhe embargue a viagem.
— Ela ficou pejada?
— Não senhor.
— É menor?
— Tem vinte e três anos, respondeu o
queixoso, triste porque sua irmã não tinha menor idade.
— Está o diabo!... resmungou a
raposa; espetando os dentes com o palito. — E ele?
— Ele tem vinte e um.
— Feitos?
— Feitos, sim senhor.
— Bem.
E acendeu um cigarro que levava a
preparar lentamente.
— É o diabo!... repisava. — Não se
pode fazer nada, sem a verificação do fato... É o diabo!
E calaram-se ambos. O velho a
pensar; o outro, de cabeça baixa, o aspecto infeliz, a choramingar baixinho.
— Ele tem recursos? perguntou aquele
afinal.
— É rico, bastante rico, respondeu
Coqueiro, sem tirar os olhos do chão.
— Emancipado?...
— Totalmente. Órfão de pai! E até
sócio comanditário de uma importante casa comercial. Tem para mais de
quatrocentos contos de réis.
— Bem. Arranja-se a queixa-crime.
Olhe! Deixe-me aí o seu nome, o dele, o da vítima, o dos competentes pais, se
os tiverem, as respectivas moradas, profissões, etc., etc. Enfim a substância
da queixa...
— O senhor doutor acha então que?...
— Veremos! Veremos o que se pode
fazer!... Não perca tempo — escreva.
Coqueiro escreveu prontamente,
interrompendo-se de vez em quando para pedir informações.
— Está direito! sussurrou o
advogado, correndo os olhinhos pela folha de papel que o outro lhe acabava de
passar. — Pode ir descansado. Vá.
E seu todo impaciente estava a
despedir a visita. Esta, porém, fazia não dar por isso e desejava mais
esclarecimentos; queria saber ao certo o tempo que deitaria aquela questão. “Se
era de esperar que Amâncio casasse com a vítima; se havia recursos na lei para
o perseguir, etc., etc.”
O velho palitou os dentes, mais
vivamente. “Que diabo! Um processo era um processo! Tinha de percorrer todos os
componentes sacramentos! Não se chegava ao fim, sem passar pelos meios!...
Amâncio podia furtar-se à citação, esconder-se; os oficiais de justiça eram tão
fáceis de ser comprados!... tão ordinários!... vendiam-se por qualquer
lambugem, por um relógio, por um pouco de dinheiro!...
E principiou a encarecer a causa,
grupando termos jurídicos, apontando dificuldades. Sua voz transformava-se ao
sabor daquela terminologia especial. Em primeiro lugar tinham de apresentar uma
queixa perante o juiz de direito do distrito criminal. Deferida a petição, intimar-se-ia
o indicado para a audiência que se designasse. — E os interrogatórios? E a
pronúncia? e os recursos?... Enfim havia de se fazer o que fosse possível!...”
— E por enquanto... acrescentou o
chicanista, consultando apressado o relógio — não tenho de meu nem mais um
segundo!
E despedindo o outro com um aperto
de mão:
— Olhe! Procure-me logo mais na
polícia, ao meio-dia. Estou lá a sua espera, pode ir descansado. Adeus!
E empurrando-o brandamente:
— Não deixe de ir, hein?... Meio-dia
em ponto! Adeus! Desculpe!
Coqueiro saiu, mastigando
agradecimentos.
Estava agora mais tranqüilo; — a
fama do Dr. Teles de Moura enchia-o de esperanças radiosas. “Sua causa não
podia cair em melhores mãos!”
*
* *
E a verdade é que ele, industriado pela raposa velha obteve
um mandato de notificação, obrigando Amâncio a comparecer na polícia,
imediatamente, para investigações policiais, e peitou o oficial da justiça e
arranjou dois secretas e, afinal, o amante da irmã foi conduzido à presença do
delegado de semana e daí levado à detenção, donde só sairia para responder ao
primeiro interrogatório.
O advogado requereu corpo de delito
na ofendida e, para a seguinte audiência, o comparecimento dos outros dois
inquilinos que, por ocasião do crime, moravam na casa de pensão — o Dr. Tavares
e o guarda-livros.
No inquérito, duas testemunhas
fizeram-se ouvir contra Amâncio; um taverneiro das Laranjeiras — bicho gordo,
cabeludo, a pele cor de telha e dono de uma venda que encostava os fundos com
os da casa de Amélia, e um alferesinho de polícia, noutro tempo vizinho do
queixoso em Santa Teresa e agora morador do casarão da Rua do Resende —
homenzito magro, pobre de sangue, olhos fundos e boca devastada por uma
anodontia horrorosa.
Amâncio, que ainda não conhecia de
perto o que vinha ser “um processo” e estava longe de imaginar as tricas e os
ardis de que costumam lançar mão os litigantes para defender ou acusar um pobre
diabo que a justiça lhe atira às unhas, ficou pasmo, quando na ocasião de
assinar os atos e termos, leu a matéria do fato criminoso que lhe argüiam.
O alferes declarou em substância
que: “na noite de 16 de julho do ano tal, pela uma hora da madrugada, estando
em Santa Teresa, no sótão que então ocupava (o qual era místico ao sótão de uma
outra casa, onde viera a saber mais tarde, residira Amâncio), ouviu daí
partirem gemidos angustiados e uma voz fraca, de mulher, a dizer: Solte-me!
Solte-me! Não me force! E que, tomado de curiosidade, trepara-se a
espreitar para a casa do vizinho e, então, percebera distintamente que um homem
violentava uma rapariga; e que depois cessaram as vozes e só se ouviram
suspiros e soluços abafados.”
O tavarneiro depunha que: “naquela
mesma noite, estando casualmente de passeio em Santa Teresa, ouvira, ao passar
pela casa onde então residia João Coqueiro com a família uma altercação de duas
vozes, na qual se destacava uma de mulher que chorava, implorando piedade e
suplicando, por amor de Deus, que a não desonrassem.”
E tudo isso estava perfeitamente de
acordo com que já havia declarado Coqueiro. Dissera este que “nessa mesma noite
se recolhera às três horas da madrugada, pois estivera até então em Botafogo,
na companhia de seu colega Firmino de Azevedo, e que, ao entrar em casa ouvira
leves gemidos no quarto da irmã e, chamando por esta da varanda e
perguntando-lhe o que tinha, ela respondera que — não era nada, apenas havia
acordado às voltas com um pesadelo; mas que ele, Coqueiro, apesar dessa
explicação, ficou muito sobressaltado e ainda mais, quando, depois de acordar a
esposa, que dormia profundamente, e perguntar-lhe se houvera em casa alguma
novidade durante a sua ausência, lhe ouvira dizer que — até às nove horas da
noite podia afiançar que nada acontecera, mas que, daí em diante, não sabia,
visto que, sentindo-se àquela hora muito incomodada, se havia recolhido ao
quarto com seu filho César e, como usava água de flor de laranja para os seus
padecimentos nervosos, supunha ter essa noite medido mal a dose e tomado demais
o remédio, em virtude do estranho e profundo sono que se apoderou dela até o
momento em que o marido a chamara. — Por conseguinte, das nove horas da noite
as três da madrugada, Amâncio e Amélia haviam ficado em plena liberdade”.
E mais: “que, no dia seguinte àquela
noite fatal, Amélia não quis sair do quarto e que ele, indo ter com a irmã e
perguntando-lhe se sofria de alguma coisa e se precisava de médico, notou-lhe
certa perturbação, certo constrangimento e um grande embaraço na resposta
negativa que deu; e que ela, todas as vezes que era interrogada, fugia com o
rosto para o lado contrário e abaixava os olhos, como tolhida de vergonha; e
que, examinando-a melhor, lhe descobrira sinais roxos nos lábios, nas faces, e
pequenas escoriações no pescoço, nas mãos e nos braços; e que então, fulminado
por uma suspeita terrível, exigiu energicamente a revelação de tudo que se
passara na véspera durante a sua ausência, e que ela, empalidecendo, abrira a
chorar e, só depois de muito resistir, confessou que fora violentada por
Amâncio, mas que este prometera, sob palavras de honra, em breve reparar com o
casamento a falta cometida.”
Mme. Brizard confirmou o que disse o
marido a seu respeito.
Amâncio, porém, logo que foi
novamente interrogado, negou: 1.º — Que conhecesse as duas testemunhas
deponentes contra ele; 2.º — Que em tempo algum houvesse sucedido o que elas
afirmavam; 3.º — Que tivesse empregado violência contra Amélia; 4.º — Que
fizesse promessa de casamento a quem quer que fosse e debaixo de quaisquer
condições. E confirmou: 1.º — Que na noite, não de 16, mas de 20 de julho
daquele ano, estabelecera relações carnais com a queixosa; 2.º — Que nessa
noite, permanecendo de pé o conchavo de uma entrevista combinada entre eles,
Amélia, logo que a casa se achou de todo recolhida, apresentara-se-lhe no
quarto e aí ficara até às cinco horas da manhã, sem mostrar durante esse tempo
o menor indício de contrariedade, e parecendo, aliás, muito satisfeita e feliz
com o que se dera, como se alcançara a realização do seu melhor desejo; 3.º —
Que de tudo isso nada absolutamente teria sucedido, se Amélia não o perseguisse
com os seus repetidos protestos amorosos, com as suas provocações de todo o
instante, chegando um dia a surpreendê-lo à banca do trabalho com uma aluvião
de beijos! que não teria sucedido, se todos os de casa, todos! — o irmão, a
cunhada, ela, César, os fâmulos, não concorressem direta ou indiretamente para
aquilo, armando situações, preparando conjunturas arriscadas para ambos,
explanando ocasiões escorregadias, nas quais fora inevitável uma queda!
