I—O SERTÃO E O SERTANEJO
Todos vos bem sentis a ação
secreta Da natureza em seu governo eterno, E de íntimas camadas subterrâneas.
Da vida o indicio a superfície emerge.
(Goethe, Fausto, 2ª parte)
Então com passo tranqülo metia‑me
eu por algum recanto da floresta, algum lugar deserto, onde nada me indicasse a
mão do homem, me denunciasse a servidão e o domínio; asilo em que pudesse crer
ter primeiro entrado, onde nenhum importuno viesse interpor‑se entre mim
e a natureza.
(J. J. Rousseau, O Encanto da
Solidão)
Corta extensa e quase
despovoada zona da parte sul‑oriental da vastíssima província de Mato
Grosso a estrada que da Vila de Sant'Ana do Paranaíba vai ter ao sitio
abandonado de Camapuã. Desde aquela povoação, assente próximo ao vértice do
ângulo em que confinam os territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato
Grosso até ao Rio Sucuriú, afluente do majestoso Paraná, isto é, no
desenvolvimento de muitas dezenas de léguas, anda‑se comodamente, de
habitação em habitação, mais ou menos chegadas umas às outras, rareiam, porem,
depois as casas, mais e mais, e caminham‑se largas horas, dias inteiros
sem se ver morada nem gente até ao retiro de João Pereira, guarda avançada
daquelas solidões, homem chão e hospitaleiro, que acolhe com carinho o viajante
desses alongados paramos, oferece‑lhe momentâneo agasalho e o provê da
matalotagem precisa para alcançar os campos de Miranda e Pequiri, ou da Vacaria
e Nioac, no Baixo Paraguai.
Ali começa o sertão chamado
bruto.
Pousos sucedem a pousos, e
nenhum teto habitado ou em ruínas, nenhuma palhoça ou tapera dá abrigo ao
caminhante contra a frialdade das noites, contra o temporal que ameaça, ou a
chuva que está caindo. Por toda a parte, a calma da campina não arroteada; por
toda a parte, a vegetação virgem, como quando aí surgiu pela vez primeira.
A estrada que atravessa essas
regiões incultas desenrola‑se à maneira de alvejante faixa, aberta que é
na areia, elemento dominante na composição de todo aquele solo, fertilizado
aliás por um sem‑número de límpidos e borbulhantes regatos, ribeirões e
rios, cujos contingentes são outros tantos tributários do claro e fundo Paraná
ou, na contravertente, do correntoso Paraguai.
Essa areia solta, e um tanto
grossa, tem cor uniforme que reverbera com intensidade os raios do Sol, quando
nela batem de chapa. Em alguns pontos é tão fofa e movediça que os animais das
tropas viageiras arquejam de cansaço, ao vencerem aquele terreno incerto, que
lhes foge de sob os cascos e onde se enterram até meia canela.
Freqüentes são também os
desvios, que da estrada partem de um e outro lado e proporcionam, na mata
adjacente, trilha mais firme, por ser menos pisada.
Se parece sempre igual o
aspecto do caminho, em compensação mui variadas se mostram as paisagens em
torno.
Ora e a perspectiva dos
cerrados, não desses cerrados de arbustos raquíticos, enfezados e retorcidos de
São Paulo e Minas Gerais, mas de garbosas e elevadas árvores que, se bem não
tomem, todas, o corpo de que são capazes à beira das águas correntes ou regadas
pela linfa dos córregos, contudo ensombram com folhuda rama o terreno que lhes
fica em derredor e mostram na casca lisa a força da seiva que as alimenta; ora
são campos a perder de vista, cobertos de macega alta e alourada, ou de
viridente e mimosa grama, toda salpicada de silvestres flores; ora sucessões de
luxuriantes capões, tão regulares e simétricos em sua disposição que
surpreendem e embelezam os olhos; ora, enfim, charnecas meio apauladas, meio
secas, onde nasce o altivo buriti e o gravata entrança o seu tapume espinhoso.
Nesses campos, tão diversos
pelo matiz das cores, o capim crescido e ressecado pelo ardor do Sol transforma‑se
em vicejante tapete de relva, quando lavra o incêndio que algum tropeiro, por
acaso ou mero desenfado, ateia com uma faúlha do seu isqueiro.
Minando à surda na touceira,
queda a vivida centelha. Corra daí a instantes qualquer aragem, por débil que
seja, e levanta‑se a língua de fogo esguia e trêmula, como que a
contemplar medrosa e vacilante os espaços imensos que se alongam diante dela.
Soprem então as auras com mais força, e de mil pontos, a um tempo, rebentam
sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de súbito se dividem,
deslizam, lambem vastas superfícies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e
voam, roncando pelos matagais de tabocas e taquaras, até esbarrarem de encontro
a alguma margem de rio que não possam transpor, caso não as tanja para além o
vento, ajudando com valente fôlego a larga obra de destruição.
Acalmado aquele ímpeto por
falta de alimento, fica tudo debaixo de espessa camada de cinzas. O fogo,
detido em pontos, aqui, ali, a consumir com mais lentidão algum estorvo, vai
aos poucos morrendo até se extinguir de todo, deixando como sinal da avassaladora
passagem o alvacento lençol, que lhe foi seguindo os velozes passos
Através da atmosfera enublada
mal pode então coar a luz do Sol. A incineração é completa, o calor intenso, e
nos ares revoltos volitam palhinhas carboretadas, detritos, argueiros e grânulos
de carvão que redemoinham, sobem, descem e se emaranham nos sorvedouros e
adelgaçadas trombas, caprichosamente formadas pelas aragens, ao embaterem umas
de encontro às outras.
Por toda a parte melancolia;
de todos os lados tétricas perspectivas.
É cair, porém, daí a dias
copiosa chuva, e parece que uma varinha de fada andou por aqueles sombrios
recantos a traçar às pressas jardins encantados e nunca vistos. Entra tudo num
trabalho intimo de espantosa atividade. Transborda a vida. Não há ponto em que
não brote o capim, em que não desabrochem rebentões com o olhar sôfrego de quem
espreita azada ocasião para buscar a liberdade, despedaçando as prisões de
penosa clausura.
Aquela instantânea
ressurreição nada, nada pode pôr peias.
Basta uma noite, para que
formosa alfombra verde, verde‑claro, verde‑gaio, acetinado, cabra
todas as tristezas de há pouco. Aprimoram‑se depois os esforços; rompem
as flores do campo que desabotoam as carícias da brisa as delicadas corolas e
lhe entregam as primícias dos seus cândidos perfumes.
Se falham essas chuvas
vivificadoras, então, por muitos e muitos meses, ai ficam aquelas campinas,
devastadas pelo fogo, lugubremente iluminadas por avermelhados clarões sem uma
sombra, um sorriso, uma esperança de vida, com todas as suas opulências e
verdejantes pimpolhos ocultos, como que raladas de dor e mudo desespero por não
poderem ostentar as riquezas e galas encerradas no ubertoso seio.
Nessas aflitas paragens, não
mais se ouve o piar da esquiva perdiz, tão freqüente antes do incêndio. Só de
vez em quando ecoa o arrastado guincho de algum gavião, que paira lá em cima ou
bordeja ao chegar‑se à terra, a fim de agarrar um ou outro réptil
chamuscado do fogo que lavrou.
Rompe também o silêncio o
grasnido do caracará, que aos pulos procura insetos e cobrinhas ou, junto ao
solo, segue o vôo dos urubus, cujos negrejantes bandos, guiados pelo fino
olfato, buscam a carniça putrefata.
É o caracará comensal do
urubu. De parceria se atira, quando urgido pela fome, à rês morta e,
intrometido como é, a custo de alguma bicada do pouco amável conviva, belisca
do seu lado no imundo repasto.
Se passa o caracará a vista
do gavião, precipita‑se este sobre ele com vôo firme, dá-lhe com a ponta
da asa, atordoa‑o, atormenta‑o só pelo gosto de lhe mostrar a incontestada
superioridade.
Nada, com efeito, o mete em
brios.
Pelo contrário, mal levou
dois ou três encontrões do miúdo, mas audaz adversário, baixa prudente à terra
e põe‑se ai desajeitadamente aos saltos. apresentando o adunco bico ao
antagonista, que com a extremidade das asas levanta pó e cinza, tão de perto as
arrasta ao chão.
Afinal, de cansado, deixa o
gavião o folguedo, segurando de um bote a serpesinha, que em custoso rasto,
procurava algum buraco onde fosse, mais a salvo, pensar as fundas queimaduras.
* * *
Tais são os campos que as
chuvas não vêm regar.
Com que gosto demanda então o
sertanejo os capões que lá de bem longe se avistam nas encostas das colinas e
baixuras, ao redor de alguma nascente orlada de pindaíbas e buritis?!
Com que alegria não saúda os
formosos coqueirais, núncios da linfa que lhe há de estancar a sede e banhar o
afogueado rosto?!
Enfileiram‑se às vezes
as palmeiras com singular regularidade na altura e conformação; mas não raro
amontoam‑se em compactos maciços, dos quais se segregam algumas mais e
mais, a acompanhar com as raízes qualquer tênue fio d'água, que coleia falto de
forças e quase a sumir‑se na ávida areia.
Desde longe dão na vista
esses capões.
É a princípio um ponto negro,
depois uma cúpula de verdura, afinal, mais de perto, uma ilha de luxuriante
rama, oásis para os membros lassos do viajante exausto de fadiga, para os seus
olhos encandeados e sua garganta abrasada.
Então, com sofreguidão
natural, acolhe‑se ele ao sombreado retiro, onde prestes desarreia a cavalgadura,
à qual dá liberdade para ir pastar, entregando‑se sem demora ao sono
reparador que lhe trará novo alento para prosseguir na cansativa jornada.
Ao homem do sertão afiguram‑se
tais momentos incomparáveis acima de tudo quanto possa idear a imaginação no
mais vasto circulo de ambições.
Satisfeita a sede que lhe
secara as fauces, e comidas umas colheres de farinha de mandioca ou de milho,
adoçada com rapadura, estira‑se a fio comprido sobre os arreios
desdobrados e contempla descuidoso o firmamento azul, as nuvens que se
espacejam nos ares, a folhagem lustrosa e os troncos brancos das pindaíbas a
copa dos ipês e as palmas dos buritis a ciciar a modo de harpas eólias, músicas
sem conta com o perpassar da brisa.
Como são belas aquelas
palmeiras!
O estípite liso, pardacento,
sem manchas mais que pontuadas estrias, sustenta denso feixe de pecíolos longos
e canulados, em que assentam flabelas abertas como um leque, cujas pontas se
acurvam flexíveis e tremulantes.
Na base em torno da coma,
pendem, amparados por largas espatas, densos cachos de cocos tão duros, que a
casca luzidia, revestida de escamas romboidais e de um amarelo alaranjado,
desafia por algum tempo o férreo bico das araras.
Também, com que vigor
trabalham as barulhentas aves antes de conseguir a apetecida e saborosa
amêndoa! Em grupos juntam‑se elas, umas vermelhas como chispas soltas de
intensa labareda, outras versicolores, outras, pelo contrário, de todo azuis,
de maior viso e que, por parecerem negras em distancia, têm o nome de
araraúnas. Ali ficam alcandoradas, balouçando‑se gravemente e atirando de
espaço a espaço, às imensidades das dilatadas campinas notas estridentes,
quando não seja um clamor sem fim, ao quererem multas disputar o mesmo cacho.
Quase sempre, porém, estão a namorar‑se aos pares, pousadas uma bem
encostadinha à outra.
Vê tudo aquilo o sertanejo
com olhar carregado de sono. Caem‑lhe pesadas as pálpebras; bem se lembra
de que por ali podem rastejar venenosas alimárias, mas é fatalista; confia no
destino e, sem mais preocupação, adormece com serenidade.
Correm as horas vem o Sol
descambando; refresca a brisa, e sopra rijo o vento. Não ciciam mais os
buritis; gemem, e convulsamente agitam as flabeladas palmas.
É a tarde que chega.
Desperta então o viajante;
esfrega os olhos; distende preguiçosamente os braços; boceja; bebe um pouco
d'água; fica uns instantes sentado, a olhar de um lado para outro, e corre
afinal a buscar o animal, que de pronto encilha e cavalga.
Uma vez montado, lá vai ele a
passo ou a trote, bem disposto de corpo e de espírito, por aqueles caminhos
além, em demanda de qualquer pouso onde pernoite.
Quanta melancolia baixa à
terra com o cair da tarde!
Parece que a solidão alarga
os seus limites para se tornar acabrunhadora. Enegrece o solo; formam os
matagais sombrios, maciços, e ao longe se desdobra tênue véu de um roxo
uniforme e desmaiado, no qual, como linhas a meio apagadas, ressaltam os
troncos de uma ou outra palmeira mais alterosa.
É a hora, em que se aperta de
inexplicável receio o coração. Qualquer ruído nos causa sobressalto; ora o
grito aflito da zabelê nas matas, ora as plangentes notas do bacurau a cruzar
os ares. Freqüente é também amiudarem‑se os pios angustiados de alguma
perdiz, chamando ao ninho o companheiro extraviado, antes que a escuridão de
todo lhe impossibilite a volta.
Quem viaja atento às
impressões intimas, estremece, mau grado seu, ao ouvir nesse momento de
saudades o tanger de um sino muito, muito ao longe, ou o silvar distante de uma
locomotiva impossível. São insetos ocultos na macega que trazem essa ilusão,
por tal modo viva e perfeita que a imaginação, embora desabusada e prevenida,
ergue o vôo e lá vai por estes mundos afora a doidejar e a criar mil fantasias,
* * *
Espalham‑se, por fim,
as sombras da noite.
O sertanejo que de nada
cuidou, que não ouviu as harmonias da tarde, nem reparou nos esplendores do
céu, que não viu a tristeza a pairar sobre a terra, que de nada se arreceia,
consubstanciado como está com a solidão, pára, relanceia os olhos ao derredor
de si e, se no lagar pressente alguma aguada, por má que seja, apeia‑se,
desencilha o cavalo e reunindo logo uns gravetos bem secos, tira fogo do
isqueiro, mais por distração do que por necessidade.
Sente‑se deveras feliz.
Nada lhe perturba a paz do espírito ou o bem‑estar do corpo. Nem sequer
monologa, como qualquer homem acostumado a conversar.
Raros são os seus
pensamentos: ou rememora as léguas que andou, ou computa as que tem que vencer para
chegar ao término da viagem.
No dia seguinte, quando aos
clarões da aurora acorda toda aquela esplêndida natureza, recomeça ele a
caminhar, como na véspera, como sempre.
Nada lhe parece mudado no
firmamento: as nuvens de si para si são as mesmas. Dá‑lhe o Sol, quando
muito, os pontos cardeais, e a terra só lhe prende a atenção, quando algum
sinal mais particular pode servir‑lhe de marco miliário na estrada que
vai trilhando.
—Bom! exclama em voz alta e
alegre ao avistar algum madeiro agigantado ou uma disposição especial de
terras, lá está a peúva grande... Cheguei ao Barranco Alto. Até ao pouso de
Jacaré há quatro léguas bem puxadas.
E, olhando para o Sol,
conclui:
—Daqui a três horas estou
batendo fogo.
Ocasiões há em que o
sertanejo dá para assobiar. Cantar, é raro; ainda assim, à surdina; mais uma
voz intima, um rumorejar consigo, do que notas saídas do robusto peito.
Responder ao pio das perdizes ou ao chamado agoniado da esquiva jaó, é o seu
divertimento em dias de bom humor.
É-lhe indiferente o urro da
onça. Só por demais repara nas muitas pegadas, que em todos os sentidos ficam
marcadas na areia da estrada.
—Que bichão! murmura ele
contemplando um rasto mais fortemente impresso no solo; com um bom onceiro não
se me dava de acuar este diabo e meter‑lhe uma chumbada no focinho.
O legitimo sertanejo,
explorador dos desertos, não tem, em geral, família. Enquanto moço, seu fim
único é devassar terras, pisar campos onde ninguém antes pusera pé, vadear rios
desconhecidos, despontar cabeceiras e furar matas, que descobridor algum ate
então haja varado.
Cresce‑lhe o orgulho
na razão da extensão e importância das viagens empreendidas; e seu maior gosto
cifra‑se em enumerar as correntes caudais que transpôs, os ribeirões que
batizou, as serras que transmontou e os pantanais que afoitamente cortou,
quando não levou dias e dias a rodeá‑los com rara paciência.
Cada ano que finda traz‑lhe
mais um valioso conhecimento e acrescenta uma pedra ao monumento da sua
inocente vaidade.
—Ninguém pode comigo,
exclama ele enfaticamente. Nos campos da Vacaria, no sertão do Mimoso e nos
pantanos do Pequiri, sou rei.
E esta presunção de realeza
infunde‑lhe certo modo de falar e de gesticular majestático em sua
singela manifestação.