E Amâncio acrescentou, arrebatado
pela correnteza de suas palavras:
— Nada disso teria acontecido,
senhor juiz, se me não desafiassem, se me não sobressaltassem os instintos,
atirando-a todo o momento contra mim; se nos não empurrassem para o outro, com
insistência, com tenacidade, deixando-nos a sós horas e horas consecutivas:
fazendo-a enfermeira ao lado de minha cama, pespegando-a todos os dias, todas
as noites, diante de meus olhos, ao alcance de minha mãos — enfeitada,
perfumada, preparada, como uma armadilha, como uma tentação viva e constante!
O delegado observou discretamente
que Amâncio se excedia nas suas declarações; mas o auditório, na maior parte
formando de estudantes, protestava, atraído por aquela setentrional verbosidade
que enchia toda a sala.
Rebentavam já daqui e ali, algumas
exclamações de aplauso. E a voz do nortista, irônica e crespa no seu sotaque
provinciano, ainda se fez ouvir por alguns instantes, em meio do quente rumor
que se alevantava.
— Ah! Por Deus! por Deus, que bem longe
estava ele de imaginar um fim tão dramático àquela comédia! Bem longe estava de
imaginar que, depois de o escodearem por tantas maneiras; já o fazendo chefe de
uma família que não era a sua; já lhe exigindo a compra de uma casa, exigindo
vestidos, jóias, carros, dinheiro para a despesas diárias, dinheiro para a
botica, dinheiro para o açougue, para o médico, para tudo! — ainda se
lembrassem de estorquir-lhe a coisa única que até aí não haviam cobiçado — seu
nome! — o nome que herdara de seus pais!
— Bravo! Bravo! Muito bem!
E a matinada dos estudantes rebentou
com entusiasmo, sufocando os novos protestos que apareciam. O delegado
reclamava silêncio, e Amâncio, muito pálido, a testa luzente de suor, tinha os
braços cruzados, a cabeça baixa, numa atitude dramática de altiva resignação.
Findo o inquérito e dada a queixa, o
sumário caminhou sem mais incidente. Todavia, o provinciano, sempre que era
interrogado, deixava-se arrebatar como da primeira vez,
As testemunhas, com mais ou menos
tergiversação, reproduziam as suas patranhas; concederam-se os dias da lei ao
indiciado, para que juntasse a sua defesa escrita e os documentos; e, afinal,
subiram os autos à Relação, onde foi sustentada a pronúncia, e o processo
esperou que designassem a sessão em que Amâncio teria de entrar em julgamento.
XX
O acidente de Amâncio causou enorme
impressão nos seus conhecidos. Campos, ao receber a notícia, ficou fulminado e
atirou-se no mesmo instante para a casa de correção, sem mais se lembrar de que
nesse dia estava cheio de serviço até os olhos.
Seu primeiro ímpeto foi de
repreender severamente o culpado, verberar-lhe com energia a “ação indigna” que
acabava de praticar; mas pouco depois, veio-lhe uma grande comiseração.
“Porque, enfim, coitado, o pobre moço ainda era muito criança... naturalmente
fraco... e daí... Quem sabia lá o que teriam feito para o precipitar naquele
crime?...”
Sem saber por que, afigurava-se-lhe
que o papel de vítima cabia mais a Amâncio do que a Coqueiro. Este surgia-lhe
agora à imaginação, como que um Satanás de mágica que deixou de fugir de
repente, pelo alçapão do teatro, com a
sua túnica de bom velho peregrino. Seria até capaz de jurar que, a despeito do
disfarce, já de muito lhe havia bispado a saliência dos cornos diabólicos por
debaixo do religioso capuz. E pequeninos fatos, que até aí jaziam dispersos e
abandonados no seu espírito, vinham, acordado de repente, justificar semelhante
transformação.
— Sim! Já em certa época descobrira
em Coqueiro tais e tais sintomas de hipocrisia; ouvia-lhe tais e tais frases
que o fizeram desconfiar de seu caráter!... Não tinha que ver! — Já lá estavam
as tais pontas diabólicas a espetar o capuz!
E arrependia-se de não haver em
tempo desviado o pobre Amâncio daquele perigo: — Andara mal! Devia preveni-lo...
devia ter dado qualquer providência a esse respeito!...
E voltando-se contra si:
— Mas, onde diabo tinha eu esta cabeça, para não ver logo
que um homem — que se casa especulativamente com uma velha do feitio de Mme.
Brizard; um homem que consente à irmã receber presentes e mais presentes de um
estranho; um homem que especula com tudo e com todos, um maroto! — não se
mostraria tão agarrado ao rapaz, senão
com o propósito firme de lhe pregar alguma?!... Oh! andei mal! ande mal, como
um pedaço de asno!...
E apressou-se a socorrer a “pobre
vítima”.
— Ainda se houvesse a hipótese de
uma fiança... reconsiderava ele, já em caminho da detenção. — Mas qual! Dr.
Tavares, que lhe levara ao escritório a notícia do escândalo, dissera-lhe que
“o crime era inafiançável e que por conseguinte não se podia evitar a prisão!”
— Infeliz moço! infeliz moço! resmungava Campos, quase chorando. — Antes nunca
ele viesse ao Rio de Janeiro! — Que demônio hei de eu agora escrever à
família?... E a pobre D. Ângela! Coitada, como não ficará, quando, em vez do
filho, receber a notícia de tanta desgraça?!... Valha-me Deus!
E foi nesse estado que Campos chegou
à Casa de Correção da Rua do Conde.
Hortênsia não ficou menos
impressionada; ao saber do caso empalideceu extraordinariamente e começou a
tremer toda. Desde então se tornou apreensiva e nervosa de um modo lastimável;
tinha pesadelos, ataques de choro, ameaças de febres e um fastio enorme.
Carlotinha, que se achava nessa
ocasião de passeio em casa das Fonsecas de Catumbi, foi logo reclamada a lhe
fazer companhia.
Em casa do negociante quase se não
falava de outra coisa que não fosse o processo de Amâncio; parecia todos
empenhados com o mesmo ardor na sorte do “pobre rapaz”. Os caixeiros murmuravam
pelos cantos do armazém e os criados, sempre desejosos de merecer a atenção dos
amos, traziam da rua os comentários que ouviam ou que inventavam sobre o fato.
E o escândalo, como um líquido
derramado, ia escorrendo pelas ruas, pelos becos, penetrando por aqui e por
ali, invadindo as repartições públicas, os escritórios comerciais, as redações
das folhas e as casas particulares.
Os jornais começavam a explorá-lo.
Na Academia de Medicina e na Escola
Politécnica levantava-se partidos. João Coqueiro bem poucos colegas tinha de
seu lado; nem só porque lhe cabia na questão o papel, sempre mais antipático,
de agressor, como em virtude de seu gênio insociável e seco. Antigos
ressentimentos que pareciam esquecidos, ressurgiam agora, aproveitando a
ocasião para tirar vinganças; daí — opiniões mal intencionadas; comentários
atrevidos sobre a conduta de Amélia, sobre o caráter mercantil de Mme. Brizard,
sobre as velhas brejeirices do Rua do Resende. Uns se contentavam em fazer
conjecturas, outros, porém, tiravam conclusões, e alguns iam ainda mais longe,
contando fatos: “Em tal baile do Mozart”, dizia um quartanista de medicina,
“estava com a irmã de Coqueiro, dançara com ela duas valsas e desde então
ficara sabendo que força era a tal bichinha!...” E seguiam-se pormenores
degradantes e revelações descaradas.
Este, sustentava que João Coqueiro
sabia perfeitamente de tudo que lhe ia por casa e que era até o primeiro a
mercadejar com a irmã, como seria capaz de fazer com a própria mulher, se
houvesse um homem de bastante coragem para afrontar aquele dragão! Este outro
afirmava que ele não se lamberia com a proteção do carola Teles de Moura, se
não fossem as legendárias relações de Mme. Brizard com o falecido Cônego Muniz,
ex-redator de um jornal católico.
E choviam as insimulações, as
denúncias: “Coqueiro era um hipócrita, um jesuíta! — Fingia-se muito devoto na
escola para agradar ao professor Fulano; defendia a escravidão e a monarquia
para lisonjear Beltrano; — se entrava numa pândega com os companheiros, no
outro dia punha-se a dizer que só ele não se
embebedara e não fizera papel triste! — se lhe tocavam em mulheres, o
velhaco abaixava os olhos e ficava todo estomagado, e, debaixo da capa de
santarrão, ia fazendo das suas! — Era um cão! um tartufo!
Toda essa má vontade contra João
Coqueiro redundava em benefício de Amâncio, por quem alguns estudantes pareciam
sentir verdadeiro entusiasmo. Na Faculdade de Medicina não se encontrava um só
rapaz a favor daquele; ao passo que este tinha por si quase toda a Politécnica.
Nas duas escolas falava-se muito em “exploração, em roubo, em piratagem”. A
cifra dos bens de Amâncio, à medida que passava de boca a boca, ia tomando
proporções fabulosas, faziam-na de mil, quatro mil, dez mil contos de réis.
Paiva era agora requestado pelos colegas, como um boletim sanitário que traz os
últimos telegramas da guerra. Por saberem de sua intimidade com o réu e das
visitas cotidianas que ele fazia à casa de correção, não o largavam um só
instante; cercavam-no, cobriam-no de perguntas: “Como estava Amâncio, se triste,
abatido, desesperançado, ou se alegre, indiferente, risonho?!... E a tal
Amelinha dos camarões?... que fazia? como se portava no negócio? — ia visitar o
amante? escrevia-lhe? aparecia a alguém! comprazia-se com a desdita do preso ou
era solidária nos sofrimentos dele?”
Paiva respondia para todos os lados,
não tinha mãos a medir; os espíritos, porém, longe de se acalmarem com isso,
mais se sofregavam e acendiam. A impaciência tomava o lugar da curiosidade: um
sobressalto febril, de jogo, preava o coração dos estudantes; os ânimos
palpitavam na expectativa de um desfecho escandaloso. Previam-se, com arrepios
de gozo antecipado, o impudico espetáculo dos depoimentos, as brutais
declarações dos médicos e todo o cortejo descomposto de um júri de
desfloramento.
O artigo 222 do Código Criminal lá
estava pairando nos ares, cínico e espetaculoso como o flammeum de Nero
no banquete de Tigelino.
*
* *
Campos, entretanto, não podia
descansar com a idéia daquela desgraça. Abandonava tudo, esquecia os próprios
interesses para correr às bancas dos advogados, consultando, propondo defesas;
mais tonto, mais aflito do que se tratasse de salvar um filho.
A situação relacionara-o com Dr.
Tavares, o qual, um pouco em represália a Coqueiro por havê-lo despedido de
casa, sem as explicações devidas ao seu alto merecimento, e um pouco talvez na
esperança de lucros pecuniários, mostrava-se ferozmente empenhado na questão.
Nunca esteve tão verboso, tão cheio de entusiasmo e tão fecundo em citações
latinas. Viam-no, a cada passo, em todos os grupos da Rua do Ouvidor, berrando,
gesticulando sobre o assunto, como se tudo aquilo lhe tocasse diretamente.
— É incontestável, exclamara ele a quem lhe caía nas garras
— é incontestável que Amâncio foi vítima de uma arbitrariedade! E esse delegado
das dúzias que, sem mais nem menos, o mandou recolher à prisão — prevaricou!
Prevaricou, principalmente porque Amâncio nada mais fez do que desflorar mulher
virgem maior de dezessete anos, o que, perante a nossa lei, não constitui
crime! Por conseguinte, a prisão preventiva não devia ser efetuada!
E a sua voz, aguda e sistemática,
repetindo a frase friamente obscena da lei, causava no auditório o efeito
vexativo que nos produz um cadáver nu.
Hortênsia já se escondia no quarto,
quando o maçante se lhe pespegava em casa.
— Ah! Ele havia de mostrar a esses
advogadozinhos de meia tigela, os quais, mal surge um processo andam a
oferecer-se como protetores de qualquer uma das partes e acabam sempre por
comprometer a causa! — Ele havia de mostrar o que é dignidade e retidão na
justiça! E, se não tivesse outro meio escreveria uma série de artigos quer os
poria a todos na rua da amargura! Campos, havia de ver!
E, chegando-se para este, em atitude
misteriosa:
— Mas o senhor, justamente, é quem
me podia ajudar se quisesse!...
— Ajudá-lo?
— Sim! Nós dois, brincando, dávamos
cabo da panelinha de Coqueiro! Que julga? Sei tudo! Vi — com estes olhos! Sei,
melhor que ninguém, como se armou a cilada ao pobre moço!
Campos declarou que, em benefício de
Amâncio, estava pronto a fazer o que fosse preciso.
— Encarrega-se da publicação dos
artigos?! exclamou o advogado.
— Pago-os até a quem os fizer...
disse Campos — contanto que isso aproveite o rapaz! Todo o meu desejo é
livrá-lo o mais depressa possível! É uma questão de consciência!
— Pois então, meu caro amigo, pode
escrever que, ou o seu protegido não sofrerá o menor desgosto ou leva o diabo a
caranguejola desta justiça de borra! Sou eu quem o afirma! Amanhã mesmo
trago-lhe o primeiro artigo! Verá!
— Está dito!
Mas, nesse mesmo dia, quando Campos
se dispunha a sair de casa, para ir entender-se com Saldanha Marinho que
parecia resolvido a tomar a causa de Amâncio, entregaram-lhe uma carta.
Era de Coqueiro e dizia
simplesmente: “Para que V. S. não continue iludido e não se sacrifique por quem
não lhe merece mais do que o desprezo, junto remeto-lhe um documento que nos
torna quase companheiros de infortúnio e que lhe dará uma idéia justa do
caráter desse moço perverso, cuja intenção ao lado de sua família era desonrá-la
como desonrou a minha!”
O negociante desdobrou, a tremer, o
papel que vinha incluso e leu aquela célebre carta subtraída por Amélia alguns
tempos antes.
Não quis acreditar logo no que via
escrito. Uma nuvem passara-lhe diante dos olhos. “Mas não havia dúvida! Era a
letra de Amâncio, era a letra daquele miserável, por quem ele ultimamente
passara dias tão penosos!”
— Que ingratidão! E Campos que o
tinha na conta de um rapaz honesto!... Como vivera iludido!... Agora, dava toda
a razão a Coqueiro! Calculava já o que não teria feito o biltre na casa de
pensão!
As tais pontas de mefistofélico iam
desaparecendo da cabeça do irmão de Amélia para se revelarem na cabeça de
Amâncio.
— E Hortênsia?! gritou-lhe de
surpresa o coração.
—Ah! Por esse lado estava
tranqüilo!... Por ela meteria a mão no fogo! — Demais, o teor da carta bem
claro mostrava que o infame não conseguiria seus lúbricos desígnios! — no
desespero brutal palavras via-se indubitavelmente que a “virtuosa senhora”
fechara ouvidos ao malvado!
Mas, como se podia conceber tanta
perversidade e tanta hipocrisia em uma criatura de vinte e poucos anos?!... E
lembrar-se Campos de que, ainda naquela manhã, nem conseguira almoçar direito,
de tão preocupado que estava com o destino de semelhante cachorro!...
Agora, nem de longe queria ouvir falar de Amâncio ou do que
este se referisse. As suas boas intenções sobre o rapaz fugiram de um só vôo e
o coração esvaziou-se-lhe de repente, como um pombal abandonado.
Mas ainda lá ficou uma idéia branda
e compassiva que respeitava ao ingrato; ainda lá ficou uma mesquinha pomba
esquecida, que já não tinha forças para acompanhar a revoada das companheiras —
era a comiseração inspirada pela mãe do criminoso. Essa ficou.
— Que desgraça da infeliz senhora!
possuir um filho daquela espécie!
E Campos, com as mãos cruzadas
atrás, encaminhou-se lentamente para o segundo andar, em busca da mulher.
Não a acusou; não lhe fez de leve
uma pergunta de desconfiança; apenas disse, pondo-lhe a carta defronte dos
olhos:
— Mira-te neste espelho!
Hortênsia ficou lívida.
— Vê tu em que eu me metia!...
acrescentou ele. — Defender aquele miserável! Calculo quanto não te
incomodaste, minha santa!
E beijou-a na testa.
Ela sacudiu os ombros numa expressão
de confiança na própria virtude: — O marido a conhecia bem, para que pudesse
recear uma deslealdade de sua parte!
Logo, porém, que lhe escapou da
presença, sentiu uma grande vontade de chorar. Correu ao quarto, fechou-se por
dentro, e atirou-se à cama, abafando os soluços com os travesseiros que se
inundavam.
*
* *
Era um desespero nervoso, uma
estranha mágoa por alguma coisa que ela podia determinar o que fosse, mas que
só se abrandava com aquela orgia de lágrimas. Sentia gosto em vertê-las,
abundantes, fartas, como se as derramasse no fogo que a devorava.
Não obstante, ao receber aquela
carta, ainda lhe sobejara coragem para responder, sem afrouxar nos seus
princípios de honestidade; mais, agora, uma súbita transformação ganhava-lhe os
sentidos e parecia chamar-lhe à cabeça as ondas quentes de seu sangue
revolucionado.