A certeza que tem de que
nunca poderá perder‑se na vastidão, como que o liberta da obsessão do
desconhecido, o exalta e lhe dá foros de infalibilidade.
Se estende o braço, aponta
com segurança no espaço e declara peremptoriamente:
—Neste rumo daqui a 20
léguas, fica o espigão mestre de uma serra braba, depois um rio grosso; dali a
cinco léguas outro mato sujo que vai findar num brejal. Se vassuncê frechar
direitinho assim umas duas horas, topa com o pouso do Tatu, no caminho que vai
a Cuiabá.
O que faz numa
direção, com a mesma imperturbável serenidade e firmeza indica em qualquer
outra.
A única interrupção
que aos outros consente, quando conta os inúmeros descobrimentos, é a da
admiração. À mínima suspeita de dúvida ou pouco caso, incendem‑se‑lhe
de cólera as faces e no gesto denuncia indignação.
— Vassuncê não credita!
protesta então com calor. Pois encilhe o seu bicho e caminhe como eu lhe
disser. Mas assunte bem, que no terceiro dia de viagem ficará decidido quem é
cavouqueiro e embromador. Uma coisa é mapiar à toa, outra andar com tento por estes
mundos de Cristo.
Quando o sertanejo vai
ficando velho, quando sente os membros cansados e entorpecidos, os olhos já
enevoados pela idade, os braços frouxos para manejar a machadinha que lhe da o
substancial palmito ou o saboroso mel de abelhas, procura então quem o queira
para esposo, alguma viúva ou parenta chegada, forma casa e escola, e prepara os
filhos e enteados para a vida aventureira e livre que tantos gozos lhe dera
outrora.
Esses discípulos aguçada a curiosidade com as repetidas
e animadas descrições das grandes cenas da natureza, num belo dia desertam da
casa paterna, espalham‑se por ai além, e uns nos confins do Paraná,
outros nas brenhas de São Paulo, nas planuras de Goiás ou nas bocainas de Mato
Grosso, por toda a, parte enfim, onde haja deserto, vão pôr em ativa prática
tudo quanto souberam tão bem ouvir, relembrando as façanhas do seu respeitado
progenitor e mestre.
II ‑ O VIAJANTE
Próprio de espírito
sorumbático, é andar sempre calado: tagarelar é o encanto e a alma da vida.
La Chaussée. Comigo,
respondeu Sancho, meu primeiro movimento é logo tal comichão de falar que não
posso deixar de desembuchar o que me vem A boca.
Cervantes, D. Quixote.
O dia 15 de julho de 1860
era dia claro, sereno e fresco, como costumam ser os chamados de inverno no
interior do Brasil.
Ia o Sol alto em seu
percurso, iluminando com seus raios, não muito ardentes para regiões
intertropicais, a estrada, cujo aspecto há pouco tentamos descrever e que da
Vila de Sant'Ana do Paranaíba vai ter aos campos de Camapuã.
A essa hora, um viajante,
montado numa boa besta tordilho‑queimada, gorda e marchadeira, seguia
aquela estrada. A sua fisionomia e maneiras de trajar denunciavam de pronto que
não era homem de lida fadigosa e comum ou algum fazendeiro daquelas cercanias
que voltasse para casa. Trazia na cabeça um chapéu‑do‑chile de abas
amplas e cingido de larga fita preta, sobre os ombros um poncho‑pala de
variegadas cores e calçava botas de couro da Rússia bem feitas e em bom estado
de conservação.
Tinha quando muito vinte e
cinco anos, presença agradável, olhos negros e bem rasgados, barba e cabelos
cortados quase à escovinha e ar tão inteligente quanto decidido.
Na mão empunhava uma
comprida vara que havia pouco cortara, e com que ia distraidamente fustigando o
ar ou batendo nos ramos de árvores que se dobravam ao alcance do braço.
Vinha só e, no momento em
que damos começo a esta singela história, achava‑se no bonito trecho de
caminho que medeia entre a casa de Albino Lata e a do Leal, a sete boas léguas
da sezonática e decadente Vila de Sant'Ana do Paranaíba
Nesta porção de estrada,
ensombrada pelas árvores de vistoso cerrado, o leito, ainda que já bastante
arenoso, é firme e parece mais aléia de bem tratado jardim, do que caminho de tropas
e carreadores.
Ainda aumenta os encantos
daquele lance a inúmera quantidade de rolas caboclas a brincar na areia e de
pombas de cascavel, cujo bater das asas produz um arruído tão característico e
singular.
O nosso viajante, se
caminhava distraído e meio pensativo, não parecia, contudo, de gênio sombrio ou
pouco divertido.
Muito ao contrário, sacudia
as vezes o torpor em que vinha e entrava a cantarolar, ou assobiar, esporeando
a valente cavalgadura, que na marcha que tomava ia abanando alternadamente as
orelhas com o movimento cadencial da cabeça.
Numa dessas reações contra
alguma preocupação, disse em voz alta, puxando por um relógio de prata, seguro
em corrente do mesmo metal:
—Às duas horas, pretendo
sestear no paiol do Leal. Falta pouco para o meio‑dia, e tenho tempo
diante de mim a botar fora.
Moderou, pois, a andadura
que levava o animal e mais ativamente recomeçou a zurzir os galhos das árvores,
bocejando de tédio.
Também pouco tempo caminhou
só, por isto que em breve ao seu lado emparelhou outro viajante, escanchado num
cavalinho feio e zambro, mas muito forte, o qual, coberto como estava de suor,
mostrava ter vindo quase a galope.
Homem já de alguma idade, o
recém‑chegado era gordo, de compleição sangüínea, rosto expressivo e
franco. Trajava à mineira e parecia, como realmente era, morador daquela
localidade.
—Olá, patrício, exclamou ele
conchegando a cavalgadura à da pessoa a quem interpelava, então se vai botando
para Camapuã?
Olhou o nosso cavaleiro com
desconfiança e sobranceria para quem o interrogava tão sem‑cerimônia e
meio enviesado respondeu:
—Talvez sim... talvez não...
Mas a que vem a pergunta?
—Ah! desculpe‑me,
replicou o outro rindo‑se, nem sequer o saudei... Sou mesmo um
estabanado... Deus esteja
convosco. Isto sempre me acontece... A minha língua fica às vezes tão doida que se põe logo a bater‑me nos dentes...
que é um Deus nos acuda e... não há que avisar: água vai! Olhe, por vezes já me tem vindo dano, mas que quer? É sestro antigo... Não que eu sela malcriado, Deus de tal me defenda, abrenúncio; mas pega‑me tal comichão de falar que vou logo, sem tir‑te, nem guar‑te, dando à taramela...
A volubilidade com que foram
ditas estas palavras causou certo espanto ao mancebo e o levou a novamente
encarar o inopinado companheiro, desta feita com mais demora e ar menos
altivo.
Notou então a fisionomia
alegre e bonachã do tagarela e, com ar de simpatia, correspondeu ao
comunicativo sorriso daquele que, à força, queria travar conversação.
—Pelo que vejo, disse ele, o
Sr. gosta de prosear.
—Ora se! retrucou o mineiro.
Nestes sertões só sinto a falta de uma coisa: é de um cristão com quem de vez
em quando dê uns dedos de pérola. Isto sim, por aqui é casqueiro. Tudo anda tão
calado!... uma verdadeira caipiragem!... Eu, não. Sou das Gerais, gelaria como
por cá se diz; nasci no Paraibana, conheci no meu tempo pessoas de muita
educação, gente mesma de traz e fui criado na Mata do Rio como homem e não como
bicho do monte.
—Ah! o senhor é de Minas?
—Gerais, se me faz favor.
Batizei‑me em Vassouras, mas sou mineiro da gema. Andei ceca e meca antes
de vir deitar poita neste país. Isto já faz muito tempo, pois também vou
ficando velho. Há mais de quarenta anos pelo menos que sai da casa dos meus
pais.
E interrompendo o que dizia,
perguntou:
—O senhor também é de Minas?
—Nhor‑não, respondeu o
outro. Sou caipira de São Paulo: nasci na Vila de Casa Branca, mas fui criado
em Ouro Preto.
—Ah! na cidade Imperial ?...
—Lá mesmo.
—Então é quase de casa,
replicou o mineiro rindo‑se ruidosamente. Ora, quem diria! Por isto me
batia a passarinha, quando vi o seu rasto fresco na areia. Ai vai, disse eu por
vezes com os meus botões, um sujeitinho que não tem pressa de pousar. Também tocando
o meu canivete, tratei de agarrá‑lo para não fazer a viagem a olhar para
o céu e a bancar. Acha que obrei mal?
—Não, senhor, protestou o
moço com afabilidade. Muito lhe agradeço a intenção. Assim alcançarei sem
cansaço o Leal, onde pretendo dar hoje com os ossos.
—Oh! exclamou o outro todo
expansivo, a caminhada é a mesma. Pois, meu rico senhor, eu moro a meia légua
do Leal, torcendo a esquerda e se vosmecê não tem compromissos lá com o homem,
far‑me‑á muito favor agasalhando‑se em teto de quem é pobre,
mas amigo de servir. Minha tapera é pouco retirada do caminho, e quem vem
montado como o senhor, não tem que andar contando bocadinhos de léguas.
Convite tão espontâneo e
amável não podia deixar de ser bem aceito, sobretudo naquelas alturas, e trouxe
logo entre os dois caminhantes a familiaridade que tão depressa se estabelece
em viagem.
—Com toda a satisfação irei
parar em sua casa, retrucou o jovem. Nunca vi o Leal, pois agora é a primeira
vez que cruzo este sertão, e ando de pouso em pouso, pedindo um cantinho de
paiol ou de rancho para passar a noite com os meus camaradas.
Traz então tropa?
—Tropa, não; apenas dois
bagageiros que vêm com as minhas cargas e uma besta à destra.
—Olá! o amigo viaja à
fidalga, observou o mineiro com gesto folgazão.
—Qual!... Bastantes
privações tenho já curtido.
—Decerto não as sentirá em
nossa casa todo o tempo que lá quiser ficar. Não encontrará luxarias nem coisas
da capital, unicamente o que pode ter nestes mundos: quatro paredes de pau‑a‑pique
mal rebocadas, uma cama de vento, bom feijão a fartar, ervas a mineira, arroz
de papa, farinha de milho torradinha, café com rapadura e talvez até um lombo
fresco de porco.
—Olá! exclamou o moço rindo‑se
com expansão, vou passar vida de capitão‑mor. Não queria tanto, bastava‑me...
—O que sobretudo desejo é
que tenha comigo o coração na boca. Se não gostar do passadio, vá logo
desembacharido. Na minha rancharia pousa pouca gente, porque fica para dentro
da estrada... assim, talvez lhe falte alguma coisa; em todo o caso farei pelo
melhor . . .
Depois de breve pausa,
continuou:
—Mas porém, creio que já é
ocasião, agora que nos conhecemos como dois amigos do tempo do Rojão, saber com
quem lidamos. Eu, quanto a mim, me chamo Martinho dos Santos Pereira e a minha
história conto‑lha em duas palhetadas... Sua graça, ainda que mal
pergunte ?
—Cirino Ferreira de Campos,
respondeu o outro viajante, um criado para o servir.
— Obrigado, agradeceu
Pereira inclinando‑se cortesmente e levando a mão ao chapéu. Como lhe
disse há pouco, minha historia é história de entrar por uma porta e sair por
outra. Minha gente não é de má raça, pelo contrário; meu pai, que Deus lhe dê a
glória, possuía alguma coisa de seu e deixou aos seus muitos filhos um nome
limpo e respeitado. Cada qual de nós—éramos sete—tomou o seu rumo. Quanto a
mim, casei muito mocinho e fui morar na Diamantina, onde abri casa de negócio.
Depois de alguns anos, uns bons, outros caiporas, morreu minha dona e
mudei‑me, a principio, para Pinmi e mais tarde para Uberaba. A vida começou a desandar‑me de todo, e fiz logo este cálculo: estar tão longe, antes afundar‑me no mato de uma boa feita. Vendi minha lojinha de ferragens e internei‑me até cá com três escravos. lá doze anos que moro nestes socavões e, palavra de honra, até ao presente não me tenho arrependido. Na minha situação há fartura, e louvado seja! nunca passei necessidade... Não posso por isto queixar‑me sem ingratidão. Deus Nosso Senhor Jesus Cristo tem olhado para mim, e me julgo bem amparado, sobretudo quando me lembro do despotismo de misérias, que vai por estas terras fora... Cruzes! nem falar nisto é bom... Diga‑me porém uma coisa: vosmecê para onde se atira?
—Homem, Sr. Pereira, não
tenho destino certo.
—Deveras? Então esta
caminhando à toa?
—Eu ponho‑lhe já tudo
em pratos limpos. Ando por estes fundões curando maleitas e feridas bradas.
—Ah! exclamou Pereira com
manifesto contentamento, vosmecê é doutor, não é? Físico, como chamavam os
nossos do tempo de dantes.
—É fato, confirmou Cirino com
alguma satisfação.
—Ora, pois multo bem, cai‑me
a sopa no mel; sim, senhor, vem mesmo ao pintar... a talhe de foice.
—Por quê?
—Daqui a pouco saberá... Mas,
diga‑me ainda... Onde é que vosmecê leu nos livros, aprendeu suas
historias e bruxarias? Na corte do Império?
—Não, respondeu Cirino,
primeiro no Colégio do Caraça; depois fui para Ouro Preto, onde tirei carta de
farmácia.
E acrescentou com enfatuação:
—Desde então tenho batido
todo o poente de Minas e feito curas que é um milagre.
—Ah! a sabença é coisa boa.
. . eu também tinha jeito para saber mais do que ler e escrever, isto mesmo
mulmente; mas quem nasceu para carreiro, vira, mexe, larga e pega, sempre acaba
junto ao carro. Com o que, entonces, vosmecê entende de curar?...
—Entendo, afirmou Cirino sem
o menor constrangimento.
—Pois caiu‑me muito ao
jeito na mão; sim, senhor. Estou com uma menina doente de maleitas, minha
filha, e por essa causa tinha ido a Sant'Ana buscar quina do comércio; mas lá
não havia da maldita e voltava bem agoniado. Ora...
—Trago, interrompeu o outro,
muito remédio nas minhas malas. Para sezões, tenho uma composição infalível...
— Já se sabe; entra
composição de quina. Deveras é santa mezinha. A pequena tomou a do campo; mas
essa pouco talento tem, de maneira que a sezão não lhe deixou o corpo.
—Há quantos dias apareceu o
tremor de frio? perguntou o intitulado doutor.
—Faz hoje, salvo engano, dez
dias.
Até agora era uma rapariga
forçada, sadia e rosada como um lambo; nem sei ate como lhe entrou a maleita no
corpo. Ninguém pode fiar‑se na tal Vila de Sant'Ana; é uma peste de
febres. Eu bem a não Queria levar até lá: mas ela pediu tanto age consenti!
Demais como era para ver a madrinha, uma boa senhora, de muita circunstância,
a mulher do Major Melo Toques. .. Não conhece?
—Pois não.
—E dá‑se com o major?
perguntou Pereira para abrir novo campo à garrulice.
—Quando pousei na vila,
estive com ele.
—E não gostou? Aquilo sim é
homem às direitas. Também é pau para toda a obra na Senhora Sant'ana, é o tutu
de lá. Em querendo taramelar um pouco mais a meu gosto, busco o compadre. Isto
arma logo uma conversa que me dá um fartão... E depois pessoa de muitas
letras... Escreve ao governo; é juiz de paz, major reformado, serve de juiz
municipal, já fez a campanha dos Farrapos lá no Rio Grande do Sul para as
bandas dos Castelhanos e merece muita estimação. Mora numa casa de andar e tem
loja muito sortida, por sinal que bem baratinha para a distancia. E as
histórias que conta? f: um nunca acabar. O homem parece que sabe o Império de
cor e salteado! Nem o vigário! Olhe, Sr. Cirino, vou dizer‑lhe uma coisa,
que talvez lhe pareça embromação: às vezes dou um pulo até a vila só para bater
língua com o major, porque com esta gente daqui não se tira partido:
escorraçada e arisca que é um Deus nos acuda! Então, como lhe ia contando,
galopeio até lá, e pego numa mapiagem que me enche as medidas. Não há...
—Gabo‑lhe a pachorra,
atalhou Cirino. Mas, diga‑me, Sr. Pereira; farei por aqui algum negócio?
—Homem, conforme. Gente
doente é mato; mas também mofina como ela só. Meio arredado da minha casa, fica
o Coelho que está morre não morre há muitos anos, e é homem de boas patacas.
Este, se vosmecê o curar, talvez caia com os cobres. Tudo o mais é uma récula
de gente mais ou menos.
—Vosmecê traz bastante quina
do comércio? perguntou em seguida.
—Trago, respondeu Cirino, mas
é cara.
—Que é cara, bem sei. Pois é
quanto basta, porque no fundo aqui tudo são serões.
Começou então o bom do Sr.