— E quem não se revoltaria, pensava
Hortênsia — defronte da sorte tão contrária do lastimável moço, cujo grande
crime consistia apenas no muito amor que ela lhe inspirara?... Ah! Era isso
decerto o que a enchia de aflição e desalento! — era a desgraça dessa pobre
criatura, contra a qual tudo parecia conspirar como se um gênio fantástico e
mau a perseguisse! Que seria agora do mísero, sem a proteção de Campos?... Que
seria do desgraçado, sem esse último companheiro que lhe restava no meio de
tamanhas lutas?...
Violou uma donzela, é verdade! Mas
deveriam responsabilizá-lo por isso?... Seria ele o verdadeiro culpado ou
simplesmente uma vítima?... Falava-se tanto nos costumes de toda aquela gente
de Coqueiro!... rosnavam com tanta insistência sobre os planos, os cálculos, as
armadilhas tramadas ao dinheiro do rapaz!... De que lado estaria a razão?... E,
quando se revoltassem todos contra o infeliz, teria ela, Hortênsia, o direito
de fazer o mesmo?... Não lhe caberia grande parte na culpa que o acusavam? não
poderia ela, só ela, ter evitado aquilo tudo com uma simples palavra de
amor?... Por que, afinal o que lançou Amâncio nos braços da tal rapariga?...
Foi a paixão? foi a beleza? foi o talento? — não! foi unicamente o despeito!
foi o delírio, o desespero de um coração repudiado! — Sim, sim! Tudo aquilo
sucedera, porque ela o repelira; porque ela, a imprudente, fechara-lhe os
braços, quando o desgraçado, louco de paixão, lhe suplicava por tudo um bocado
de amor, um pouco de caridade!...
Antes tivesse cedido!...
E embravecia-lhe o pranto. — Antes
tivesse, porque, se assim fosse, o pobre moço, com certeza, não pensaria na
outra! — Mas o infeliz, coitado! viu-se aflito, enraivecido, sofrendo, sabe
Deus o quê! e sucumbiu, ora essa! sucumbiu por desalento, talvez por vingança,
talvez por não ter outro remédio! — Não! definitivamente sentia muito pena
daquele desditoso rapaz!
Amava-o agora. Seu espírito atrasado
e muito brasileiro descobria nele uma vítima de fatalidades amorosas, e esse
prisma romântico emprestava ao estudante uma irresistível simpatia de tristeza,
uma deliciosa atração de desgraça.
Hortênsia sonhava-o “pálido,
melancólico, desprezado no fundo de uma prisão, tendo por leito — um catre
abominável, por única luz — uma trêmula aresta do sol que se filtrava pelas
grades negras do cárcere”.
E aquela encantadora figura do
prisioneiro, com a cabeça languidamente apoiada nas mãos, os olhos úmidos de
pranto, os cabelos em desalinho, sobre a fronte — a penetrava toda, enchia-lhe
o coração, num aflitivo transbordamento de lágrimas.
— Oh! Aquela adorável figura de
vinte anos sofria tudo aquilo porque a amava! — porque uma paixão insensata lhe
entrara no peito; sofria porque Hortênsia recusara os beijos que o desventurado
lhe pedira com tanta febre e com tanta ansiedade.
Pobre moço! Pobres vinte anos! dizia
ela quase com as mesmas frases do marido. — Mas por que se haviam de ter
vistos?... por que se haviam de amar?...
E a mulher de Campos, que até aí não
sentira dificuldade em resistir às seduções do estudante, agora, fascinada pela
dramatização daquela catástrofe que o heroificava, via-o belo, indispensável,
grande na sua situação especial, conhecido das mulheres, temido e odiado dos
homens, vivendo na curiosidade do público, percorrendo todas as fantasias,
sobressaltando todos os corações.
E o contraste da sofredora condição
em que o via presentemente com as atitudes brilhantes que ele outrora estadeara
naquela própria casa, quando, de taça em punho, espargia a sua bela palavra
quente e sonora, prendendo a atenção de velhos e moços, dominando, conquistando
— esse contraste ainda mais a arrebatava para ele com toda a violência de uma
alucinação.
Não mais se possui — um desgosto
mofino apoderou-se dela; ficou insociável e muito triste; entregou-se a longas
leituras místicas, acompanhando com interesse amores infelizes, lentos
martírios da alma, que só terminavam no esquecimento da morte ou do claustro.
Decorou entre lágrimas a carta do réu.
— Como ele me amava! dizia soluçando
— como ele sofria, quando arrancou do coração estas palavras, ainda quentes do
seu sangue!
De sorte que, ao lhe comunicar o
marido a resolução de escrever a Amâncio, remetendo-lhe a terrível carta
denunciadora e prevenindo-o de que lhe retirava a sua amizade, ela, com uma
agonia a sufocá-la, resolveu também escrever ao moço uma carta que servisse, ao
menos, para suavizar o golpe da outra.
*
* *
O estudante, no dia seguinte,
recebia na prisão as duas cartas.
Não se pode determinar qual delas o surpreendeu
mais; notando-se, porém, que a de Campos produziu completo o efeito a que se
propunha; ao passo que a outra, em vez de o consolar, enraiveceu-o.
— Pois aquela mulher ainda não
estava satisfeita e queria insistir nas suas provocações?... Ela talvez fosse a
culpada única de tudo que de mau lhe acontecera! — A coisas não tomariam
decerto o mesmo caminho, se a maldita não lhe fizesse as negaças que fez e não
lhe acordasse desejos que se não podiam saciar! — E agora?... além de perder a
amizade de Campos, justamente quando mais precisava dela, havia de suportar a
prosa lírica da Sr.ª D. Hortênsia!... “Que estava arrependida, que o adorava,
que seria capaz de tudo por lhe dar um momento de ventura e que o esperava de
braços abertos, logo que ele se achasse em liberdade.”
Fosse para o inferno com as suas
adorações! Diabo da pamonha! “Que o esperava de braços abertos!” Era quanto
podia ser! Aquilo até lhe cheirava a debique! Aquilo parecia um insulto a sua
desgraça, a sua terrível posição!
E chorava, o infeliz, chorava como
se quisesse vingar nas lágrimas.
Depois da carta de Hortênsia, a vida
se lhe fazia mais escura e mais apertada entre as paredes da sua prisão. Quase
que já não podia agüentar a presença de Paiva, de Simões e de alguns outros
colegas que lá iam. No meio das sombras, progressivamente acentuadas em torno
dele, só a imagem tranqüila e doce de sua mãe permanecia com a mesma
consoladora suavidade; sempre aquela mesma carinhosa figura de cabelos brancos,
aquele corpo fraco, vergado e tão mesquinho que parecia pequeno demais para
sustentar tamanho amor.
— Minha mãe! Minha santa mãe!
exclamava o preso, quando seu espírito, esfalfado pelas desilusões, precisava
remancear ao abrigo morno e quieto de um bom pensamento.
— Minha santa mãe!
XXI
Três meses depois, a Escola
Politécnica e a Escola de Medicina apresentavam o quente aspecto de um sedição.
— Amâncio fora absolvido.
Os estudantes formigavam assanhados
como se acabassem de ganhar uma vitória. O nome do nortista era repetido com
transporte; um grupo enorme de rapazes, capitaneado pelo Paiva Rocha e pelo
Simões, aguardava o colega à saída do júri, para o conduzir em triunfo ao
Hotel Paris, onde havia à sua espera um almoço e a banda de músicas
alemães.
Fora muito extenso o último júri, quarenta
horas seguidas; a defesa de Amâncio principiou à meia-noite e acabou às seis da
manhã. O advogado, que “estava feliz como nunca”, ainda aproveitou
engenhosamente essa circunstância para afestoar o remate de seu pomposo
discurso: “Não queria que o rei dos astros se envergonhasse com aquele nojento
espetáculo de pequenas misérias! Não queria que o Sol tivesse de corar defronte
de semelhante tolina! Pedia que se varressem de pronto as consciências; que se
descarregassem os espíritos, para que limpamente recebessem a esplêndida visita
da aurora! — Aí chegava o dia! aí chegava a luz, enxotando os fantasmas
tenebrosos da noite e precipitando-os em debandada pelo espaço!
“Pois bem! Pois bem, meus senhores!
Se ainda permanece nos vossos espíritos alguma sombra, alguma dúvida, alguma
opinião vacilante sobre a inocência daquele pobre mancebo... (e mostrava
Amâncio com um gesto supremo) — que essa dúvida se apague! que essa opinião
vacilante se resolva na luz que nos assalta! que essa última sombra da noite se
retire espavorida de envolta com as últimas sombras da noite que foge!”
— Bravo! Bravo! Apoiado! Muito bem!
E, no conflito da luz fresca, que entrava pelas janelas do
edifício, com a luz vermelha do gás que amortecia, as palavras retumbantes do
orador tomavam uma expressão de trágica solenidade. E os rostos lívidos e
tresnoitados iam se esbatendo nas sombras da sala, como pálidas manchas brancas
que se dissolvem.
Ninguém saíra antes de terminar a
defesa; um empenho nervoso os prendia ali; as palavras do advogado eram
aplaudidas com febre — todos queriam a absolvição de Amâncio.
Às nove horas da manhã a cidade
parecia ter enlouquecido. Interrompeu-se o trabalho; os empregados públicos
demoravam-se na rua; os cafés enchiam-se com a gente que vinha do júri. À porta
das redações dos jornais não se podia passar com o povo que se aglomerava para
ler as derradeiras notícias do processo, pregadas na parede à última hora.
Por toda a parte discutia-se a
brilhante defesa de Amâncio de Vasconcelos: “Estivera magnífica! —
Surpreendente! — Uma verdadeira obra-prima! uma glória para o advogado Fulano!”
Repetiam-se frases inteiras do imenso discurso; faziam-se comparações: “Maître
Lachaud não se sairia melhor!”
A Rua dos Ourives estava quase
intransitável com a multidão que se precipitava freneticamente para ver sair o
absolvido. À porta do júri, o tal grupo de estudantes capitaneado pelo Paiva,
esperava-o formando alas ruidosas. Tudo era impaciência e sofreguidão.
Afinal, apareceu o homem. Vinha
muito pálido e um pouco mais magro.
Ouviu-se então um rugido formidável
que se prolongava por toda a rua. Os chapéus agitaram-se no ar.
— Viva Amâncio de Vasconcelos!
— Vivô! repetiram os colegas.
— Morram os locandeiros!
— Morram os piratas.
Amâncio passava de braço a braço,
afagado, beijado, querido, como uma mulher formosa.
Mas Paiva e Simões apoderaram-se
dele, e, seguidos pelo enorme grupo de estudantes, puseram-se a caminho para o
hotel, entre as contínuas exclamações de entusiasmo, que rompiam de todos os
pontos.
Entraram na Rua do Ouvidor. Por onde
passava o bando alegre dos rapazes, um rumor ardente, ancho de vida, enchia a
rua num delírio de vozes confundidas. As portas das casas comerciais
atulhavam-se de gente; pelas janelas dos dentistas, das costureiras e dos
hotéis, surgiam com o mesmo alvoroço, cabeças femininas de todas as graduações:
— senhoras que andavam em compras; raparigas que estavam no trabalho,
professoras de piano, atrizes, cocotes; e, em todas igual sorriso de pasmo,
olhares incendiados, bocas entreabertas a balbuciar o nome de Amâncio. Braços
de carne branca apontavam para ele num tilintar nervoso de braceletes.
— É aquele! diziam. — Aquele,
moreno, de cabelo crespo, que ali vai!
— Mamãe! mamãe! gritavam doutro lado
— venha ver o moço rico que saiu hoje da prisão!
E flores desfolhadas choviam-lhe
sobre a cabeça, e os lenços de renda borboleteavam e iam cair-lhe aos pés, como
uma provocação, e olhares de amor entornavam-se das janelas entre o ruidoso e
pitoresco cata-sol das mulheres em grupo.
E Amâncio, tonto de prazer caminhava
no meio dos amigos, abraçado a um grande ramo de flores naturais, que um preto
lhe acabava de entregar e em cuja larga fita pendente via-se o nome dele em
letras de ouro. Era uma lembrança de Hortênsia.
E o bando crescia sempre. O Largo de
São Francisco já estava cheio e ainda a Rua do Ouvidor não se tinha esvaziado.
Ao passar pela Escola Politécnica,
ouviram-se estalar foguetes e os vivas a Amâncio e à Liberdade reproduziram-se
com mais veemência. Os músicos alemães responderam da porta do hotel com a
Marselhesa. — A vertigem chegou então ao seu cúmulo, inflamada pela vibração
corajosa dos instrumentos de metal. A Rua do Teatro, o Rocio e todos os becos e
travessas circunvizinhas já se achavam tolhidas de povo; as janelas do Hotel
Paris destacavam-se embandeiradas e cheias de gente, como nos dias de
carnaval. E aquela festa, ali, no coração da cidade, tomava um largo caráter de
manifestação pública.
Já ninguém se entendia com o
estardalhaço das vozes, da música e dos foguetes. Amâncio, carregado em triunfo
nos ombros dos colegas, entrou no hotel ao som do grande hino, chorando de
comoção e agitando freneticamente o seu velho chapéu de feltro desabado e
boêmio.
Francesas de cabelo amarelo desciam
com espalhafato ao primeiro andar de Paris, para ver de perto o “tipo da
ordem do dia”, o belo moço de que todo o Rio de Janeiro se ocupava naquele
momento — o herói daquele romance de amor que havia meses apressava tantos
espíritos e sobressaltava tantos corações.
Ele, que até aí parecia sufocado e
não dera palavra, como que despertou as primeiras notas da Marselhesa e
recobrou de súbito a sua equatorial verbosidade de brasileiro nortista;
acederam-se repentinamente as faces: os olhos luziram-lhe como duas jóias, e a
sua voz era já segura e vibrante quando ao teto voaram as primeiras rolhas de
champanha.
E, de pé, dominando a extensa mesa
coberta de iguarias, a taça erguida ao alto, o corpo torcido em uma posição
teatral, desencadeou o seu verbo apaixonado e brilhante.
*
* *
Entretanto, a essas horas, Coqueiro
se dirigia tristemente para casa. As mãos cruzadas atrás, a cabeça baixa, as
sobrancelhas franzidas, como o ar trágico de um herói vencido.
Vira e ouvira tudo!
Oculto num botequim, vira passar o
bando fogoso dos colegas que festejavam o amante de sua irmã; ouvira os “morras
ao locandeiro! ao pirata!” ouvira as galhofas, os risos de escárnio, que lhe
atiravam como a um inimigo de guerra. E uma raiva negra, um desespero surdo e
profundo entraram-lhe no corpo que, nem um bando de corvos, para lhe comer a
carniça do coração. Um duro desgosto pela vida o levava a pensar na morte,
revoltado contra o mundo, contra a sociedade, contra sua família, contra a hora
em que nascera.
— Maldito fosse tudo isso! Malditos
seus pais! sua pátria! suas convicções! Malditas as leis todas que regiam
aquela miserável existência!
Chegou lívido, sombrio, com os
lábios a tremer na sua comoção mortífera. Um silêncio fúnebre enchia a casa;
dir-se-ia que acabava de sair dali um enterro. Amélia chorava fechada no quarto
e Mme. Brizard, estendida na preguiçosa, tinha a cabeça entre as mãos e
meditava soturnamente. Sobre a mesa o almoço há horas esfriava, esquecido e às
moscas.
É que já sabiam do terrível desfecho do júri: — Amâncio
estava livre, senhor de si por uma vez! podendo ir para a província quando bem
quisesse, porque, além de tudo, nem o dinheiro lhe faltava!...
— E eles que ali ficassem, a roer um
chifre! — sem recursos, e obrigados a ocupar aquela casa, que era o preço de
sua desonra comum.
— Mas, o culpado foste tu e tu!
berrou de supetão Mme. Brizard, erguendo-se da cadeira com um movimento de
cólera. — Se me tivesse ouvido, não ficarias agora com essa cara de asno. “Quem
tudo quer, tudo perde!” Foi bem-feito, para que, de hoje em diante, preste mais
atenção ao que te digo! — Agora — pega-lhe com trapos quentes!
O marido deixou cair a cabeça sobre
o peito e quedou-se a fitar o chão. Mme. Brizard, depois de voltear agitada
pela sala, acrescentou:
— Se fosse o único a sofrer as conseqüências
de tuas cabeçadas — vá! Mas é que nós todos temos de as agüentar! Agora só
quero ver como te arranjar! onde vais tu descobrir dinheiro para sustentar a
casa! É preciso ser muito cavalo, para ter a fortuna nas mãos e atirá-la pela
janela fora! Agora é que eu quero ver! Anda!
Vai arrajnar hóspedes! Vê se descobres um novo Amâncio!ou quem sabe se
contas viver do que der o cortiço da Rua do Resende?! Fizeste-a bonita; os
outros que amarguem!...
Calou-se por um instante, arquejando, mas repinchou logo:
— Olha! Por estes três meses já
podes avaliar o que não será o resto! — Não há mais um punhado de farinha em
casa; a companhia já ontem nos cortou o gás, porque não lhe pagamos o trimestre
vencido; o último criado que nos restava foi-se há mais de quatro semanas,
dizendo aí o diabo; só nos resta a mucama, que é aquele estafermo que sabemos;
o Eiras reclama todos os dias do tratamento de Nini! — E tu!.. tu! — sem um
emprego, sem um rendimento, sem nada! — Então?! E pôs as mãos nas cadeiras, com
um riso abominável de ironia. Então?! Estamos ou não estamos arranjadinhos?!...
O que te afianço é que não me sinto nada disposta a tornar ao inferno da
existência que curti na Rua do Resende! Vê lá como te arranjas!
Coqueiro fugiu para o quarto, sem
responder à mulher. “Tinha medo de fazer um despropósito!”