Pereira a desenrolar as diversas moléstias que o haviam salteado no correr da
vida, raras na verdade, mas todas perigosas; e com este tema às ordens achou
meios e modos de falar até quase perder o fôlego.
Recolheu‑se o outro ao
silencio e ouviu talvez preocupado, ou em todo caso, muito distraidamente, o
que lhe contava o seu novo amigo, saindo, de vez em quando, da apática atenção
para instigar com a voz e o calcanhar a cavalgadura, quando esta parecia querer
por si tomar descanso ou buscava comer os rebentões mais apetitosos do capim a
grelar.
Afinal notou Pereira o tal ou
qual abatimento do companheiro. —Vosmecê a modo que está triste? disse ele.
Deixou alguma coisa de seu lá por trás?
—Homem, para ser franco,
respondeu Cirino dando um suspiro, deixei; e essa coisa é uma dívida... dívida
de jogo.
—Isto é mau, retrucou o mineiro,
fechando um tanto a cara. Por causa desse vicio e das mulheres, é que as cruzes
nascem à beira das estradas. Mas é coco grosso?
—Trezentos mil‑réis.
—Já é gimbo graúdo. E com
quem jogou?
—Com o Totó Siqueira, de
Sant'Ana. Por isto pretendeu atrasar‑me a viagem; mas prometi mandar‑lhe
tudo do Sucuriú por um camarada e passei‑lhe um papel. No que estou
pensando, e se acharei até lá meios de cumprir a palavra.
—Se lhe pagarem como devem,
com certeza. Em todo o caso aperte um pouco com os doentes.
—Não imagina, replicou
Cirino com verdadeiro sentimento, quanto me tem amofinado essa maldita dívida.
Não pelo dinheiro, que dele faço pouco caso; mas por ter pegado em cartas,
coisa que nunca tinha feito na minha vida; isto sim...
—Pois meu rico senhor, prosseguiu
Pereira, sirva‑lhe esta de lição e tome tento com a gente do sertão, não
com esses que moram ‑nas suas casas, sossegados e amigos de servir, mas
com viajantes, homens de tropas e carreiros. Isso sim, é uma súcia de
jogadores, que andam armados de baralhas e vísporas e, por dá cá aquela palha,
empurram uma faca na barriga de um cristão ou descarregam uma garrucha na
cabeça de um companheiro, como se fosse em melancia podre. Depois, o demônio do
jogo, quando entra no corpo de um desgraçado, faz logo ninho e de lá pincha
fora a vergonha. Da má vida com raparigas airadas, fadistas e mulheres à toa,
ainda a gente endireita; mas com cartas e sortes, só na caldeira de Pedro
Botelho é que se cuida em mudar de rumo. Quem lhe fala, teve um tio morador nas
Trairás, para cá de Camapuã cinco léguas, que trabalhava todo o ano na terra
para vir jogar até perder o último cobre nas rancharias do Sucuriú.
Pereira, de posse de tão
largo assunto, contou mil historias, umas lúgubres, outras jocosas, verídicas,
inventadas na ocasião ou reproduzidas.
Haviam, no entretanto, os
dois caminhado bastante. Inclinara‑se no horizonte o Sol, e a brisa da
tarde já vinha soprando do lado do poente, viva, perfumosa.
—Nós, observou o mineiro, com
a nossa conversa deixamos os nossos animais vir cochilando. Também já está aqui
a minha estradinha. Meta‑se nela, Sr. Cirino; em frente ia parar no
Leal: minha fazendola começa neste ponto à beira do caminho e vai por ai afora
ate bem longe, um mundo de alqueires de terra que nem tem conta.
Ao dizer estas palavras,
tomou ele a dianteira e dando a direita à estrada geral, enveredou por uma
aberta larga e muito sombreado que levava com voltas e tortuosidades à margem
rasa de copioso e límpido ribeirão, de álveo areento, todo ele. Que sítio risonho,
encantador, esse, ensombrado por majestosa e elegante ingazeira, toda pontuada
das mimosas e balsâmicas florezinhas!
Os animais, ao perceberem o
bater da água, apertaram o passo e, entrando na fresca corrente quase até aos
peitos, estiraram o pescoço e puseram‑se a beber ruidosamente, avançando
aos poucos de encontro ao fio caudal, para buscarem o que houvesse mais puro em
linfa.
—Não deixe a sua besta se
empanainar observou Pereira. Upa! continuou ele puxando pela rédea do cavalo e
batendo‑lhe amigavelmente na pá do pescoço, upa, Canivete! Vamos matar a
fome no milho!
Transposto o ribeirão,
alargava‑se a vereda e, depois de cortar copada mata, abria‑se numa
verdadeira estrada, que os dois cavaleiros tomaram a meio galope.
Transmontava afinal o Sol,
quando, atem de ralo matagal, surgiu a ponta de um mastro de São João, que o
mineiro saudou com mostras de grande alegria, como sinal precursor da querida
vivenda.
Antes, porem, de nela
penetrarmos, digamos quem era aquele mancebo que viajava ornado do pomposo
titulo de doutor, e, que mais é, revestido de autoridade para ir, a seu talante
aplicando remédios e preconizando curas milagrosas.
III—O DOUTOR
Semeai promessas: a ninguém causam desfalque, e o mundo
é rico de palavras.
A esperança quando outros
nela crêem faz ganhar muito tempo.
Ovídio,
a Arte de Amar.
Ao morreres,
dota a algum colégio ou a teu gato.
Pope.
Sganarelo. — De todo a parte vem gente procurar-me,
e se as coisas continuarem assim, sou de parecer que
de uma vez devo dedicar-me à medicina . Acho que
de todos os ofícios é este o preferível, porque,
ou se
faça bem ou mal, sempre no fim há dinheiro.
Molière, O Médico à Força.
Nascera Cirino de Campos, como dissera a Pereira, na
província de São Paulo, na sossegada e bonita Vila de Casa Branca, a qual
demora Umas 50 léguas do litoral. Filho de um vendedor de drogas, que se
intitulava boticário e a esse oficio acumulava o importante cargo de
administrador do correio, crescera debaixo das vistas paternas até a idade de
doze anos completos, quando fora enviado, em tempos de festas e a título de
recordação saudoso, a um velho tio e padrinho, morador na cidade de Ouro Preto.
Esse parente, solteirão, de
gênio rabugento, misantropo, e dado às práticas da mais extrema carolice,
recebeu o pequeno com mau modo e manifesto descontentamento, tanto mais quanto
à presença de um estranho vinha interromper os hábitos de completa solidão a
que se acostumara desde longos anos.
Era homem que trajava ainda à
moda antiga, usando de sapatos de fivela, calções de braguilha, e cabeleira
empoada com o competente rabicho.
A sua reputação de pessoa
abastada era, em toda a cidade de Ouro Preto, tão bem firmada quanto a de
refinado sovina, chegando a voz público a afirmar que o seu dinheiro, e não pouco,
estava todo enterrado em numerosos buracos no chão da alcova de dormir.
—Meu amigalhote, disse o tal
padrinho a Cirino, poucos dias depois da chegada, fique sabendo que por
qualquer coisinha lhe sacudo a poeira do corpo. Dê‑se por avisado e ande
direitinho que nem um fuso.
O menino, transido de medo,
passou a tarde a chorar num canto sombrio da casa, onde relembrou, até lhe vir
o sono, a alegre vida de outrora, os folguedos que fazia com os camaradas na
viçosa relva do Cruzeiro, à entrada da Vila de Casa Branca e sobretudo os carinhos
da saudoso mamãe.
Em seguida aquela admoestação
preventiva fora o tio à casa de uns padres que tinham influência na direção do
Colégio do Caraça e com eles arranjara a admissão do afilhado naquele
estabelecimento de instrução.
Como finório que era,
conseguiu este resultado sem multa dificuldade, pagando‑o, a juros
compostos, com tentadoras promessas.
—Por ora, resmoneou ele, nada
poderei fazer pela educação do rapaz; mas... enfim... um dia... estou já velho,
e tratarei de mostrar que não me esqueci dos bons padres que tanto me ajudam
hoje.
Lançada, assim, a
eventualidade de uma verba testamentária, ficou decidida a entrada de Cirino na
casa colegial.
O pressentimento da falta de
proteção natural torna as crianças dóceis e resignadas. Também não fugiu nem
mugiu o caipirazinho ao penetrar no internato em que devia passar
tristonhamente os melhores anos da sua adolescência.
Ótimo negócio fizera
incontestavelmente o velho tio. Ia tão‑somente desembolsando boas
palavras e, por estar agarrado à vida, chegou até a levar ao cemitério dois dos
padres que se haviam prendido às esperanças de valiosa recordação.
Afinal como tinha por seu
turno que pagar o tributo universal, um belo dia morreu quando medos se
esperava, deixando muito recomendado um seu testamento, que foi, com efeito,
aberto com sofreguidão digna de melhor êxito.
Testamento havia, força é
confessar; não já testamento, mas extenso arrazoado, todo da letra do velho
barras de ouro, porém, ou maços de notas, nem sombra.
Esfuracou‑se a casa de
alto a baixo, levantaram‑se os soalhos, escutaram‑se todas as
paredes, quebraram‑se os móveis; nada apareceu, nada denunciou
esconderijo de riquezas, nem coisa que com isso se avizinhasse.
Descobriu‑se então que
aquele carola fora um pensador desabusado, antigo admirador de Xavier, o
Tiradentes, que nunca tivera vintém e vivera como filósofo, grazinando lá
consigo mesmo, de tudo e de todos.
Era o seu testamento uma
gargalhada meio de gosto, meio de ironia, atirada de além‑túmulo e
corroborada pelo legado sarcástico que em pomposo codicilo fazia aos padres do
Caraça da sua biblioteca "a fim, dizia ele, de ajudar a educação dos
mancebos e auxiliar as boas intenções dos seus honrados e virtuosos
diretores".
Procuraram‑se os tais
livros, e topou‑se com um baú cheio de obras, em parte devoradas pelo
cupim, que foram, incontinenti, entregues às chamas de um grande auto‑de‑fé.
Eram as Ruínas de Volney, 0 Homem da Natureza, as poesias eróticas de Bocage, o
Dicionário filosófico de Voltaire, o Citador de Pigault‑Lebrun, a Guerra
dos Deuses de Parny, os romances do marquês de Sade e outras produções de
igual alcance e quilate, algumas até em francês, mas anotadas por leitor
assíduo e mais ou menos convencido.
A conseqüência desse pesado
gracejo póstumo, que destruía de raiz o conceito de uma vida inteira, foi a
imediata exclusão de Cirino do Colégio do Caraça.
Tinha então dezoito anos, e,
como era vivo, conseguiu, apesar da natural pecha que lhe atirava o parentesco
com o estrambótico e defunto protetor, ir servir de caixeiro numa botica velha
e manhosa, onde entre drogas e receituários lhe foram voltando os hábitos da
casa paterno.
Leve era o trabalho, e o
aviamento de prescrições tão lento, que os ingredientes farmacêuticos ficavam
meses inteiros nos embaçados e esborcinados frascos à espera de que alguém se
lembrasse de tirá‑los daquele bolorento esquecimento.
Em localidade pequena, de
simples boticário a médico não há mais que um passo. Cirino, pois, foi aos
poucos, e com o tempo, criando tal ou qual pratica de receitar e, agarrando‑se
a um Chernoviz, já seboso de tanto uso, entrou a percorrer, com alguns medicamentos
no bolso e na mala da garupa, as vizinhanças da cidade à procura de quem se
utilizasse dos seus serviços.
Nessas curtas digressões
principiou a receber o tratamento de doutor. Então para melhor o firmar, depois
de se ter despedido da botica em que servia, matriculou‑se na escola de
farmácia de Ouro Preto com a intenção de tirar a carta de boticário, que o
Presidente de Minas Gerais tem o privilégio de conferir, dispensando documentos
de qualquer faculdade reconhecida.
Antes, porém, de conseguir a
posse daquele lisonjeiro documento, faz‑se Cirino, num dia de capricho,
de partida decidida e começou então a viajar pelos sertões povoados a medicar,
sangrar e retalhar, unindo a alguns conhecimentos de valor positivo outros que
a experiência lhe ia indicando ou que a voz do povo e a superstição lhe ministravam.
Toda a sua ciência assentava
alicerces no tal Chernoviz. Também era o inseparável vademecum; seu livro de
ouro; Homero à cabeceira de Alexandre. Noite e dia o manuseava; noite e dia o
consultava à sombra das árvores ou junto ao leito dos enfermos.
Contem Chernoviz, dizem os
entendidos, muitos erros, muita lacuna, muita coisa inútil e até disparatada;
entretanto no interior do Brasil é obra que incontestavelmente presta bons
serviços, e cujas indicações têm força de evangelho.
Conhecia Cirino o seu
exemplar de cor e salteado; abria‑o com segurança nos trechos que desejava
consultar e graças a ele formara um fundo de instrução real e até certo ponto
exata, a que unirá o estudo natural das utilíssimas e ainda pouco aproveitadas
ervinhas do campo.
A fim de aumentar os seus
recursos em matéria médica vegetal, foi a pouco e pouco dilatando as excursões
fora das cidades, para as quais voltava, quando se via falto de medicamentos ou
quando, digamo‑lo sem rebuço, queria gastar nos prazeres e folias o
dinheiro que ajuntara com a clínica do sertão.
Afinal, afeito a hábitos de
completa liberdade, resolvera empreender viagem para Camapuã e sul de Mato
Grosso, não só com o intuito de estender o raio das operações, como levado do
desejo de ver terras novas e longínquas.
Curandeiro, simples
curandeiro, ia por toda a parte granjeando o tratamento de doutor, que
gradualmente lhe foi parecendo, a si próprio, titulo inerente a sua pessoa e a
que tinha incontestável direito.
Bem formado era o coração
daquele moço, sua alma elevada e incapaz de pensamentos menos dignos;
entretanto no intimo do seu caráter se haviam insensivelmente enraizado certos
hábitos de orgulho, repassado de tal ou qual charlatanismo, oriundo não só da
flagrante insuficiência cientifica, como da roda em que sempre vivera.
Afastava‑se em todo
caso, ainda assim com os seus defeitos, do comum dos médicos ambulantes do
sertão, tipos que se encontram freqüentemente naquelas paragens, eivados de
todos os atributos da mais crassa ignorância, mas rodeados de regalias
completamente excepcionais.
Por toda a parte entra, com
efeito, o doutor; penetra no interior das famílias, verdadeiros gineceus; tem o
melhor lugar a mesa dos hospedes, a mais macia cama; é, enfim, um personagem
caldo do céu e junto ao qual acodem logo, de muitas léguas em torno, não já
enfermos, mas fanatizados crentes, que durante largos anos se haviam medicado
ou por conselhos de vizinhos ou por suas próprias inspirações e que na chegada
desse Messias depositam todas as ardentes esperanças do almejado
restabelecimento.
IV—A CASA DO MINEIRO
Está a cela na mesa. Torne o
bom acolhimento desculpável o mau passadio.
(Walter Scott,
Ivanhoé)
Quando assomaram os dois
viajantes à entrada do terreiro que rodeava a vivenda de Pereira, correram‑lhes
ao encontro quatro ou cinco cães altos e magros, que aos pulos saudaram o dono
da casa com uma cainçada de alegria.
Puseram‑se algumas
galinhas a girar atarantadas, ao passo que vários galos, já empoleirados na
cumeeira da morada, bradavam novidade e uns porcos e bacorinhos aqui e acolá se
erguiam dentre palhas de milho e, estremunhados, olhavam para os recém‑chegados
com olhos pequenos e cheios de sono.
Do interior da habitação, não
tardou a sair uma preta idosa mal vestida, trazendo atado à cabeça um pano
branco de algodão, cujas pontes pendiam ate ao meio das costas.
—Olá, Maria Conga, perguntou
Pereira, que há de novo por cá?
—A tenção, meu senhor, pediu
a escrava chegando‑se com alguma lentidão.
—Deus te faça santa,
respondeu o mineiro. Como vai a menina? Nocência?
—Nhã está com sezão.
—Isto sei eu, rapariga de Cristo;
mas como passou ela de trasantontem para cá?
—Todo o dia, vindo a hora,
nhã bate o queixo, nhor‑sim.
—Está bem... É que o mal
ainda não abrandou... Daqui a pouco, veremos. E a janta?... Está pronta? Venho
varado de fome. Que diz, Sr. Cirino? indagou, voltando‑se para 0
companheiro.
—Não se me dava também de
comer alguma coisa. Temos razão para. . .
—Pois então, interrompeu
Pereira, ponha pé no chão e pise forte que o terreno é nosso. Minha casa, ia
lho disse, é pobre, mas bastante farta e a ninguém fica fechada.
Deu logo o exemplo, e
descavalgou do cavalinho zambro, o qual foi por si correndo em direção a uma
dependência da casa com formas de tosca estrebaria.