— Que miséria de vida, a sua!
refletia ele. — Nem ao menos a própria família o consolava! Por toda a parte a
mesma perseguição, o mesmo ódio, a mesma luta! — Que seria de si?! que fim
poderia ter tudo aquilo?! Onde iria cavar dinheiro para manter os seus?! — E as
custas do processo, e as despesas que fizera?! — O alferes e o homem da venda
exigiam o pagamento do que depuseram contra Amâncio a quem mal conheciam de
vista; aquele o ameaçava com um escândalo, se Coqueiro não lhe “cuspisse ali os cobres”; o outro o abocanhava pela
vizinhança, fazendo acreditar que o devedor era, nem só um caloteiro como um
bêbado!
E não havia dinheiro para nenhuma
dessas coisas!
— Um inferno! um verdadeiro inferno!
— Os moradores da Rua do Resende há que tempos que não pingavam vintém; —
Damião estava já pelos cabelos para arriar a carga: “Não podia mais aturar
semelhante corja!” dizia e contava até que um dos inquilinos lhe tentara chegar
a roupa ao pelo por questões de aluguéis.
E Coqueiro viu arrastar-se todo
aquele mau dia na mesma inferneira.
À noite, foi preciso acender velas
em substituição do gás suprimido. Amélia não comera desde a véspera e
queixava-se agora de muitas dores na cabeça, náuseas, tonturas de febre e um
fastio mortal; apareciam-lhe por todo o corpo pequenas manchas roxas. Mme.
Brizard só abria a boca para fazer novas recriminações e praguejar; na sua
cólera chegara a dar alguns tabefes no
filho, e este rabujava a um canto, embesourado e casmurro.
— Antes morresse! antes, mil vezes
antes! repisava Coqueiro, sentindo-se esmagar debaixo daquele desmoronamento. —
Que faria agora de uma irmã prostituída, e de uma mulher desesperada?!...
E as horas arrastavam-se pesadas
como cadeias de ferro. A casa mal esclarecida tinha uma tristeza lúgubre de
igreja deserta.
Afinal, Mme. Brizard foi para a cama
com o filho, Amélia parecia mais tranqüila; só Coqueiro velava, só ele, com o
seu desespero a triturá-lo por dentro.
Não podia sossegar um minuto — era
deixar-se ir consumindo pelo sofrimento, até que a dor cansasse de doer e os
tais bichos negros do coração lhe comessem o último bocado de carniça. Sentia,
porém, uma espécie de volúpia pungente em reler as cartas anônimas que lhe
enviaram durante o dia; encolerizava-se com isso, mas não podia deixar de as
ler, como quem não resiste a tocar numa parte dolorida do corpo.
Três, nada menos do que três cartas
anônimas, e cada qual a mais insultuosa e mais perversa; não lhe poupavam coisa
alguma: — a vergonha real da situação, o ridículo que havia de o acompanhar
para sempre, a ojeriza que o público lhe votava espontaneamente; tudo lá
estava; tudo vinha descrito, com uma minuciosidade cruel, e com pequeninas
considerações ultrajantes, com o terrível cuidado de quem se vinga.
E, para o efeito ser mais completo,
falavam intencionalmente, com entusiasmo, nas conquistas e nas simpatias do
outro, do querido, do “feliz”! Não se esqueciam da menor circunstância
lisonjeira para Amâncio: — o modo pelo qual o receberam ao sair da prisão — os
vivas — as flores desfolhadas sobre ele — os oferecimentos — as declarações de
amor — os ramilhetes que lhe deram — os brindes; tudo, tudo fora metido ali,
para ferir, para danar, para moer.
Reconheceu logo que uma das cartas
era de Lúcia; as outras deviam ser de seus próprios colegas ou, quem sabe?...
de algum velho inimigo já esquecido por ele! — Tanta gente saíra despeitada da
sua casa de pensão!... Ser credor é ser algoz!... exigir pagamento de uma conta
a quem não tem dinheiro é exigir a sua inimizade eterna! Além disso, com os
seus modos secos e retraídos ele sempre fora tão pouco estimado na academia!...
não tinha, como o “prosa” do Amâncio, gênio para agradar a todo o mundo; não
tinha as lábias do outro: não sabia fazer “discursatas e falações” a propósito
de tudo!... Era um infeliz, que todos evitavam — um leproso! um lazeiro!
E a dor, sem se resolver nas
lágrimas que lhe faltavam, encaroçava-se-lhe por dentro, numa grande aflição.
— Agora, como se apresentar nas
aulas?!... Com que cara suportar o riso sarcástico dos colegas?!... Como
resistir à curiosidade brutal do público que o esperava impaciente por
cuspir-lhe no rosto?!... Como passar debaixo daquelas mesmas janelas que
despejaram flores sobre à cabeça de
Amâncio?!... — Amâncio! o homem que dormiu meio ano com sua irmã!...
E maquinalmente foi à secretária e
tirou o velho revólver que fora do pai.
Que estranhas recordações à vista
daquela arma! daquela arma que na sua infância o fizera chorar tantas e tantas
vezes!... Belos tempos que não voltam!...
E contemplava distraído os bonitos
do revólver — os arabescos de prata e madrepérola com o brasão do velho
Lourenço Coqueiro em ouro.
Rica peça! Artística, bem
trabalhada; não se lhe enxergava sinal de ferrugem, nem desarranjo nas molas. —
Também, que havia nisso para admirar se o dono tinha por ela uma espécie de
fetichismo e andava sempre a bruni-la e a azeitá-la? Era o único objeto que lhe
falava ainda das extintas grandezas do pai: Quantas vezes não ouvira ele
cavaquear o pobre velho sobre as alegorias daquele rico brasão!... E quantas
vezes, a tremer de medo, não o vira descarregar aquela mesma arma contra uma
laranja que um escravo segurava com a mão erguida!
— Ah! bem que se recordava de tudo
isso!... Parecia-lhe ouvir ainda gritar o pai, quando lhe metia à força o
revólver entre os dedos. “Não! Isso agora hás de ter paciência! tu, ao menos,
ficarás sabendo dar um tiro!
E, todavia, não fiquei sabendo...
balbuciou o filho de Lourenço, a experimentar nos lábios o contato frio do cano
de aço. — Não fiquei sabendo dar um tiro, que, se o soubesse, acabaria aqui
mesmo com esta vida estúpida e miserável!...
Se eu tivesse ânimo... pensou ele,
estremecido com a idéia da morte — amanhã encontrariam o meu cadáver e não
ficariam naturalmente fazendo de mim um juízo tão triste e tão ridículo! —
Talvez até chegassem a amaldiçoar o outro e erguessem em volta de meu nome uma
legenda respeitosa e compassiva...
Foi à gaveta, havia lá algumas
balas, carregou a arma.
— Não há dúvida, é a melhor coisa
que eu poderia fazer... reconsiderava Coqueiro, imóvel, a olhar indeciso para o
revólver que tinha na mão.
Mas era bastante chegá-lo contra a boca ou contra um dos ouvidos, para
que os seus dedos logo se paralisassem e para que um arrepio muito agudo lhe
corresse pela espinha dorsal.
Faltava-lhe a coragem.
Duas vezes ergueu-o à altura da
cabeça, duas vezes o desviou, com as mãos trêmulas e o corpo entalado numa
agonia insuportável.
— É horrível! resmungava ele. — É
horrível!
Ia principiar de novo as tentativas,
quando da rua uma forte matinada lhe prendeu a atenção. Um grupo se aproximava,
entre cantarolas e algazarras de risos.
Eram dez ou doze dos últimos
convivas de Amâncio; haviam passado todo o dia e grande parte da noite a
folgazar no Paris; muitos, como o autor da pândega, lá ficaram
prostrados pela bebida, mas aqueles tiveram a fantasia de um passeio matinal ao
Jardim Botânico e meteram-se barulhosamente no bonde.
Já no Largo do Machado, um deles,
um, que de há muito trazia Coqueiro atravessado na garganta, lembrou que seria
mais divertido apearem-se ali e seguirem a Rua das Laranjeiras. “A casa do
velhaco era a alguns passos — bem lhe podiam cantar uma serenata debaixo das
janelas!”
A idéia foi bem acolhida, e a
ruidosa farândola despejou-se pelo caminho das Laranjeiras num hilaridade
pletórica de bêbados.
Só pararam defronte da porta de João
Coqueiro. Através das vidraças e das cortinas de uma das janelas, viram
transparecer dubiamente a trêmula morte-cor de uma luz avermelhada.
— Estás dormindo, ó Joãozinho dos
camarões?! berrou cambaleando o que tivera a idéia daquela romaria. — Dorme,
dorme! é assim que fazem os sem-vergonhas de tua espécie! — Vendem a irmã e
põem-se a descansar no colchão que lhe deixou o amante!
Seguiu-se um estrupido de gritos e
risos:
— Fora! fora!
— Fiau, fiau!
— Larga essa casa que não é tua,
gritou aquele. — É da outra! Ganhou-a com o suor de seu rosto! — Sai, parasita!
— Sai! Sai!
E espoucavam gargalhadas no grupo, e
os guinchos sibilantes iam até o fim da rua: — Fora.
— Fora!
— Fiau!
— Sai, cão!
— Deixa a casa, que não é tua! —
Fora!