Apeou‑se igualmente
Cirino, mas, ao penetrar numa espécie de alpendre de palha que ensombrada a
frente toda, mostrou repentina e viva contrariedade no gesto e na fisionomia.
—Ora, Sr. Pereira, exclamou
ele batendo com o tacão da bota num sabugo de milho, só agora é que me lembro
que as minhas cargas vão todas tomar caminho do Leal e aqui me deixam sem
roupa, nem medicamentos. Que maçada!
Devíamos ter esperado na boca
da sua picada.
Respondeu‑lhe o mineiro
todo desfeito em expansivo riso:
—Olé, pois o doutor é tão
novato assim em viagens? Então pensa que lá não deixei aviso seguro à sua
gente? Não se lembra de um ramo verde que pus bem no meio da estrada real?
—É verdade, confirmou Cirino.
—E então? Daqui a pouco a sua
camaradagem está batendo o nosso rasto. Entremos, que a fome já vai apertando.
Consistia a morada de Pereira
num casarão vasto e baixo, coberto de sapé, com uma porta larga entre duas
janelas muito estreitas e mal abertas. Na parede da frente que, talvez com o
peso da coberta, bojava sensivelmente fora da vertical, grandes rachas longitudinais
mostravam a urgência de serias reparações em toda aquela obra feita de terra
amassada e grandes paus‑a‑pique.
Ao oitão da direita existia
encostado um grande paiol construído de troncos de palmeiras, por entre os
quais iam rolando as espigas de milho, com o contínuo fossar dos porquinhos, que
dali não arredavam pé.
Corrido na frente de toda a
vivenda, via‑se um alpendre de palha de buriti, sustentado por grossas
taquaras, ligeiro apêndice acrescentado por ocasião de alguma passada festa, em
que o número de convidados ultrapassara os limites de abrigo da hospitaleira habitação.
Internamente era ela
dividida em dois lanços: um, todo fechado, com exceção da porta por onde se
entrava, e que constituiu o cômodo destinado aos hóspedes, outro, à retaguarda,
pertencia à família, ficando, portanto, completamente vedado às vistas dos estranhos
e sem comunicação interna com o compartimento da frente.
Era de barro compacto e
secado o chão desta sala, vendo‑se nele sinais de que as vezes ali se
acendia fogo: pelo que estavam o sapé do forro e o ripamento revestidos de
luzidia e tênue camada de picumã que lhes dava brilho singular como se tudo
tora jacarandá envernizado.
—Isto aqui, disse Pereira
penetrando na sala e sentando‑se numa tripeça de pau, não é meu, e de
quem me procura. Poucos vêm cá decerto parar, mas enfim é sempre bom contar com
eles... Minha gente mora na dependência dos fundos.
E apontou para a parede
fronteira à porta de entrada, fazendo um gesto para mostrar que a casa se
estendia além.
—Sr. Pereira, disse Cirino
recostando‑se a uma sólida marquesa, não se incomode comigo de maneira
alguma... Faça de conta que aqui não há ninguém
—Pois então, retorquiu o
mineiro, deite‑se um pouco, enquanto vou lá dentro ver as novidades. A
hora é mais de comer, que de cochilar; mas espere deitadinho e a gosto, o que é
sempre mais cômodo do que ficar de pé ou sentado.
Não desprezou o hóspede o
convite. Tirou o pala, puxou as botas e, cruzando‑as, fez dos canos
travesseiros, em que descansou a cabeça.
Quem se coloca em posição
horizontal, depois de vencidas umas estiradas léguas, adormece com certeza.
Depressa veio, pois, o sono cerrar as pálpebras do recém‑chegado e
intumescer‑lhe o peito com sossegada respiração.
Dormiu talvez hora e meia, e
mais houvera dormido, se não fosse acordado pelo tropel de animais que paravam,
e por grita de gente a pôr cargas em terra.
Assomou Pereira à porta com
ar jovial.
—Então, que lhe disse eu?
—De fato; estou agora
sossegado.
—E o Sr. tomou uma boa data
de sono.
—Quem sabe uma hora?
—Boa dúvida, se não mais. Fiquei todo esse tempo ao
lado de Nocência, que de frio batia o queixo, como se estivesse agora em Ouro
Preto, quando cai geada na rua.
—Então não vai melhor?
—Qual!... Depois que o Sr.
tiver comido, há de ir vê‑la. Está, pobrezinha, tão desfeita que parece doente
de uns três meses atrás.
—Felizmente, observou Cirino
com alguma enfatuação, aqui estou eu para pô‑la de pé em pouco tempo.
—Deus o ouça, disse Pereira
com verdadeira unção.
—Patrícios! O gente! gritou
ele em seguida para os dois camaradas chegados de pouco: vão mecês sentar
naquele rancho, ali. Perto há boa água, e lenha é o que não falta: basta
estender o braço. Olhem, dêem ração de fartar aos animais. Aproveitem o milho,
enquanto há: é a sustância desses bichos. Aqui, vendo‑o baratinho. Um
atilho por um cobre e não são espigas chuchas, nem grão soboró. Eh! lá! Maria
Conga, vamos com isso!... janta na mesa!...
Foram o chamado e as
indicações de Pereira compridas sem demora.
Apareceu a velha escrava, que
estendeu em larga e mal aplainada mesa uma toalha de algodão, grosseira, mas
muito alva, sobre a qual derramou duas boas caias de farinha de milho: depois,
emborcou um prato fundo de louça azul, e ao lado colocou uma colher e um garfo
de metal.
—Sente‑se, doutor,
disse Pereira para Cirino, agora não mariduco com mecê, porque já petisquei lá
dentro. Desculpe se não achar a comida do seu agrado.
Vinha nesse momento entrando
Maria Conga com dois pratos bem cheios e fumegantes, um de feijão‑cavalo,
outro de arroz.
—E as ervas? perguntou Pereira.
Não ha?
—Nhor‑sim. Eu trago já,
respondeu a preta, que com efeito voltou dai a pouco.
Tornou o mineiro a desculpar‑se
da insuficiência e mau preparo da comida.
—Não lhe dou hoje lombo de
porco: mas o prometido não cai em esquecimento, isto lhe posso assegurar.
—Estou muito contente com o
que há, protestou com sinceridade Cirino.
E, de fato, pelo modo por
que começou a comer, repetindo animadas vezes dos pratos, deu evidentes
mostras de que falava inteira verdade.
—Maria, disse Pereira para a
escrava, que se fora colocar a alguma distancia da mesa com os braços cruzados,
traz agora mel e café com doce.
—Ah! exclamou Cirino com
patente satisfação estirando os braços, fiquei que nem um ovo. O feijão estava
de patente. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que me deu este bom
agasalho.
—Amém! respondeu Pereira.
—Agora, amigo meu, disse o
moço depois de pequena pausa, estou às suas ordens; podemos ver a sua doentinha
e aproveitar a parada da febre para mim atalhá‑la de pronto. Em tais
casos, não gosto de adiantamentos.
Cobriu‑se o rosto do
mineiro de ligeira sombra: franziram‑se os sobrolhos, e vaga inquietação
lhe pairou na fronte.
—Mais tarde, disse ele com
precipitação.
—Nada, meu senhor, retrucou
Cirino, quanto mais cedo, melhor. É o que lhe digo.
—Mas, que pressa tem mecê?
perguntou Pereira com certa desconfiança.
—Eu? respondeu o outro sem
perceber a intenção, nenhuma. mesmo para bem da moça.
Acenderam‑se os olhos
de Pereira de repentino brilho.
—E como sabe que minha filha
é moça? exclamou com vivacidade,
—Pois não foi o Sr. mesmo
quem mo disse na prosa do caminho?
—Ah!... é verdade. Ela ainda
não é moça... Quatorze, quinze anos,
quando muito... Quinze anos e meio... Uma criança, coitadinha! . . .
—Enfim, replicou o outro,
seja como for. Quando o Sr. quiser, venha procurar. Enquanto espero, remexerei
nas minhas malas e tirarei alguns remédios para tê‑los mais a mão.
—Muito que bem, aprovou
Pereira, bote os seus trens naquele canto e fique descansado: ninguém bulira
neles... Quanto à minha filha... eu já venho... dou um pulo lá dentro, e...
depois conversaremos.
V—AVISO PRÉVIO
Onde há mulheres, aí se
congregam todos os males a um tempo.
(Menandro)
Nunca é bom que um Homem
sensato eduque seus filhos de modo a desenvolver-lhes demais o espírito
(Eurípedes, Medéia)
Filhos, sois para os homens o
encanto da alma.
( Menandro ) .
Estava
Cirino fazendo o inventário da sua roupa e já começava a anoitecer, quando
Pereira novamente a ele se chegou.
—Doutor, disse o mineiro,
pode agora Meca entrar para ver a pequena. Está com o pulso que nem um fio, mas
não tem febre de qualidade nenhuma.
—Assim e bem melhor,
respondeu Cirino.
E, arranjando
precipitadamente o que havia tirado da canastra, fechou‑a e pôs‑se
de pó.
Antes de sair da sala,
deteve Pereira o hóspede com ar de quem precisava tocar em assunto de gravidade
e ao mesmo tempo de difícil explicação.
Afinal começou meio
hesitante:
—Sr. Cirino, eu cá sou homem
muito bom de gênio, multo amigo de todos, muito acomodado e que tenho o coração
perto da boca como vosmecê deve ter visto...
—Por certo, concordou o
outro.
—Pois bem, mas... tenho um
grande defeito; sou muito desconfiado. Vai o doutor entrar no interior da
minha casa e... deve portar‑se como...
—Oh, Sr Pereira! atalhou
Cirino com animação, mas sem grande estranheza, pois conhecia o zelo com que os
homens do sertão guardam da vista dos profanos os seus aposentos domésticos,
posso gabar‑me de ter sido recebido no seio de muita família honesta e
sei proceder como devo.
Expandiu‑se um tanto o
rosto do mineiro.
—Vejo, disse ele com algum
acanhamento, que o doutor não e nenhum pé‑rapado, mas nunca é bom
facilitar... E já que não há outro remédio, vou dizer‑lhe todos os meus
segredos... Não metem vergonha a ninguém, com o favor de Deus; mas em negócios
da minha casa não gosto de bater língua... Minha filha Nocência fez 18 anos
pelo Natal, e é rapariga que pela feição parece moça de cidade, muito
ariscazinha de modos mas bonita e boa deveras... Coitada, foi criada sem mãe, e
aqui nestes fundões. Tenho outro filho, este um latagão, barbudo e grosso que
está trabalhando agora em portadas para as bandas do Rio.
—Ora muito que bem,
continuou Pereira caindo aos poucos na habitual garrulice, quando vi a menina
tomar corpo, tratei logo de casá‑la.
—Ah! é casada? perguntou
Cirino.
—Isto é, é e não e. A coisa
está apalavrada. Por aqui costuma labutar no costela do gado para São Paulo um
homem de mão‑cheia, que talvez o Sr. conheça... o Manecão Doca...
—Não, respondeu Cirino
abanando a cabeça.
—Pois isso é um homem às
direitas, desempenado e trabucador como ele só... fura estes sertões todos e
vem tangendo pontes de gado que metem pasmo. Também dizem que tem bichado
muito e ajuntado cobre grosso, o que é possível, porque não é gastador nem dado
a mulheres. Uma feita que estava aqui de pousada... olhe, mesmo neste lugar
onde estava mecê inda agorinha, falei‑lhe em casamento... isto é, dei‑lhe
uns toques .. porque os pais devem tomar isso a si para bem de suas famílias;
não acha?
—Boa dúvida, aprovou Cirino,
dou‑lhe toda a razão; era do seu dever.
—Pois bem, o Manecão ficou
ansim meio em dúvida; mas quando lhe mostrei a pequena, foi outra cantiga...
Ah! também é uma menina
E Pereira, esquecido das
primeiras prevenções, deu um muxoxo expressivo, apoiando a palma da mão aberta
de encontro aos grossos lábios
—Agora, está ela um tanto
desfeita: mas, quando tem saúde é coradinha que nem mangaba do areal. Tem
cabelos compridos e finos como seda de paina, um nariz mimoso e uns olhos matadores
. . .
Nem parece filha de quem
é...
A gabes imprudentes era
levado Pereira pelo amor paterno.
Foi o que repentinamente
pensou lá consigo, de modo que, reprimindo‑se, disse com hesitação
manifesta:
—Esta obrigação de casar as
mulheres é o diabo!.. Se não tomam estado, ficam juraras e fanadinhas...; se
casam podem cair nas mãos de algum marido malvado... E depois, as histórias! .
Ih meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de meter medo... São redomas de vidro
que tudo pode quebrar... Enfim, minha filha, enquanto solteira, honrou o nome
de meus pais... O Manecão que se agüente, quando a tiver por sua .. Com gente
de saia não há que fiar... Cruz! botam famílias inteiras a perder, enquanto o
demo esfrega um olho.
Esta opinião injuriosa sobre
as mulheres é em geral corrente nos nossos sertões e traz como conseqüência
imediata e prática, além da rigorosa clausura em que são mantidas, não só o
casamento convencionado entre parentes muito chegados para filhos de menor
idade, mas sobretudo os numerosos crimes cometidos, mal se suspeita possibilidade
de qualquer intriga amorosa entre pessoa da família e algum estranho.
Desenvolveu Pereira todas
aquelas idéias e aplaudiu a prudência de tão preventivas medidas.
—Eu repito, disse ele com calor,
isto de mulheres, não há que fiar. Bem faziam os nossos do tempo antigo. As
raparigas andavam direitinhas que nem um fuso... Uma piscadela de olho mais
duvidosa, era logo pau... Contaram‑me que hoje lá nas cidades...
arrenego!... não há menina, por pobrezinha que seja, que não saiba ler livros
de letra de forma e garatujar no papel... que deixe de ir a fonçonatas com
vestidos abertos na frente como raparigas fadistas e que saracoteiam em danças
e falam alto e mostram os dentes por dá cá aquela palha com qualquer tafulão
malcriado... pois pelintras e beldroegas não faltam.. Cruz!... Assim, também é
demais, não acha? Cá no meu modo de pensar, entendo que não se maltratem as
coitadinhas, mas também é preciso não dar asas às formigas... Quando elas ficam
taludas, atamanca‑se uma festança para casá‑las com um rapaz
decente ou algum primo, e acabou‑se a historia...
—Depois, acrescentou ele
abrindo expressivamente com o polegar a pálpebra inferior dos olhos, cautela e
faca afiada para algum meliante que se faca de tolo e venha engraçar‑se
fora da vila e termo... Minha filha...
Pereira mudou completamente
de tom:
—Pobrezinha... Por esta não
há de vir o mal ao mundo... É uma pombinha do céu... Tão boa, tão carinhosa!...
E feiticeira!!!
Não posso com ela.. só o
pensar em que tenho de entregá‑la nas mãos de um homem, bole comigo
todo... E preciso, porém. Há anos... devia já ter cuidado nesse arranjo, mas...
não sei... cada vez que pensava nisso... caia‑me a alma aos pés. Também é
menina que não foi criada como as mais... Ah! Sr. Cirino, isto de filhos, são
pedaços do coração que a gente arranca do corpo e bota a andar por esse mundo
de Cristo.
Umedeceram‑se
ligeiramente os cílios do bom pai.
—O meu mais velho pára, Deus
sabe onde... Se eu morresse neste instante, ficava a pequena ao desamparo...
Também, era preciso acabar com esta incerteza... Além disso, o Manecão
prometeu‑me deixá‑la aqui em casa, e deste modo fica tudo
arranjado... isto é, remediado, filha casada é traste que não pertence mais ao
pai.
Houve uns instantes de
silêncio.
—Agora, prosseguiu Pereira
com certo vexame, que eu tudo lhe disse, peço‑lhe uma coisa: veja só a
doente e não olhe para Nocência... falei assim a mecê, porque era de minha
obrigação... Homem nenhum, sem ser muito chegado a este seu criado, pisou
nunca no quarto de minha filha... Eu lhe juro... Só em casos destes, de extrema
percisão...
—Sr. Pereira, replicou Cirino
com calma, lá lhe disse e torno‑lhe a dizer que, como médico, estou há
muito tempo acostumado a lidar com famílias e a respeitá‑las. t: este meu
dever, e ate hoje, graças a Deus, a minha fama é boa... Quanto às mulheres, não
tenho as suas opiniões, nem as acho razoáveis nem de justiça. Entretanto, é
inútil discutirmos porque sei que isso são prevenções vindas de longe, e quem
torto nasce, tarde ou nunca se endireita... O Sr. falou‑me com toda a
franqueza, e também com franqueza lhe quero responder. No meu parecer, as
mulheres são tão boas como nos, se não melhores: não há, pois, motivo para
tanto desconfiar delas e ter os homens em tão boa conta... Enfim, essas suas
idéias podem quadrar‑lhe à vontade, e é costume meu antigo a ninguém
contrariar, para viver bem com todos e deles merecer o tratamento que julgo ter
direito a receber. Cuide cada qual de si, olhe Deus para todos nós, e ninguém
queira arvorar‑se em palmatória do mundo.