— Fora o cáften!
— Fiau!
Os vizinhos chegavam às janelas,
vozeando furiosos contra semelhante berraria.
— É que o sucede a quem mora perto
de um João Coqueiro! bradou um da turma.
— Quem mora junto ao chiqueiro sente
o fedor da lama! gritou um segundo.
— Queixe-se à Câmara Municipal!
acudiu outro.
E formidável matação[2]
foi de encontro à vidraça iluminada do chalé de Amélia.
Um dos vizinhos apitou e outro
despediu um jarro de água sobre os desordeiros.
Ouviu-se logo o estardalhaço
impetuoso dos gritos, das descomposturas e do crepitar dos vidros que se
partiam sob um chuveiro de pedras.
— Morra o infame! bramia a malta, já
de carreira para o Largo do Machado. — Morra o cáften!
*
* *
João Coqueiro presenciara tudo
aquilo, grudado a um canto da janela, mordendo os nós da mão, os olhos
injetados, o sangue a saltar-lhe nas veias.
— Oh! Era demais, pensava ele
desesperado. — Era demais tanta injúria! — Se Amâncio estivesse ali, naquela
ocasião, por Deus, que o estrangulava!
Abriu a janela. O dia repontava já,
mas enevoado e triste. Não havia azul; céu e horizontes de neblinas, formavam
uma só pasta cor de pérola, onde vultos cinzentos se esfumavam.
O homem da venda abria também as
suas portas. Coqueiro cumprimentou-o, ele respondeu com um risinho insolente,
acompanhado de pigarro.
Uma caleça rodejava lentamente ao
largo da rua, o cocheiro vergado sobre as rédeas, o seu casquete sumido na gola
do capotão. Coqueiro fez-lhe sinal que esperasse, embrulhou-se no sobretudo,
enterrou o chapéu na cabeça, meteu o revólver no bolso e saiu.
— Hotel Paris! disse ao da
boléia, atirando-se no fundo da carruagem. O cocheiro endireitou-se sobre a
almofada, espichou o pescoço, sacudiu as rédeas e os animais dispararam,
assoprando grossamente contra o ar frio da manhã.
*
* *
Coqueiro enfiou pela escadaria do
hotel.
Estava tudo deserto e silencioso;
apenas, no salão principal, viam-se um preto velho e um caixeiro desdormido
que, entre bocejos, se dispunha a principiar a limpeza da casa.
Dir-se-ia que ali passara um
exército de bêbados. Por toda a parte vinho derramado, copos partidos, cacos de
garrafa e destroços do vasilhame que servira à mesa; o oleado do chão
escorregava com uma crusta gordurosa de restos de comida e vômito pesinhado; um
espelho ficara em fanicos[3]
e um aquário desabara, fazendo-se pedaços e alagando o pavimento, onde
peixinhos dourados e vermelhos jaziam, uns mortos e outros ainda estrebuchando.
O preto, de gatinhas, em manga de
camisa e calças arregambiadas, procurava desencardir o sobrado com um esfregão
de coco, que ia embeber ao canto da sala numa tina cheia d’água; enquanto o
caixeiro, a jogar o corpo, muito esbodegado, erguia o que estava pelo chão e empilhava
as cadeiras sobre as mesinhas de mármore, ao comprido das paredes.
— Onde é o quarto do Amâncio?
perguntou-lhe João Coqueiro.
— Amâncio?... repetiu aquele, emperrando mo meio da sala
para fitar o interlocutor com um olhar morto de sono! — Ah! bocejou. — O tal
moço do pagode de ontem?...
Coqueiro sacudiu a cabeça
perpendicularmente.
— É cá, no número dois, mas escusa
bater, que ele aí não está. Ficou lá em cima, no onze, com a Jeanete.
E, voltando ao serviço:
— Se ele não é coisa de pressa, o
melhor seria procurá-lo mais logo... Deve estar agora ferrado no sono, que
levou na pândega até as quatro e meia!...
Coqueiro voltou-lhe as costas e
dirigiu-se para o segundo andar. Bateu à porta do n.º 11.
Ninguém respondeu.
Tornou a bater.
Bateu de novo.
— Qui est lá!... perguntou na
rouquidão do estremunhamento uma voz de mulher.
—
Preciso falar a esse rapaz que aí está, o Amâncio!...
Ouviu-se um farfalhar de panos,
chinelas arrastaram, e em seguida a porta abriu-se cautelosamente, mostrando
pela fisga um rosto gordo, de olhos azuis.
— Qui est lá!...
Mas Coqueiro, em vez de responder,
afastou a porta com um murro e atirou-se para dentro do quarto; ao passo que
Jeanete, esfandogada de medo, desgalgava em fralda o escadão que ia ter ao
primeiro andar.
Amâncio, em uma cama muito cortinada
e muito larga, dormia profundamente, de barriga para o ar, pernas abertas e
braços atirados sobre a desordem das colchas e dos lençóis. No chão, ao lado do
escarrador, um travesseiro caído, e em torno, por todo o desarranjo da alcova,
roupas espalhadas.
Coqueiro olhou um instante para ele,
sem pestanejar; depois, sacou tranqüilamente o revólver da algibeira e deu-lhe
um tiro à queima-roupa.
Amâncio soltou um ai.
A segunda bala já não o pilhou, mas
o irmão de Amélia, abstrado, pateta, continuava a disparar os outros tiros até
que a arma lhe caiu das mãos.
Nisto, como se acordasse de uma
vertigem, saiu a correr tropeçando em tudo. No primeiro andar uma polícia
lançou-lhe as garras aos cós das calças e o foi conduzindo a sua frente, sem
lhe dizer palavra.
Entretanto, Amâncio despertou com um
novo gemido e levou ao peito as mãos que se ensoparam no sangue da ferida.
Olhou em torno, à procura de alguém; mas o quarto estava abandonado.
Então, fechou novamente os olhos
estremecendo, esticou o corpo — e um palavra
doce esvoaçou-lhe nos lábios entreabertos, como um fraco e lamentoso
apelo de criança: — Mamãe!...
E morreu.
XXII
Começou logo a reunir povo na porta
do hotel. Faziam-se grupos; os repórteres andavam num torniquete; viam-se
Piloto por toda a parte, irrequieto, farisqueiro; e o fato ia ganhando
circulação, com uma rapidez elétrica. Pânico, sobressalto quebrava
violentamente a plácida monotonia da Corte; mulheres de toda a espécie e de
todas as idades, empenhavam-se com a mesma febre na sorte dramática do infeliz
estudante, e Coqueiro, alado pela transcendência de seu crime, principiava a
realçar no espírito público, sob a irradiação simpática e brilhante de sua
corajosa desafronta.
Às dez horas da manhã já não se podia entrar facilmente no
necrotério, para onde fora, sem perda de tempo, conduzido o cadáver de Amâncio,
entre um cortejo imenso de curiosos.
Choviam as interpretações, os
comentários sobre o fato; todos queriam dar esclarecimentos, explicar os pontos
mais obscuros do grande sucesso. “A bala atravessara-lhe as regiões torácicas e
fora cravar-se num osso da espinha”, afirmava um homem alto, elegante, de
cabelos brancos, cujo ar empantufado
prendia a atenção demais.
Esse homem, que alguns tomavam por
um médico, outros por qualquer autoridade policial; outros por um jornalista,
outros por um dos professores da faculdade onde estudava o defunto, não era
senão Lambertosa, o ilustre gentleman da casa de pensão da Mme. Brizard.
E, sempre distinto, sempre viajado,
pronto sempre a explicar as coisas cientificamente, agitava a bengala afagando
a barriga bem abotoada, e de pernas abertas, pescoço duro, ia estadeando a sua
“grande intimidade” com o célebre morto; citando fatos, contando magníficas
anedotas que se deram entre os dois.
— Ah! Era um moço de invejável
talento! — Boa memória, compreensão fácil e gosto cultivado. Para a retórica
ainda não vi outro... Não, minto! — em Londres, em Londres, confesso que
encontrei um outro nessas condições!...
E punha-se a falar de Londres, e
passava depois à França, à Itália, à Europa inteira, e chegaria até aos pólos,
se alguém quisesse acompanhá-lo na viagem.
Muitos outros dos antigos inquilinos
de Mme. Brizard também apareceram no necrotério. Lá esteve a pálida Lúcia,
cheia de melancolia, a fitar o cadáver, em silêncio, com os seus belos olhos
alterados pelo abuso das lunetas. Agora morava ela com o seu Pereira em
Niterói, numa casa de pensão de um italiano, educador de cães e macacos. Era a
terceira que percorria depois da Rua do Resende.
Lá esteve, de passagem, o Fontes,
com as suas amostras de renda debaixo do braço; lá esteve o triste Paula
Mendes, para fazer a vontade da mulher, que exigira ver a “vítima daquele
grande cão”!; lá esteve o Dr. Tavares que parecia tomar cada vez mais interesse
no “escandaloso assassinato”. E, quem diria? até lá esteve o esquisitão do
Campelo que muito dificilmente se abalava com as questões alheias.