Tal profissão de fé, expedida
em tom dogmático e superior, pareceu impressionar agradavelmente a Pereira,
que fora aplaudindo com expressivo movimento de cabeça a sensatez dos conceitos
e a fluência da frase.
VI — INOCÊNCIA
Nesta donzela é que se acham
juntas a minha vida e a minha morte.
(Henoch, o Livro da Amizade)
Jamais vira coisa tão
perfeita como o seu rosto pálido. Os seus olhos franjados de sedosos cílios multo
espessos e o seu ar meigo e doentio.
(George Sand, os Mestres Galteiros)
Tudo, em Fenela, realçava a
idéia de uma miniatura. Além do mais havia em sua fisionomia e, sobretudo, no
olhar extraordinária prontidão, fogo e atilamento.
(Walter Scott, Peveril do Pico).
Depois das explicações dados
ao seu hóspede, sentiu‑se o mineiro mais despreocupado.
—Então, disse ele, se quiser,
vamos já ver a nossa doentinha.
— Com muito gosto, concordou
Cirino.
E saindo da sala, acompanhou
Pereira, que o fez passar por duas cercas e rodear a casa toda, antes de tomar
a porta do fundo, fronteira a magnifico laranjal, naquela ocasião todo
pontuado das brancas e olorosas flores.
—Neste lugar, disse o mineiro
apontando para o pomar, todos os dias se juntam tamanhos bandos de graúnas, que
é um barulho dos meus pecados. Nocência gosta muito disso e vem sempre coser
debaixo do arvoredo. ~ uma menina esquisita...
Parando no limiar da porta,
continuou com expansão:
—Nem o Sr. imagina... Às
vezes, aquela criança tem lembranças e perguntas que me fazem embatucar...
Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó.
...Pois não é que um belo
dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?... Que idéia!
.. Ainda há pouco tempo me
disse que quisera ter nascido princesa... Eu lhe retruquei: E sabe você o que
é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a clareza, é uma moca muito boa,
muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos lavrados no
pescoço e que manda nos homens... Fiquei meio tonto E se o Sr. visse os modos que
tem com os bichinhos?! . . . Parece que está falando com eles e que os
entende... Uma bicharia, em chegando ao pé de Nocência, fica mansa que nem
ovelhinha parida de fresco .. Se fosse agora a contar‑lhe histórias dessa
rapariga, seria um não acabar nunca... Entremos, que é melhor...
Quando Cirino penetrou no
quarto da filha do mineiro, era quase noite, de maneira que, no primeiro olhar
que atirou ao redor de si, só pode lobrigar, além de diversos trastes de formas
antiquadas, uma dessas camas, muito em uso no interior; altas e largas, feitas
de tiras de couro engradados. Estava encostada a um canto, e nela havia uma
pessoa deitada.
Mandara Pereira acender uma
vela de sebo. Vinda a luz, aproximaram‑se ambos do leito da enferma que,
achegando ao corpo e puxando para debaixo do queixo uma coberta de algodão de
Minas, se encolheu toda, e voltou‑se para os que entravam.
— Está aqui o doutor, disse‑lhe
Pereira, que vem curar‑te de vez
— Boas-noites, dona, saudou
Cirino.
Tímida voz murmurou uma
resposta, ao passo que o jovem, no seu papel de médico, se sentava num escabelo
junto à cama e tomava o pulso à doente.
Caía então luz de chapa
sobre ela, iluminando‑lhe o rosto, parte do colo e da cabeça, coberta por
um lenço vermelho atado por trás da nuca.
Apesar de bastante descorada
e um tanto magra, era Inocência de beleza deslumbrante.
Do seu rosto irradiava
singela expressão de encantadora ingenuidade, realçada pela meiguice do olhar
sereno que, a custo, parecia coar por entre os cílios sedosos a franjar-lhe as
pálpebras, e compridos a ponto de projetarem sombras nas mimosas faces.
Era o nariz fino, um
bocadinho arqueado; a boca pequena, e o queixo admiravelmente torneado.
Ao erguer a cabeça para
tirar o braço de sob o lençol, descera um nada a camisinha de crivo que vestia,
deixando nu um colo de fascinadora alvura, em que ressaltava um ou outro sinal
de nascença.
Razões de sobra tinha, pois,
o pretenso facultativo para sentir a mão fria e um tanto incerta, e não poder
atinar com o pulso de tão gentil cliente.
—Então? perguntou o pai.
—Febre nenhuma, respondeu
Cirino, cujos olhos fitavam com mal disfarçada surpresa as feições de
Inocência.
—E que temos que fazer?
—Dar‑lhe hoje mesmo um
suador de folhas de laranjeira da terra a ver se transpira bastante e, quando
for meia‑noite, acordar‑me para vir administrar uma boa dose de
sulfato.
Levantara a doente os olhos
e os cravara em Cirino, para seguir com atenção as prescrições que lhe deviam
restituir a saúde.
—Não tem fome nenhuma,
observou o pai; há quase três dias que só vive de beberagens. 11: uma ardência
continua, isto até nem parecem maleitas..
—Tanto melhor, replicou o
moço; amanhã verá que a febre lhe sai do corpo, e daqui a uma semana sua filha
está de pé com certeza. Sou eu que lhe afianço.
—Fale o doutor pela boca de
um anjo, disse Pereira com alegria.
—Hão de as cores voltar logo,
continuou Cirino.
Ligeiramente enrubesceu
Inocência e descansou a cabeça no travesseiro.
—Por que amarrou esse lenço?
perguntou em seguida o moço.
—Por nada, respondeu ela com
acanhamento.
— Sente dor de cabeça?
—Nhor‑não.
—Tire‑o, pois: convém
não chamar o sangue; solte pelo contrário, os cabelos,
Inocência obedeceu e
descobriu uma espessa cabeleira, negra como o âmago da cabiúna e que em
liberdade devia cair ate abaixo da cintura. Estava enrolado em bastas tranças,
que davam duas voltas inteiras ao redor do cocoruto
—É preciso, continuou
Cirino, ter de dia o quarto arejado e por a cama na linha do nascente ao
poente.
—Amanhã de manhãzinha hei de
virá‑la, disse o mineiro.
—Bom, por hoje então, ou
melhor, agora mesmo, o suador. Fechem tudo, e que a dona sue bem. A meia‑noite,
mais ou menos, virei aqui dar‑lhe a mezinha. Sossegue o seu espirito e
reze duas Ave‑Marias para que a quina faça logo efeito.
—Nhor‑sim, balbuciou a
enferma.
—Não lhe dói a luz nos
olhos? perguntou Cirino, achegando‑lhe um momento a vela ao rosto.
—Pouco... —um nadinha.
—Isso é bom sinal. Creio que
não há de ser nada.
E levantando‑se,
despediu‑se:
—Ate logo, sinhá‑moça.
Depois do que, convidou
Pereira a sair.
Este acenou para alguém que
estava num canto do quarto e na sombra.
—Ó Tico, disse ele, venha
cá...
Levantou‑se, a este
chamado, um anão muito entanguido, embora perfeitamente proporcionado em todos
os seus membros. Tinha o rosto sulcado de rugas, como se já fora entrado em
anos; mas os olhinhos vivos e a negrejante guedelha mostravam idade pouco
adiantada. Suas perninhas um tanto arqueadas terminavam em pés largos e chutos
que, sem grave desarranjo na conformação, poderiam pertencer a qualquer
palmípede.
Trajava comprida blusa pardo
sobre calças que, por haverem pertencido a quem quer que fosse muito mais
alto, formavam embaixo volumosa rodilha, apesar de estarem dobradas. A cabeça,
trazia um chapéu de palha de carandá sem copa, de maneira que a melena lhe
aparecia toda arrepiada e erguida em torcidas e emaranhadas grenhas.
—Oh! exclamou Cirino ao ver
entrar no círculo de luz tão estranha figura, isto deveras é um tico de gente.
—Não anarquize o meu Tonico,
protestou sorrindo‑se Pereira. Ele é pequeno... mas bom. Não é, meu
nanico?
O homúnculo riu‑se, ou
melhor, fez uma careta mostrando dentinhos alvos e agudos, ao passo que
deitava para Cirino olhar inquisidor e altivo.
—0 Sr. vê, doutor, continuou
Pereira, esta criaturinha de Cristo ouve perfeitamente tudo quanto se lhe diz e
logo compreende. Não pode falar... isto é, sempre pode dizer uma palavra ou
outra, mas muito a custo e quase a estourar de raiva e de canseira. Quando se
mete a querer explicar qualquer coisa, é um barulho dos seiscentos, uma
gritaria dos meus Recados, onde aparece uma voz aqui, outra acolá, mais
cristãzinhas no meio da barafunda.
—É que não lhe cortaram a
língua, observou Cirino.
—Não tinha nada que cortar,
replicou Pereira. De nascença é o defeito e não pode ser remediado. Mas isto é
um diabrete, que cruza este sertão de cabo a rabo, a todas horas do dia e da
noite. Não é verdade, Tico?
O anão abanou a cabeça,
olhando com orgulho para Cirino.
—Mas é filho aqui da casa?
perguntou este.
—Nhor‑não; tem mãe à
beira do Rio Sucuriú, daqui a quarenta léguas, e envereda de lá para ca num
instante, vindo a pousar pelas casas, que todas recebem com gosto, porque é bichinho que não faz mal a ninguém.
Aqui fica duas, três e mais semanas e depois dispara como um mateiro para a
casa da mãe. E uma espécie de cachorro de Nocência. Não é, Tico?
Fez o mudo sinal que sim e
apontou com ar risonho para o lado da moça.
Pereira, depois de todas
aquelas explicações que o anão parecia ouvir com satisfação, disse, voltando‑se
para este, ou melhor abaixando‑se em cima da sua cabeça:
—Agora, meu filho, vai ao
curral grande e apanha para mim uma mãozada de folhas de laranjeira da terra...
daquele pé grande que encosta na tronqueira.
Mostrou o homúnculo com expressivo
gesto que entendera e saiu correndo.
Ia Cirino deixar o quarto,
não sem ter olhado com demora para o lugar onde estava deitada a enferma,
quando Pereira o chamou:
—Ó doutor, Nocência quer
beber um pouco de água. . . Fará mal?
—Aqui não há limões‑doces?
indagou o moço.
— E um nunca acabar... e dos
melhores.
—Pois então faça sua filha
chupar uns gomos.
Pereira, depois de ter
paternalmente arranjado e dispostos os cobertores ao redor do corpo da menina,
acompanhou Cirino que, parado à porta de saída, estava mirando as primeiras
estrelas da noite.
—Vosmecê achou doutor,
perguntou o mineiro com voz um tanto trêmula, algum perigo no que tem aquele
anjinho
—Não, absolutamente não, respondeu
Cirino. Verá o Sr. que, daqui a três dias, sua filha não tem mais nada.
—Malditas febres!... Quando
não derrubam um cristão, o amofinam anos inteiros... Eu não quisera que minha
filha ficasse esbranquiçada, nem feia .. As moças quando não são bonitas, é
que estão doentes... Ah! mas ia me esquecendo dos limões‑doces... Que
cabeça! . . .
Adiantou-se Pereira no
terreiro e, pondo as mãos junto à boca chamou com voz forte:
—Ó Tico!
Prolongado grito respondeu‑lhe
a certa distância
O mineiro pôs-se a assobiar
com modulações à maneira dos índios.
Houve uns momentos de
silencio; depois veio correndo o anão e, chegando‑se para perto, mostrou
por sinais que não ouvira bem o recado.
—Uns limões‑doces, já!... Nocência está com
sede...
Disparou o pequeno como uma
seta, sumindo‑se logo na densa escuridão que já se espessara entre as
árvores do pomar.
VII— O NATURALISTA
A minha filosofia toda resume‑se
em opor a paciência as mil o uma contrariedades de que a vida está inçada.
(Hoffmann, O Reflexo Perdido).
Serena e quase luminosa
corria a noite. No paro campo do céu
cintilava, com iriante brilho, um sem‑número de estrelas, projetando na
larga fita da estrada do sertão, misteriosa e dúbia claridade.
Pelo caminhar dos astros
havia de ser quase meia‑noite; e, entretanto, a essa hora morta, em que
só vagueiam à busca de pasto os animais bravios do deserto, vinham a passo
lento, pelo caminho real, dois homens, um a pó, outro montado numa besta magra
e já meio estafada.
Mostrava o pedestre ser,
como de feito era, um simples camarada, e vinha com grossa e comprida vara na
mão rangendo diante de si lerdo e orelhudo burro, sobre cujo lombo se erguia
elevada carga de canastras e malinhas, cobertas por um grande ligam
Quem estava montado e
cavalgava todo encurvado sobre o selim, com as pernas muito estiradas e
abertas, parecia entregue a profunda cogitação. Devia ser homem bastante alto e
esguio e, como o observamos, apesar da hora adiantada da noite, com olhos de
romancista, diremos desde já que tinha rosto redondo, juvenil, olhos gázeos,
esbugalhados, nariz pequeno e arrebitado, barbas compridas, escorrido bigode e
cabelos muito louras. O seu traje era o comum em viagem: grandes botas, paletó
de alpaca em extremo folgado, e chapéu‑do‑chile desabado. Trazia,
entretanto, a tiracolo, umas quatro ou cinco caixinhas de lunetas ou quaisquer
outros instrumentos especiais, e na mão segurava um pau fino e roliço, preso a
uma sacola de fina gaze cor‑de‑rosa.
Homem de meia‑idade,
de fisionomia vulgar e balorda, era o camarada, e, pelos modos e impaciência
com que fustigava o animal de carga, indicava não estar afeito ao gênero de
vida que exercia.
Em silencio e na ordem
indicada, caminhava a tropinha: o burro carregado na frente, logo atrás o
inábil recoveiro, em seguida fechando a marcha, o viajante encarrapitado na
magra cavalgadura.
Houve momento em que, depois
de algumas pautadas de incitamento, pareceu querer o cargueiro protestar
contra o tratamento que tão fora de hora recebia e, fincando os pés na areia,
resolutamente parou.
Provocou a relutância,
porem, uma chuva de verdadeiras cacetadas que ecoaram longe e se confundiam
com os brados e pragas do camarada.
—Burro do diabo! berrava ele.
Mil raios te partam, bicho danado! Arrebenta de uma vez!... Vá para os
infernos! Entrega a carcaça aos urubus!
Durante uns bons minutos, o
cavaleiro, que fizera parar o seu animal, esperou pacientemente qualquer
resultado: ou que a renitente azêmola se desse afinal por convencida e
avançasse, ou então estourasse.
—Juque, disse ele de repente
com acento fortemente gutural e que denunciava a origem teutônica, se porretada
chove assim no seu lombo, você gosta?
O homem a quem haviam dado o
nome de Juca, voltou‑se com arrebatamento:
—Ora, Mochu, isto é um
perverso sem‑vergonha, que deve morrer debaixo do pau. Esta vida não me
serve!...
—Mas, Juque, replicou o
alemão com inalterável calma, quem sabe se a cangalha não esta ferindo a pobre
criatura?
—Qual! bradou o camarada,
isto é manha só. Conheço este safado, este infame, este...
E, levantando o varapau,
descarregou tal paulada no traseiro do animal que lhe fez soltar surdo gemido
de dor.
—Juque, observou o patrão em
tom pausado, quem sabe se na frente há pau caído ou pedra, que não deixe ele ir
para diante?
—Pedra, Mochu, e pau na
cabeça até rachá‑la, é que precisa este ladrão...
—Vê, Juque, insistiu o
alemão.
—Ora, Mochu...
—Vê, sempre...
Saiu resmungando o camarada
de detrás do borrego e deu a volta.
Na frente avistou logo o ramo
quebrado que Pereira deixara cair no meio da estrada para desviar os
acompanhadores de Cirino.
—Uê! Uê! exclamou com muita
surpresa, aqui esteve alguém e pôs este sinal para que neo se passasse...
.—Eu não disse a vóce,
replicou o cavaleiro com voz ate certo ponto triunfante. Asno tem razão: para
diante há alguma coisa.
—Mas na vila, contestou José,
nos disseram que o caminho vai sempre direitinho sem atrapalhação nenhuma...
—Na vila disseram isso,
confirmou o outro.
—E então?
E então? repetiu o alemão.
Houve uns segundos de
silêncio.
Depois o cavaleiro
acrescentou com a mesma imperturbável serenidade, e como que achando
explicação muitíssimo natural:
—Na vila muita gente não sabe
caminho. à:...
—Mil milhões de diabos,
interrompeu o camarada todo frenético, levem o gosto desandar por esses matos
do inferno a horas tão perdidas! Eu bem disse a Mochu, ninguém viaja assim.
Isto é uma calamidade. . .
— que, atalhou por seu turno
o patrão, o que é que adianta estar a berrar como um danado?... Olhe, antes, se
por ai vóce não vê algum caminho do lado.
Obedeceu o outro e sem
dificuldade achou a entrada da picada que levava a morada de Pereira.
—Esta aqui, Mochu, está aqui!
anunciou ele com alegria. ,: um trilho que corta a estrada e vai dar nalguma
casa pertinho ..
Mudando repentinamente de
tom, observou com voz tristonha:
—Contanto que ate lá não haja
alguma légua de beiço..
—Ah! eu não lhe disse,
respondeu o alemão. Agora toque barro devagarinho; ele anda que nem vento.
Pareceu o animal compreender,
o alcance moral da vitória que acabara de colher e prestes enveredou pela
trilha com alento novo e até desusada celeridade.
A razão é que também daí a
pouco sorvia ele, teimoso e marralheiro bicho, como soem ser os da sua espécie,
a bela água do ribeirão, em que se haviam refrescado as cavalgaduras de Cirino
e de Pereira.
Vlll—OS
HÓSPEDES DA MEIA‑NOITE
Sei,
sim, sei que é noite!
(Xavier
de Maistre, Viagem ao Redor do Meu Quarto).
Não tardou muito que os dois
noturnos viajantes começassem a ouvir
os latidos furiosos dos cães que, no terreiro de Pereira, denunciavam
aproximação de gente suspeita junto à casa entregue a sua vigilante guarda.
—Por aqui perto fica algum
rancho, Mochu, avisou o camarada; havemos enfim de descansar hoje .. Mas, que
gritaria faz a cachorrada!... São capazes de nos engolir antes que venha alguém
saber se somos cristãos ou não... Safa! Que canzoada!... Ó Mochu, o Sr. deve ir
na frente... rompendo a marcha...
— Vóce, respondeu o alemão,
bate neles com cacete...
—Nada, retrucou José com
energia, isso não é do ajuste... Quem está montado, caminhe adiante... Ainda
por cima agora essa!
Depois de resmonear algum
tempo, exclamou:
— Ah! espere, já me lembrei
de uma coisa.. . O filho do velho é mitrado. . .
E, dizendo esta palavra, de
um só pulo montou na anca do cargueiro, que, ao sentir aquele inesperado
acréscimo de peso, parou por instantes e com surdo ronco procurou lavrar um
protesto.
— Juque, observou o alemão
sem a menor alteração na voz, assim burro quebra cadeira. Depois morre... e
vóce tem de levar as cargas dele às costas...
Quis o camarada encetar nova
discussão, mas a esse tempo chegavam ao terreiro, onde o ataque furioso dos
cães justificou a medida preventiva de José, o qual entrou, todo encolhido
atrás das cargas, a gritar como um possesso:
—0 de casa! Eh! lá, gentes!
Ó amigos!
Aumentou a algazarra da
cachorrada por tal modo, que os tropeiros de Cirino, pousados no rancho
próximo, acordaram e bradaram juntos:
—Que diabo é isto? Temos
matinada de lobisomens?
Abriu‑se nesse momento
a porta da casa e apareceu Cirino na frente de Pereira, trazendo este uma vela
que com a mão aberta amparava da brisa noturna.
—Quem vem lá? clamaram os
dois a um tempo.
—Camarada e viajante,
respondeu com voz forte e simpática o alemão, achegando‑se à luz e
tratando de descer da cavalgadura. Quem é o dono desta casa?
—Está aqui ele, respondeu
Pereira levantando a vela acima da cabeça para dar mais claridade em torno de
si.
—Muito bem, replicou o recém‑chegado.
Desejo agasalho para mim e para o meu criado e peço muitas desculpas por chegar
tão tarde.
Aproximara‑se também o
José, cuidando logo, no meio de muxoxos e pragas, de pôr em terra a carga do
burrinho, o qual amarrara pelo cabresto a uma vara fincada no chão.
—Mas, observou Cirino, que
faz o Sr. por estas horas mortas a viajar? . . .
—Deixe o homem entrar,
atalhou Pereira, e acomodar‑se com o que achar... Pois, meu senhor,
desapeie. Bem‑vindo seja quem procura teto que é meu.
—Obrigado, obrigado,
exclamou com efusão o estrangeiro.
E, apresentando a larga mão,
apertou com tal forca as de Cirino e Pereira que lhes fez estalar os dedos.
Em seguida, penetrou na sala
e tratou logo de arranjar os objetos que trazia a tiracolo, colocando‑os
cuidadosa e metodicamente em cima da mesa, no meio dos olhares de espanto
trocados por quantos o estavam rodeando.
Na verdade, digna de reparo
era aquela figura à luz da bruxuleante vela de sebo; compridas pernas, corpo
pequeno, braços muito longos e cabelos quase brancos, de tão louros que eram.
—Será algum bruxo? perguntou
a meia voz Cirino a Pereira.
—Qual! respondeu o mineiro
com sinceridade, um homem tão bonito, tão bem limpo!
Entrara José com uma
canastra ao ombro e, descarregando‑a no canto menos escuro do quarto, julgou
dever, sem mais demora, declinar a qualidade e importância da pessoa que lhe
servia de amo.
—O Sr. aqui 6 doutor, disse
ele apontando para o alemão e dirigindo‑se para Cirino...
—Doutor?! exclamou este com
despeito.
— Sim, mas doutor que não
cura doenças. É alamão lá da estranja, e vem desde a cidade de São Sebastião do
Rio de Janeiro caçando anicetos e picando borboletas...
— Borboletas? interrompeu
com admiração Pereira.
— Acui cui! Por todo o
caminho vem apanhando bichinhos. Olhem... aquele saco que ele traz...
—O meu camarada, avisou com
toda a tranqüilidade e pausa o naturalista, é muito falador. Os senhores tenham
paciência... Ande, Juque, deixe de tagarelar! ...
—Não, protestou Pereira
levado de curiosidade, é bom saber com quem se lida... Então o Sr. vem matando
anicetos? mas para que, Virgem Santíssima! . . .
—Para quê? retrucou o
camarada descansando as mãos na cintura. O patrão e eu já temos mandado mais de
dez caixões todos cheinhos lá para as terras dele...
—Depois o pais fica sem borboletas,
respondeu Cirino, num assomo de despeitado patriotismo.
—Mas, como é que o Sr. se
chama? perguntou Pereira, voltando‑se para o alemão que estava virado
para a parede a contemplar um desses grandes e sombrios lepidópteros, da
espécie dos esfinges.
—Juque, disse ele sem lhe
importar a interpelação e acenando para o camarada, depressa... um alfinete,
dos grandes... dos maiores: . .
—Temos história, avisou José,
fazendo expressivo sinal a Cirino, o Sr. vai ver...
O naturalista, de posse de um
comprido acúleo, fincou‑o com segura e adestrada mão bem no meio do
inseto, o qual começou a bater convulsamente as asas e girar em torno do centro
a que estava preso.
—A pita! A pita! exclamou o
patrão. Vamos, Juque,
Satisfez José o pedido,
depois de abrir uma malinha, onde ia estavam enfileirados e espetados vinte ou
trinta bonitos bichinhos.
— É uma satúrnia .. e não
comum, murmurou o alemão fisgando num pedaço de pita o novo espécime, sobre o
qual derramou algumas gotas de clorofórmio, de um vidrinho que sacou dum dos
muitos bolsos da sobrecasaca.
—O Sr. é viajante zoologista,
não é? perguntou Cirino, depois que viu terminada a operação.
O interrogado levantou a
cabeça com surpresa e respondeu todo risonho:
— Sim, senhor; sim, senhor!
Como é que o Sr. o soube? Viajante naturalista, sim senhor! Eu vejo que o Sr. e
muito instruído... Muito bem, muito bem! Muita instrução!
E, abrindo uma carteira de
notas, escreveu logo umas linhas tortuosas.
—Ah! este também e doutor, disse
Pereira com certo orgulho por hospedar em sua casa sabichão de tal quilate.
—Oh, doutor? doutor!? Muito
bem, muito bem. Doutor que curra ?
—Sim, senhor, respondeu com
gravidade o próprio Cirino.
— Ah! . . . Ah! muito bem.
Pereira, porém, voltara à carga.
—Mas, como é que o Sr. se
chama?
—Meyer, respondeu o alemão,
para o servir.
—Mala ? perguntou o mineiro.
— Não, senhor, Meyer; sou da
Saxônia, da Alemanha.
—Isto deve ser o mesmo que
Mala na terra dele, observou Pereira, abaixando um pouco a voz.
O camarada José, no
entretanto, trouxera para dentro todas as malas e canastras e sem‑cerimônia
alguma intrometeu‑se na conversação.
—Este Mochu, disse, vem de
muito longe só por causa destas historias de barboletas, e com o negócio ganha
coco grosso... Quanto a mim
— Juque, atalhou Meyer com
fleuma, vai bota os animais no pasto.
—Não, disse Pereira, solte‑os
no terreiro até raiar o dia, roerão o que acharem; há por aí muito resto de
milho nos sabugos...
—Pois é o que fiz, declarou
o camarada; mas como lhes dizia, sou carioca do Rio de Janeiro, chamo‑me
José Pinho e venho de bem longe acompanhando este alamão, que é um homem muito
de bem.
— É verdade? indagou
Pereira, olhando para Meyer.
Este esbugalhou mais os
olhos e confirmou tudo com um sinal gutural que ecoou em toda a sala.
—Ele o que tem, continuou
José é que é muito teimoso. Eu lhe digo, sempre: Mochu, isto de viajar de noite
é uma tolice e uma canseira à‑toa... Qual! pensa lá no seu bestunto que
assim é melhor. Também a gente anda por estas estradas afora como se fosse alma
do outro mundo a penar... algum currupira... ou boitatá ... Cruzes!
—Pois, Sr. Mala, disse
Pereira, tome posse desta sala, e faça de conta que é sua... Se quiser uma
rede...
—Muito obrigado, muito
obrigado! . minha cama é canastra. Não se incomode...
—Amanhã então conversaremos,
concluiu Pereira, esfregando as mãos de contente.
Prometia‑lhe na
verdade a companhia boas ocasiões de dar largas à volubilidade, sobretudo com o
tal José Pinho, filho da Corte do Rio de Janeiro e, pelo que parecia, tagarela
de grande força.
—Assim, pois, disse Pereira,
durmam bem o restante da noite.
E abriu a porta para se
retirar.
—Ui! exclamou ele olhando
para o céu. Doutor, já passa muito da meia‑noite... Com a breca, o
Cruzeiro está virando de uma vez. . .
Cirino, que tornara a deitar‑se,
com presteza calçou as botas e tomou uns papeizinhos que de antemão preparara e
pusera a um canto da mesa.
—Não faz mal, disse, já
estou com tudo pronto e em tempo havemos de dar o remédio. Vá o Sr. deitar um
pouco de café num pires e acorde sua filha, caso esteja dormindo, como é muito
natural depois do suador.
Saiu então Pereira, levando
a vela e, acompanhado de Cirino, deu volta à casa para buscar a entrada dos
aposentos interiores.
Ficaram, pois, o alemão e
seu criado em completa escuridão; ambos, porém, já estirados a fio comprido, um
em cima das canastras tendo por travesseiro roliça maleta, outro sobre o ligal
aberto e estendido no meio do aposento.
—O Mochu, perguntou José, que
mastigava qualquer coisa, está já ferrado?
—Ferrado? replicou Meyer
levantando a cabeça. Que é isto agora?
—Pergunto se já pegou no
sono?
—Pois, Juque, se eu falo,
como é que posso estar dormindo?
—Então não quer petiscar?
—Comer, não é?
—Esta visto.
—Oh! Se tivesse!... Pensava
agora nisso...
—Pois eu estou manducando...
Quer um bocadinho?
—Que é que vóce me da?
—Rapadura com farinha de
milho... Está deveras de patente!... Gostoso como tudo...
—Então, Juque, passe‑me
um pouco.
Levantou‑se o ofertante
com toda a boa vontade e às apalpadelas começou a procurar a cama do patrão, o
que só conseguiu depois de ter esbarrado na mesa e numas cangalhas velhas
atiradas a um canto da sala.
Afinal agarrou num dos pés do
naturalista, a quem entregou uma nesga de rapadura e uns restos de farinha
embrulhados em papel, pitança mais que sóbria, que foi devorada com satisfação
pelo bom do saxônio.
IX — O MEDICAMENTO
Não tendes que labutar com
doente muito grave, e eis o serviço que de vós esporo...
(Hoffmann, A Porta Entaipada).
Quem me poderá dizer por que
me parece tão duro o leito?.. Por que passei esta noite que se me figurou tão
longa, sem gozar um momento de sossego?... Surge a verdade: em meu seio
penetraram as agudas setas do amor.
(Ovídio, Elegia n).
Quando Cirino entrou no
quarto de Inocência, já estava ela acordada. Sentara‑se o pai à cabeceira
da cama, a cujos pés se acocorara Tico, o anuo, sobre uma grande pele de onça.
—Então, perguntou o médico
tomando o pulso à mimosa doente, como se sente?
—Melhor, respondeu ela.
—Suou bastante?
—Ensopei três camisas.
—Muito bem... Agora a senhora
esta com a pele fresquinha que mete gosto. Isto de sezões, não e nada, se a
gente acode a tempo e o sangue não tem maus humores. Mas quando tomam conta do
corpo, nem o demo com elas pode. Que é do café? pediu ele em seguida a Pereira.
—Já vem já... Homem, vou eu
mesmo buscá‑lo, lá à cozinha. A Maria Conga está ficando uma verdadeira
lesma. Venha para
Levantando‑se então da
cadeira, indicou‑a a Cirino, a quem fez sentar antes de sair.
Ficou este, pois, ao lado da
menina e, como sobre o lindo rosto batesse de chapa a luz colocada numa
prateleira da parede, pôs-se a contemplá‑la com enleio e vagar, ao passo
que da sua parte o anão lhe deitava olhares inquietos e algo sombrios.
Pousara Inocência a cabeça no
travesseiro e, para ocultar a perturbação de se ver tão de perto observada,
fingia dormir. Pelo menos tinha as grandes pálpebras cerradas e o rosto sereno;
mas arfava‑lhe apressado o peito e, de vez em quando, fugaz rubor lhe
tingia as faces descoradas.
Pereira tardava; e Cirino com
os olhos fixos, a fisionomia meditativa e um pouco de palidez, que denunciava a
intima comoção, não se fartava de admirar a beleza da gentil doente.
Uma vez, entreabriu os olhos
e a medo atirou um olhar que se cruzou com o do mancebo, olhar rápido,
instantâneo, mas que lhe repercutiu direito ao coração e lhe fez estremecer o
corpo todo.
Sem saber por que, batia‑lhe
o queixo e um arrepio de frio lhe circulava nas velas.
—Sente mais febre? perguntou
Cirino muito baixinho.
—Não sei, foi a resposta, e
resposta demorada.
—Deixe‑me ver o seu
pulso.
E tomando‑lhe a mão,
apertou‑a com ardor entre as suas, retendo‑a, apesar dos ligeiros
esforços que para a retrair, empregou ela por vezes.
Nisto, entrou Pereira.
Inocência fechou com presteza os olhos e Cirino voltou‑se rapidamente,
levando um dedo aos lábios para recomendar silêncio.
—Está dormindo, avisou com
voz sumida.
—Ora, disse Pereira no mesmo
tom, a tal Maria Conga deixou entornar a cafeteira, de maneiras que precisei
fazer outra porção. Demorei muito?
—Não, respondeu Cirino com
toda a sinceridade.
—Mas agora, observou Pereira,
é mister acordar a pequerrucha.
—Não há outro remédio.
Chegou‑se o pai à cama
e, com todo o carinho, chamou: Nocência! Nocência!
E como não a visse despertar
logo, sacudiu‑a com brandura ate que ela abrisse uns olhos espantados.
—Apre! Que sono! disse o
bondoso velho. Num instante que fui lá dentro?!... Vamos, são horas de tomar a
mezinha.
Deitara Cirino sulfato de
quinina no café e diluía‑o vagarosamente.
—Olhe, dona, aconselhou ele,
beba de um só trago e chupe, logo depois, uns gomos de limão‑doce.
—Então é muito mau?
choramingou a doente.
—É amargo; mas num gole mecê
toma isto.
—Papai, recalcitrou a moça,
não quero... eu não quero.
—Ora, filhinha do meu
coração, não se canhe; e preciso... Amanhã há de você sentir‑se boa; não
é doutor?
—Com certeza, se tomar esta
poção, assegurou Cirino.
—Depois, quando eu u lá à
vila, hei de trazer para você uma coisa bonita... uns lavrados, Ouviu?
—Nhor‑sim.
—Ande, Tico, acrescentou o
mineiro voltando‑se para o anão, vai depressa buscar limão‑doce; na
cozinha há um meio cascado.
—Tome, dona, implorou por
seu turno Cirino, aproximando o pires da boca da formosa medicanda.
Levantou uns olhos súplices
e, agarrando resolutamerte o remédio, bebeu‑o todo de um jacto.