Por toda a cidade só se pensava no
“crime do Hotel Paris”; os jornais saíam carregados de notícias e
artigos sobre ele, esgotavam-se as edições da defesa e da acusação de Amâncio;
vendia-se na rua o retrato deste em todas as posições, feitios e tamanhos;
moribundo, em vida, na escola, no passeio. E tudo ia direto para os álbuns,
para as paredes e para as coleções de raridades.
Hortênsia, quando lhe constou o
terrível desfecho daquele episódio que, na sua fantasia romântica, tomava as
proporções de um poema, caiu sem sentidos e ficou prostrada na cama por uma
febre violenta. Durante esse tempo, o marido procurava na prisão o assassino
para lhe oferecer os seus serviços e pôr à disposição dele o dinheiro de que
precisasse. “Coqueiro podia ficar tranqüilo — nada havia de faltar à família,
nem a pensão de Nini.”
E foi em pessoa dar as providências
para o enterro do outro.
O funeral atingiu dimensões
gigantescas: parecia que se tratava da morte de um grande benemérito da pátria.
Por influência do advogado de
Amâncio, que era político e bem relacionado, compareceram muitos figurões e até
alguns homens do poder. Houve senadores, ministros em vigor, titulares de
vários matizes, altos funcionários públicos, artistas de nome, doutores de toda
a espécie, clubes de todas as ordens, ordens de todas as devoções, jornalistas,
negociantes, empresários, capitalistas e estudantes; estudantes que era uma
coisa por demais.
A cidade inteira abalou-se,
demoveu-se, para deixar passar aquela estranha procissão de um magro cadáver de
vinte anos.
Veio muita gente dos arrabaldes. De
todos os cantos do Rio de Janeiro acudia povo e mais povo a ver o enterro. As
ruas, os largos, por onde ele ia, ficavam acogulados de gente; os garotos
grimpavam-se aos muros, escalavam as árvores, subiam às grades das chácaras; as
janelas regurgitavam, como num domingo de festa.
O caixão foi carregado a pulso,
coberto de coroas; no cemitério ninguém se podia mexer com a multidão que
afluía.
Um delírio!
E no dia seguinte, descrições e mais
descrições jornalísticas; necrológicos, artigos fúnebres, notícias biográficas
e poesias dedicadas à “triste morte daquelas vinte primaveras”.
E, o que é mais raro, o fato não
caiu logo no esquecimento, porque aí estava o novo processo do assassino para
lhe entreter o calor, à feição de um banho-maria.
Continuavam, pois, as notícias
jurídicas; Coqueiro popularizava-se, ia conquistando opiniões e simpatias; ia
aos poucos se instalando no lugar vago pelo desaparecimento do outro. Muitos
colegas se voltavam já a favor dele; até Simões — até Paiva!
Paiva, sim! que agora, completamente
restaurado com as roupas herdadas de Amâncio, deixava-se ver amiúde nos pontos
mais concorridos da cidade e, entre as palestras dos amigos, mostrava-se todo
propenso a justificar o ato do irmão de Amélia.
— Não! dizia ele, quando lhe tocavam
nesse ponto — não! Coqueiro andou bem!... Eu, se tivesse uma irmã, fosse ela
quem fosse, faria o mesmo naturalmente!...
*
* *
Entretanto, pouco depois do enterro,
no meio do burburinho de passageiros chegando no vapor do Norte, uma senhora já
idosa, coberta de luto, saltava no cais Pharoux.
Vinha acompanhada por uma mulata,
que trazia constantemente os braços cruzados em sinal de respeito, e por um
velho gordo e bem vestido, cujas maneiras faziam adivinhar que ele ali não
passava de um simples companheiro de viagem.
Como se já tivessem resolvido no
escaler o que deviam fazer logo que saltassem, o velho, mal se viu em terra,
chamou por um carroceiro, deu a este a sua bagagem com o competente endereço,
fez sinal à mulata que seguisse a carroça e, depois de ajudar a senhora a sair do
bote, perguntou, solicitamente, se ela queria tomar um carro.
A senhora, muito inquieta, respondeu
que preferia ir a pé, e os dois, de braço dado, puseram-se a andar na direção
da Rua Direita.
Essa senhora era D. Ângela, a mãe de
Amâncio.
Campos já lhe havia escrito,
comunicando a prisão do filho. A princípio, não se achou com ânimo de falar
nisso à pobre mãe; mas seus escrúpulos fugiram totalmente; desde que lhe chegou
às mãos aquela terrível denúncia de Coqueiro.
Ângela não esperava pelo golpe, e ficou
a ponto de perder a cabeça. “Como?! Seria crível?... Seu filho, seu querido
filho na prisão, com um processo às costas e sem ter quem lhe valesse!... Ó
Santo Deus! Santo Deus! que isso era demais para um pobre coração de mãe! — Que
mal teria ela feito para merecer tão grande castigo?!”
E resolveu seguir para a Corte,
imediatamente, no mesmo vapor. Sentia-se corajosa, capaz de todas as lutas, de
todas as violências, para salvar seu filho. Esqueceu-se de seus achaques, do
estado melindroso de seu peito, para só cuidar dele; só pensar nessa criatura
idolatrada que valia mais, no fanatismo de seu afeto, do que todas as grandezas
da terra, todos os esplendores do mundo e todas as potências do céu.
— Oh! Haviam de restituir-lhe o
filho!... Ela estava resolvida a atirar-se aos pés dos juízes, das autoridades,
do Imperador se preciso fosse, para resgatá-lo! — Não era possível que só
encontrasse corações tão duros, que resistissem a tanta lágrima, a tamanha dor
e a tamanho desespero!
No
primeiro paquete achava-se a bordo, apenas seguida de uma escrava que, entre as
suas, lhe merecia mais confiança.
Mas, agora, pelo braço de um
estranho que a não desamparava por mera delicadeza, ou talvez por compaixão;
agora, no grosseiro tumulto do cais, estremunhada no meio daquela gente
desconhecida — a infeliz sentia-se fraquejar. Não sabia que fazer — se ir em
busca de Campos ou correr à toa por aquelas ruas, a gritar pelo filho, e
reclamá-lo daquele mundo indiferente que formiga em torno de sua perplexidade.
E, por mais que se quisesse fingir
forte, uma aflição crescia-lhe dentro e tomava-lhe a garganta. Tremiam-lhe as
pernas e os olhos marejavam-se-lhe de lágrimas.
— Mas V. Exª. não disse que seu
filho morava nas Laranjeiras?... perguntou o velho, compreendendo a perturbação
de Ângela.
— Sim, foi para aí que ele me mandou dirigir as cartas...
Tenho até aqui comigo o número da casa, mas, depois disso, já recebi a tal
notícia da prisão, e...
— Bem, interrompeu o outro — o mais
certo é irmos até lá. — Se não encontrarmos o rapaz, havemos de achar alguém
que nos dê informações. É mais um instante! Eu ainda posso acompanhá-la; não tenho pressa; o melhor, porém, seria
tomarmos um carro.
— Não, não! respondeu a senhora,
sempre inquieta, a olhar para todos os lados, como se esperasse, por um acaso
feliz, descobrir Amâncio, de um momento para outro.
Estavam já na Rua Direita. Ela, de
repente, estacou e pôs-se a fitar a vidraça de um armarinho.
— Algum conhecido? perguntou o
velho.
— Não. É que estes chapéus... tenha
a bondade de ver se consegue ler aquele nome... eu, talvez me enganasse...
O velho leu distintamente “à Amâncio
de Vasconcelos”. — É o título! disse. — Eles agora batizam as mercadorias com
os nomes que estão na moda. Algum tenor!
— É singular!... balbuciou a senhora.
— Por quê?
— É esse justamente o nome de meu
filho.
— Oh! Não há só uma Maria no
mundo!...
Mas D. Ângela fugira-lhe outra vez
do braço para correr a uma nova vidraça. Eram agora bengalas e gravatas “à
Amâncio de Vasconcelos” que lhe prendiam a atenção.
Acabavam de entrar na Rua do
Ouvidor.
— Vê?... interrogou ela, muito
preocupada e procurando esconder a comoção. — Ainda!
— Ah! fez o companheiro, já
impaciente. — V. Exª. vai encontrar o mesmo por toda a parte. — É o costume!
Olhe! Se me não engano, lá está o retrato do tal Amâncio! Tenha a bondade de
ver!
D. Ângela aproximou-se do retrato,
correndo, e soltou logo uma exclamação:
— Mas é ele! É meu filho! o meu
Amâncio!
E começou a rir e a chorar muito
perturbada.
O velho, meio comovido e meio vexado
com aquela expansão em plena Rua do Ouvidor, principiava talvez a arrepender-se
de ter sido tão cavalheiro com Ângela, quando esta, que estivera até aí a
percorrer, como uma doida, outros mostradores, arrancou do peito um formidável
grito e caiu de bruços na calçada.
Tinha visto seu filho, representado
na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue.
E por debaixo, em letras garrafais:
“Amâncio de Vasconcelos, assassinado
por João Coqueiro no Hotel Paris, em tantos de tal.”