Depois deu um suspiro de
enjôo e ficou com os lábios entreabertos, à espera que o adocicado sumo do
limão lhe tirasse o amargor do medicamento.
—Então, exclamou Pereira,
era maior o medo que a coisa em si! Você tomou a dose numa relancina.
—Amanhã de manhã, ou melhor,
hoje de madrugada, temos que engolir outra dose,. declarou Cirino. Depois, a
dona, poderá levantar‑se.
—Ainda outra? protestou
Inocência com gesto de amuo.
—Nhã‑sim; é de toda a
percisão, replicou o amoroso médico, modificando pela suavidade da voz a dureza
das prescrições.
—Decerto, corroborou também
Pereira.
—Depois deve mecê deixar de
comer carne fresca, ervas, ovos ou farinha de milho por um mês inteiro, e de
provar leite por muito tempo. Há de sustentar‑se só de carne‑de‑sol
bem seca, com arroz quase sem sal e por cima tomará café com muito pouco doce.
—Fica ao meu cuidado,
asseverou Pereira, olhar para o rejume .
—Agora, durma bem e não se
assuste de lhe aparecer zoeira nos ouvidos e ate de se sentir mouca. Isto é da
mezinha; pelo contrário, é muito bom sinal.
—Estes doutores sabem tudo,
murmurou Pereira, dando ligeiro estalo com a língua.
Não se descuidou Cirino,
antes de se retirar, de novamente tomar o pulso e, à conta de procurar a
artéria, assentou toda a mão no punho da donzela, envolvendo‑lhe o braço
e apertando‑o docemente.
Saiu‑se mal de tudo
isso; porque, se tratava da cura de alguém, para si arranjava enfermidade e bem
grave.
Com efeito, de volta à sala
dos hóspedes, não pode mais conciliar o sono e, sem que houvesse conseguido
fruir um só momento de descanso, viu ralar a aurora. Parecia‑lhe que o
peito ardia todo em chamas a subirem‑lhe às faces, abrasando‑lhe o
pensamento.
Aquele venusto rosto que
contemplara a sós; aqueles formosos olhos, cujo brilho a furto percebera,
aquele colo alabastrino que a medo se descobrira, aquelas indecisas curvas de
um corpo adorável, todo aquele conjunto harmonioso e encantador que vira à luz
de frouxa vela, fatalmente o lançavam nesse pélago semeado de tormentos que se
chama paixão!
Efeitos de tão temível mal já
ia o mísero sentindo. Inquieto se revolvia (fato virgem!) no duro leito, ao passo
que a respiração isocrônica e ruidosa do companheiro de hospedagem, o alemão
Meyer, respondia ao sonoro ressonar do gárrulo José Pinho.
X—A CARTA DE RECOMENDAÇÃO
Aquele bom velho, cuja
benévola hospitalidade não tinha limites, Julgara do seu dever tratar do melhor
modo possível a Waverley, tosse ele o último camponês saxônio... Mas o título
de amigo de Fergus fê‑lo considerar como precioso depósito, merecedor de
toda a sua solicitude e da mal" atenta obsequiosidade.
(Walter Scott, Waverley)
Quando Meyer
abriu os olhos, já achou Cirino de pé, arranjando uma canastrinha.
—Oh! exclamou ele em tom de
louvor, o Sr. madruga muito.
—É verdade, replicou o outro,
um tanto melancólico.
—E Juque ainda dorme!... Este
Juque parece mais um tatu do que um homem... Todo o dia o estou acordando...
E juntando o feito ao dito,
foi o pachorrento amo sacudir o criado. Depois de se espreguiçar à vontade,
sentou‑se este no couro em que dormira, e pôs-se a esfregar com todo o
vagar os olhos papudos ainda cheios de sono.
—Deus esteja com vossuncês,
disse ele entre dois bocejos. Ora, Mochu, o Sr. acordou‑me no melhor do
sono. Estava sonhando que voltara para o Rio de Janeiro e ia acompanhando uma
música pelo Largo do Rocio afora. Conhece o Largo do Rocio? perguntou a Cirino.
—Não, respondeu‑lhe
este.
—Xi! Que largo! Hem, Mochu?
E novo bocejo cortou‑lhes
a descrição da louvada praça.
—Juque, exclamou Meyer
coçando a barba com ar alegre, o dia hoje está claro e bonito. Havemos de
apanhar pelo menos umas doze borboletas novas.
—E quanto me dá Mochu, se eu
agarro vinte e cinco?
—Vinte e cinco? repetiu o
alemão com alguma dúvida.
—Sim, vinte e cinco... e
até mais, vinte e seis. Diga, quanto me
dá?
—Oh! eu dou a vóce dois mil‑réis.
—Está dito, fecho o negócio. Eu
cá sou assim, pão pão, queijo queijo; tão certo como chamar‑me José
Pinho, seu criado, carioca de nascimento e batizado na Freguesia da Lagoa, lá
para as bandas do Broco, e...
—Agora, interrompeu Meyer, vá
buscar água para lavar a cara, e tire sabão e pente na canastra.
—Olhe, Sr. doutor, continuou
o camarada sentado sempre e voltando‑se para o lado de Cirino, esta minha
vida é levada de seiscentos mil diabos. Nós saímos do Rio já há mais de dois
anos; não é, Mochu?
—Vinte e três meses,
retificou Meyer.
—Pois bem; desde esse tempo
estamos a viajar como se fosse penitencia de confissão. E não é só isso, não,
senhor. Todos os dias ando pelo menos nove léguas correndo aqui e acolá, dando
voltas, caindo, atrás dos bichos voadores...
— Juque! tentou atalhar Meyer,
olhe...
—Pois é o que lhe digo,
prosseguiu José Pinho. Tenho hoje uma raiva daquelas porcarias todas... Nem sei
por que, Nosso Senhor Jesus Cristo foi criar esta súcia de criaturas sem
préstimo... Enfim, Ele é quem sabe. . . Quanto a mim, se pudesse, atacava fogo
em todas as lagartas, porque da lagarta é que nascem esses anicetos, que estão
enchendo mundos... Mas, veja, Sr. doutor, lá na terra deste homem,— (coitado, é
bem bonzinho e me estima muito) ! — valem esses bichos mais do que ouro em
pó... Também, se o Mochu não gostasse de mim, havéra de ser muito ingrato...
Outro como eu não encontra mais, não, senhor... Tenha a santa paciência .. não,
senhor, isto é o que lhe posso afiançar.
No meio desse fluxo de
palavras, Meyer fora em pessoa procurar na canastra o pente e o sabão.
Mostrando os objetos ao
falador, ordenou com energia:
—Cale a boca, Juque, cale a
boca, tagarela! Vá buscar água já; senão... não levo vóce ao mato hoje.
Levantou‑se de pronto
José Pinho e meio a resmungar saiu, tomando uma das canastras.
—Esse camarada, disse Meyer
depois de algum silêncio e para explicar o seu procedimento, é uma pessoa muito
boa... fiel e inteligente. Mas... fala demais. É‑me precioso, porque
apanha borboletas com muito talento e jeito.
Entrando José Pinho e ouvindo
o final do elogio, depôs, com ar de grave importância, a bacia no chão.
Diante dela, e depois de
tirar do nariz os óculos, colocou‑se logo Meyer, ou antes acocorou‑se
e, em relação ao tronco, tão compridas eram as suas pernas, que, inclinado por
sobre a água, lhe ficava a cabeça à altura dos joelhos.
Levou a ablução uns largos
minutos e foi com os cabelos grudados ao casco e escorrendo água que ele se
levantou, justamente quando entrava Pereira.
Nesse momento, assumira o
tipo daquele homem proporções do mais pasmoso grotesco; entretanto, tão vária 6
a apreciação de cada um, tão caprichoso o julgamento individual, que o mineiro,
acercando‑se de Cirino, disse baixinho:
— Vosmecê já reparou, amigo,
como este estranja é figura bonita? Tão arco! e que olhos que tem!... As
mulheres hão de perder a cachola por causa deste bicharrão... Então, Sr. Mala,
continuou interpelando em voz alta o seu espécime de beleza masculina, que tal,
passou aqui a noite?
—Oh! Sr. Pereira!...
Desculpe, se o não vi... Estava sem óculos. Já lhe respondo... espere um
bocadinho.
E ainda todo molhado, correu
a tomar os óculos, que assentou em cima dos salientes lúzios.
—Agora, muito bem... Dormi,
meu bom amigo, como quem não tem pecados...
—Então, observou Cirino,
quase mau grado seu, tenho‑os eu; porque, da meia‑noite para cá,
não pude mais pregar olho...
—Isto e volta de algum
namoro, replicou Pereira, batendo‑lhe com força no ombro e rindo‑se.
Cirino descorou ligeiramente.
— Sim, vosmecê é moço... deixou
lá por Minas algum rabicho, e de vez em quando o coração lhe comicha... Está na
idade...
—Pode muito bem ser, apoiou
Meyer com gravidade.
—Não é? insistiu Pereira.
Ora, confesse... não lhe fica mal... Isso 6 volta de enguiço...
—Juro‑lhes, balbuciou
Cirino.
—Oh! se é, confirmou José
Pinho, que julgou dever meter o bedelho na conversa, eu no Rio de Janeiro...
Negócio de salas, é de por um homem tonto. Não lhes conto nada, mas uma vez...
Voltou‑se o alemão para
ele com calma, e, interrompendo‑o:
—Juque, vá ver onde estão
burrinhos e não bote sua colher, quando gente branca está falando com o seu
patrão.
E, como o camarada quisesse
retorquir:
—Ande, ande, verberou sempre
sereno, discussão nunca serviu para nada.
Deu José meia dúzia de
muxoxos abafados e foi embora, praguejando entre dentes.
Novamente supôs Meyer dever
desculpá‑lo.
—Bom homem, disse, bom
homem... porém fala terrivelmente!
—Mas agora me conte,
perguntou Pereira com ar de quem queria certificar‑se de coisa posta
muito em dúvida, deveras o senhor anda palmeando estes sertões para fisgar
anicetos?
—Pois não, respondeu Meyer
com algum entusiasmo; na minha terra valem muito dinheiro para estudos, museus
e coleções. Estou viajando por conta de meu governo, e já mandei bastantes
caixas todas cheias... E muito precioso!
—Ora, vejam só, exclamou
Pereira. Quem havéra de dizer que até com isso se pode bichar! Cruz! Um homem
destes, um doutor, andar correndo atrás de vaga‑lumes e voadores do mato,
como menino às voltas com cigarras! Muito se aprende neste mundo! E quer o
senhor saber uma coisa? Se eu não tivesse família, era capaz de ir com vosmecê
por esses fundões afora, porque sempre gostei de lidar com pessoas de qualidade
e instrução... Eu sou assim... Quem me conhece, bem sabe. Homem de repentes... Vem‑me
cá uma idéia muito estrambótica às vezes, mas embirro e acabou‑se;
porque, se há alguém esturrado e teimoso, é este seu criado... Quando empaco,
empaco de uma boa vez... Fosse no tempo de solteiro, e eu me botava com o
senhor a catar toda essa bicharada dos sertões. Era capaz de ir dar com os
ossos lá na sua terra... Não me olhe pasmado, não... Isso lá eu era... Nem que
tivesse de passar canseiras como ninguém... O caso era meter‑se‑me
a tenção nos cascos... Dito e feito; acabou‑se.. Fossem buscar o remédio
onde quisessem... mas duvido que o achassem.
—Como vai a doente? perguntou
distraidamente Cirino, cortando aquela catadupa de palavras.
—Ora estou muito contente. Já
tomou nova dose, e parece quase boa. Está com outra feição. O Sr. fez um
milagre...
—Abaixo de Deus e da Virgem
puríssima, concordou Cirino com toda a modéstia.
—O Sr. não cura? perguntou
Pereira a Meyer.
—No senhor. Sou doutor em
filosofia pela universidade de Iena, onde...
—Isso é nome de bicho? atalhou o mineiro.
—No senhor. É uma cidade.
—Ninguém diria... Pois, Sr.
Mata, continuou Pereira apontando para Cirino, ali está um com quem moléstias
não brincam.
—Ah! rouquejou o alemão
abrindo ainda mais os olhos. Estimo muito conhecê‑lo como notabilidade...
Nestes lugares aqui 6 muito raro...
—Se é.! exclamou Pereira.
Felizmente passou por cá nem de
propósito, para pôr de pé a menina... uma filha minha... Caiu‑me a talho
de foice e...
Não pôde Cirino furtar‑se
a um movimento de vanglória. Com ar grave interrompeu:
—Não fale nisso, Sr. Pereira;
o caso era simples. Febre das enchentes... não vale quase nada. Vi logo o que
era de urgência; um simples suador, duas ou três doses de sulfato de quinina...
e ficou tudo sanado... E simplicíssimo... O estômago não estava sujo... não
havia necessidade de vomitório...
Ouvira Meyer estas indicações
terapêuticas com os olhos muito fitos em quem as dava: depois, voltando‑se
para Pereira, disse com um aprobatório aceno de cabeça:
—Pom médico! Com médico!
Desse momento em diante,
votou Cirino ao alemão a mais decidida da simpatia; e Pereira, presenciando o
congraçamento daqueles dois homens, de si pára si ilustres e incontestáveis
sabichões, sentiu‑se feliz por abrigá‑los a um tempo em sua humilde
vivenda.
—Então, disse o mineiro
voltando à questão das borboletas, com o que seu governo paga‑lhe bem,
não Sr. Maia?
—Suficientemente... demais,
todas as autoridades deste belo pais muito me ajudam. Tenho muitos ofícios...
cartas de recomendação. Olhe, quer ver? Juque, Juque! chamou Meyer, sem reparar
que o criado há muito se fora do quarto, dê‑me... É verdade, foi levar os
burrinhos à água. .. Não faz mal... Mostro‑lhe já tudo...
—E, procurando entre as
cargas uma malinha coberta de pano impermeável, abriu‑a e tirou um maço
de cartas cuidadosamente numeradas, com fitas de diversas cores.
—Isto é para Miranda, em Mato
Grosso. Isto para Coxim, Cuiabá... para Poconé, Diamantina... isto são cartas
cujos donos não encontrei, e que hão de voltar para as pessoas que as
escreveram.
—E são muitas? perguntou
Pereira.
— Três ou quatro. Vejamos...
uma é para o Sr. João Manuel Quaresma, no Pitangui; esta, para o Sr. Martinho
dos Santos Perreira, em Piumi...
—Que é? perguntou o mineiro
levantando‑se de um pulo e mostrando muita admiração. Leia outra vez...
leia por favor...
Meyer obedeceu.
—Mas este nome é o meu!
exclamou Pereira. Esta carta então é para mim...
—Hu, hu! gaguejou o alemão
boquiaberto. É muito currioso isto!
—Sou eu, sou eu mesmo! continuou
o mineiro abrindo os diques à volubilidade. Está claro, claríssimo!... Quando
me escreveram, pensavam que eu ainda morava lá em Piumi. Pois, se nunca contei
a ninguém em que buraqueira me vim meter... Abra a carta sem susto... Oh!
Senhora Sant'Ana, que dia hoje! Quem diria? Uma carta! Uma carta nestas
alturas! Pode ler, Sr. Maia... Estou doido por saber quem se deu ao trabalho de
me escrever... Martinho dos Santos Pereira, de Piumi... sou eu! Que dúvida: não
há dois. Veja só o nome... pelo amor de Deus, o nome de quem me direge a carta.
Rompeu o alemão com alguma
dúvida e escrúpulo o selo; correndo com os olhos a lauda escrita, procurou a
assinatura e pausadamente leu "Francisco dos Santos Pereira".
—Gentes! bradou o mineiro no
auge da alegria, meu irmão... o Chiquinho!... E eu que o fazia morto e
enterrado!... Nosso Senhor o conserve por muitos anos!... O Chiquinho!... Já se
viu coisa ansim?... Como se anda neste mundo, hem, Sr. Cirino? Quem havéra de
dizer que este homem, que aqui chegou ontem por acaso e alta noite, havia de
trazer na canastra uma carta de um irmão que não vejo há mais de quarenta
anos?!... Ora esta!... São voltas deste mundo... As pedras se encontram... Foi
em 1819... não, em 20... Mas depressa... leia a carta.. vamos ver o que me diz
o Chiquinho... Da família passava por ser o de mais juízo; também era o mais
velho de todos nós... O Roberto, o caçula... Seja o senhor muito bem‑vindo
nesta casa... Depois de tantos anos, trazer‑me noticias da minha gente!
Cortou Meyer aquele movimento
de efusão que prometia ir longe, começando a ler com todo o vagar ou, melhor, a
soletrar a carta, cujos garranchos, que não letras, por vezes se viu obrigado a
encostar aos olhos para poder decifrar.
"Martinho, dizia a
despretensiosa epístola, dirijo‑te estas mal traçadas linhas só para
saber da tua saúde e dizer que o portador desta um senhor de muita leitura e
vai para os sertões brutos, viajando e estudando países e povos. Veio‑me
do Rio de Janeiro muito recomendado. Peço que o agasalhes, não como a um
transuente qualquer, mas como se fosse eu em pessoa, teu irmão mais velho e
chefe da nossa família ... "
—Pobre mano! exclamou
Pereira meio choroso.
"E homem, continuou
Meyer, de bastante criação. Adeus, Martinho. Eu estou estabelecido na Mata do
Rio, numa fazendola. Tenho cinco filhos, três machos e duas famílias, estas
casadas, e que me deram netos; já faz bastante tempo. Não estou muito quebrado
de forças. H§ mais de oito anos que não tenho notícias tuas. Soube que o
Roberto tinha morrido no Paranan..."
—Roberto?... Coitado do
Roberto! atalhou Pereira com voz angustiosa.
E repentinamente,
representando‑lhe a memória os tempos da infância, arrasaram‑se‑lhe
os olhos de lágrimas.
"Sem mais aquela
concluiu Meyer, adeus. Felicidade e saúde. Teu irmão, Francisco dos Santos
Pereira".
—Deveras, disse o mineiro
depois de breve silêncio, adiantando‑se para o alemão e apresentando‑lhe
a destra aberta, o Sr. me deu um fartão de alegria. Toque nesta mão e, quando
ela se levantar para bulir num só cabelo de sua cabeça ou de alguém da sua
família qualquer que seja o agravo que me possam fazer, seja ela logo cortada
por Deus, que nos está ouvindo.
—Obrigado, Sr. Pereira,
respondeu com animação o outro, retribuindo o aperto de mão e corroborando‑o
com um concerto de garganta.
—Sim, senhor, continuou o
mineiro. Esta carta vale, para mim, mais que uma letra do Imperador que governa
o Brasil. É o que lhe digo, Sr. Maia...
—Meyer, corrigiu o alemão
apoiando com força na última sílaba, Meyer.
—Ah! é verdade. É preciso
traduzir Meyer, Meyer. Agora já atinei com a coisa. Mas como ia lhe dizendo,
esta casa é sua. Meu irmão, o meu irmão mais velho deu‑me ordem que eu o
recebesse como se fosse ele mesmo em pessoa, o Chico;... acabou‑se.
O Sr. é como se fosse dos
meus. Não há que ver, 6 o que ele quer. Entendi logo; o mais 6 ser multo bronco
e, com o favor de Deus, não me tenho nesta conta. O Sr. ponha e disponha de
mim, da minha tulha, das minhas terras, meus escravos, gado... tudo o que aqui
achar. Parta e reparta.. Quem está falando aqui, não 6 mais dono de coisa
nenhuma;... é o Sr.... Meu irmão me escreveu, 6 escusado pensar que não sei
respeitar a vontade de meus superiores e parentes. É como se recebesse uma
ordem do punho do Sr. D. Pedro n, filho de D. Pedro I, que pinchou os emboabas
para fora desta terra do Brasil e levantou o Império nos campos do Ipiranga, lá
para os lados de São Paulo de Piratininga, onde houve em seu tempo colégio de
padres e fradaria grossa, e donde os mamalucos saiam para ir por esses mundos afora
bater índios brabos e caçar onças, botando bandeiras até na costa do Paraguai e
no Salto do Paraná, tanto assim que deram nas reduções e trouxeram de lá uma
imundície de gente amarrada, por sinal que muitos amolaram a canela em caminho,
e só chegaram uns cento e tantos, tão magros que...
Enfiava Pereira todas estas
frases com surpreendedora rapidez, ao passo que Meyer o contemplava extático, à
espera que a torrente de palavras lhe desse tempo e ocasião de exprimir algum
vocábulo de agradecimento.
Só, porem, minutos depois, e
a custo, 6 que ele pronunciou um áspero e retumbante:
—Obrigado!
E acrescentou em seguida:
—Mas o senhor fala que nem
cachoeira. E não cansa?
—Qual! replicou o mineiro com
ufania. A gente da minha terra é de seu natural calada; eu, não; mesmo porque
fui criado em povoados de muita civilidade...
Tomando esse novo tema,
começou novamente a discorrer, mostrando visível contentamento por achar na
estimável pessoa do Sr. Guilherme Tembel Meyer um ouvinte de força, incapaz de
pestanejar e cuja fixidez de olhos era prova evidente de que tomava interesse
por todos os assuntos possíveis de conversação.
XI—O ALMOÇO
Comam e bebam: nada de
cerimônias comigo. Minhas casa e franca; eu também. Façam provisão de alegria e
de mim disponham sem constrangimento.
(Plauto. Miles Gloriosus).
Levantou-se de repente Cirino
da marquesa em que se sentara.
—Tenho vontade de amanhã
seguir viagem...
—Quê, doutor? protestou
Pereira. Partir já? isso nunca... Vosmecê ainda não curou de todo minha filha.
Pago‑lhe todos os prejuízos da sua estada aqui... se for preciso.
—Oh! Sr. Pereira, reclamou
por seu turno o jovem, isso quase me ofende...
—Desculpe‑me, e muito;
mas, antes de duas semanas, não o deixo sair daqui.
—Porém...
—Doentes não lhe hão de
faltar. A minha rancharia vai ser visitada como se fosse casa de presepe, e o
Sr. não poderá dar vazão aos que o vierem procurar. Olhe, hoje mesmo mandei
avisar o Coelho, e daqui a pouco está ele cá, rente como pão quente. Atrás do
primeiro, virá uma chusma dos meus pecados... Então quer deixar Nocência como
ainda esta?...
—Verdade é, balbuciou Cirino.
—Pois então? Nem pensar nisso
é bom. Deixe tudo por minha conta; vosmecê há de aqui arranjar os seus
negócios.
—Já que o senhor o diz... Eu
tinha receio de vexá‑lo. Uma vez que até cá venham doentes...
—Hão de vir, esteja
sossegado...
—Ficarei, decidiu Cirino,
quanto tempo for do seu agrado.
—Ora, muito que bem, exclamou
Pereira esfregando as mãos com sincera satisfação, estou como quero. Quanto ao
Sr. Maia.., Meyer, quero dizer, este há de criar raízes nesta casa...
—Isso também não: tenho tempo
marcado pelo meu governo...
—Bem, bem; mas em todo caso,
fará uma boa temporada conosco. É pena que o Manecão não chegue, porque
apressávamos o casório, e arranjávamos uma festança como nunca se viu nestes
matarrões... Mas estou aqui a dar com a língua nos dentes, sem pensar que os
nossos estômagos ainda esperam sua matula. O almoço não pode tardar; é um pulo
só... Se consentem vou ver 1á dentro.
Ao dizer estas palavras, saiu
da sala, voltando pouco depois acompanhado de Maria, a velha escrava que trazia
a toalha da mesa e a competente cuia de farinha.
— Á mesa! gritou Pereira.
Almoço hoje com vosmecês. Sr. Meyer, o senhor comerá dora em diante comigo e
com a menina, lá no interior
da casa; ouviu?
E, voltou‑se para
Cirino.
—Bem sabe, explicou
logo, como se fosse o Chiquinho.
Depois de pronta a mesa,
sentaram‑se os três alegremente.
—Olhe, Sr. Meyer, disse o
mineiro servindo o alemão, isto e feijão‑cavalo e do melhor. Misture‑o
com arroz e ervas; deite‑lhe uns salpicos de farinha...
Começou o naturalista a
mastigar com a lentidão de um animal ruminante, interrompendo de vez em quando
o moroso exercício para exclamar:
—Delicioso, com efeito! Muito
delicioso.
Comia Cirino pouco e em
silêncio.
—Na Alemanha, observou Meyer
contemplando um grão de feijão, a maior fava não chega a este tamanho. Aqui a
fava de lá teria polegada e meia pelo menos. Um almoço, assim, havia de custar na
Saxônia dois táleres, ou pelo câmbio que deixei no Rio de Janeiro, dois mil e
quinhentos réis...
Interrompeu‑o Pereira
com gesto cômico.
—Dois mil e quinhentos? Ora,
que terra essa! Como é que se chama?
— Sac‑sônia, respondeu
o alemão com gravidade.
—Saco‑sonha! exclamou
Pereira. Não conheço... Mas, então lá muita gente há de andar a morrer de
fome...
—Pelos últimos cálculos,
replicou Meyer com várias pausas durante as quais introduzia enormes colheradas
da mistura que lhe aconselhara o anfitrião, 6 sabido que em Londres morrem no
inverno oito pessoas à míngua, em Berlim cinco, em Viena quatro, em Pequim
dose, em Iedo sete, em...
—Salta! atalhou Pereira
exultando de prazer, então viva cá o nosso Brasil! Nele ninguém se lembra até
de ter fome. Quando nada se tenha que comer, vai‑se no mato, e fura‑se
mel de jataí e manduri, ou chupa‑se miolo de macaubeira. Isto é cá por
estas bandas; porque nas cidades, basta estender a mão, logo chovem esmolas...
Assim é que entendo uma terra... o mais é desgraça e consumição . . .
—Decerto! corroborou o
alemão, o Brasil é um país muito fértil e muito rico. Dá café para meio inundo
beber e ainda há de dar para todo o globo, quando tiver mais gente... mais
população...
—Bem eu sempre digo, acudiu
Pereira tocando no ombro de Cirino e deitando‑lhe uns olhos de triunfo.
Lá fora é que nos conhecem, nos fazem justiça... Não acha, patrício? Homem, agora reparo ...vosmecê
está tão calado!... meio casmurro, que é isso? sempre aquele negócio?
De fato, Cirino, depois que
ouvirá o convite a Meyer para conviver no interior da casa de Pereira, tornara‑se
sombrio, inquieto, meditabundo. O corpo ali estava, mas a sua imaginação
vigiava zelosa o quartinho onde repousava aquela menina febricitante, tão bela
na sua fraqueza e palidez enferma.
—Se são mulheres, ponderou
Pereira, deixe‑se disso; não há maior asneira... É fazenda que não falta.
No meio dos exercícios
mandibulares, julgou Meyer que o seu hospedeiro considerava o sexo feminino do
ponto de vista meramente estatístico e acreditou conveniente assentar melhor a
idéia, um tanto vagamente aventada.
—Na raça eslava, disse
dogmaticamente, a proporção 6 de duas mulheres para um homem; na germânica, há
aproximadamente número equivalente, na latina de dois homens para uma mulher.
Na França, a proporção para o lado masculino é de...
—Mas o senhor contou?
interrompeu Pereira. Deixe‑lhe dizer uma coisa: eu cá não engulo
araras...
—Ni eu, afirmou Meyer com
alguma surpresa e energia, nem sei como o senhor me vem falar nessas aves
agora. . . Se as considera como caça, deve saber que os trepadores têm a carne
dura, preta e...
Riu‑se Pereira do
equívoco e, explicando‑o, continuou a discutir com o seu interlocutor,
que não discrepava uma linha dos seus princípios de método e escrupulosa
polidez.
—Pode o senhor falar um ano
inteiro, disse o mineiro para concluir; mas quanto a mim, não entendo patavina
das suas contas e jigajogas. Quem me tira da tabuada, bota‑me no mato...
E agora, vamos agradecer a Deus Nosso Senhor Jesus Cristo o ter‑nos dado
esta comida, ainda que insuficiente e mal temperada.
E, unindo o exemplo à
palavra, levantou‑se e, de mãos postas ao peito, orou em voz baixa com
unção, no que foi imitado pelos dois hóspedes.
—Esteja convosco o Senhor,
disse ao terminar, em voz alta, persignando ‑ se.
—Amém, responderam Cirino e
Meyer.
—Agora, anunciou o mineiro
saindo da mesa, vou dar um giro pela minha roga, onde estão na capina três
negros cangueiros, um dos quais é o meu
fazendeiro; depois, hei de visitar uns conhecidos meus, avisando‑os da
sua chegada, doutor. Ah! acrescentou todo desfeito em amável sorriso, falta‑lhe
mostrar minha filha, Sr. Meyer.
—Sua filha! exclamou o
alemão. Então tem filhos?
—Sim, senhor. Não se lembra
que o seu vulto é o do mano Chiquinho? Pois então? Que maior prova lhe posso
dar de confiança e amizade?... Não é verdade, Sr. Cirino?
—Sem dúvida, balbuciou a
custo o mancebo.
—Minha filha chama‑se
Nocência e só hoje é que se levantou da cama... Esteve doentinha... Assim
mesmo, não sei se as maleitas a deixaram... O corpo é às vezes caroável dessas
malditas e...
—Isto está ao meu cuidado,
atalhou Cirino com alguma pressa. Ainda ao meio‑dia há de tomar quina...
—Vosmecê faça o que for
melhor... Quer vir, Sr. Meyer?
—Pois não! pois não!
respondeu amavelmente o alemão.
— É a única pessoa da família
que tenho aqui, além de um marmanjão que está agora na carreira por essas
estradas, agenciando a vida . . . Então, vamos! Venha também, continuou ele
voltando‑se para Cirino, um cirurgião é quase de casa.
Saíram, pois, os três.
Pereira na frente, seguiu o oitão da direita, e, abrindo uma tranqueira do
cercado dos fundos, entrou pela cozinha, onde a velha preta Conga estava
lavando pratos e arrumando louça numa prateleira.
XII — A APRESENTAÇÃO
Quem, porém, mostrava mais
surpresa o admiração era Sancho Pança. Nunca, em dias de sua vida, vira
perfeição Igual.
(Cervantes, Dom Quixote,
CXXIX)
Ao bálsamo, fazem as moscas.
que nele morrem, perder a suavidade do perfume. Uma parvoíce, ainda que pequena
e de pouca dura, da motivo a não se ter em conta nem sabedoria nem glória
(Eclesiástes, X).
Depois de atravessarem um
quarto bastante escuro, chegaram os visitantes a sala de jantar, vasto aposento
ladrilhado, mas sem forro, a um canto do qual estava a filha do mineiro, mais
deitada do que sentada numa espécie de canapé de taquara.
Tinha os pés sobre uma bonita
pele de tamanduá‑bandeira, onde se acocorara, conforme o hábito, o anão a
quem Pereira chamara Tico.
Ao ver chegar tanta gente, abriu
a formosa menina uns grandes olhos de espanto; quis toda enleada erguer‑se,
mas não pôde e, corando ligeiramente, teve como que um delíquio de fraqueza.
Aproximara‑se logo
Cirino com vivacidade.
—A dona, disse ele para
Pereira, esta tão fraca que mete do.
Chegou‑se o pai
juntamente com Meyer e, tomando as mãos da filha, perguntou‑lhe com voz
meiga e inquieta:
—Sente‑se pior, meu
benzinho?
—Nhor‑não, respondeu
ela.
—Pois então!... t: preciso
não entregar o corpo à moleza... Abra os olhos... Olhe... esta aqui este homem
(e apontou para Meyer) que é alamão e trouxe uma carta do tio de mecê, o Chico,
lá da Mata do Rio. Quero mostrar que, para mim, vale tanto como se fosse esse
próprio parente tão a nós chegado. Por isso é que venho apresentá‑lo...
Ela nada articulou.
—Vamos, diga... Tenho muito
gosto em lhe conhecer... diga.
Com vagar e acanhamento,
repetiu Inocência estas palavras, ao passo que Meyer lhe estendia a mão
direita, larga como uma barbatana de cetáceo, e franca como o seu coração.
—Gosto, muito gosto tenho eu,
disse ele com três ou quatro sonoros arrancos de garganta. Só o que sinto é vê‑la
doente... Mas o doutor não nos deixará ficar mal; não é, Sr. Cirino?...
E apoiou esta pergunta com um
hem? que ecoou por toda a sala.
—A senhora, respondeu o
interpelado, precisaria tomar por alguns dias um pouco de bom vinho do Porto,
em que se pusesse casca de quina do campo... Mas, onde achar agora vinho? Só na
Vila de Sant'Ana . . .
—Vinho? perguntou Meyer.
—Sim.
—Vinho do Porto?
—Melhor ainda.
—Pois tudo se arranja, na
minha canastra tenho uma garrafa do mais superfino e com a maior satisfação a
ofereço à filha do meu pom amigo o Sr. Pereira.
—Oh! Sr. Meyer, agradeceu
este com efusão, não sabe quanto lhe f ico . . .
—Qual! não tem obrigação,
não, senhor. Além do mais, sua filha é muito bonita, muito bonita, e parece boa
deveras... H§ de ter umas cores tão lindas, que eu daria tudo para vê‑la
com saúde...
Que moça! . . . Muito bela!
Estas palavras que o inocente
saxônio pronunciara ex abundantia cordis produziram extraordinário abalo nas
pessoas que as ouviram.
Tornou‑se Pereira
pálido, franzindo os sobrolhos e olhando de esguelha para quem tão
imprudentemente elogiava assim, cara a cara, a beleza de sua filha; Inocência
enrubesceu que nem uma romã; Cirino sentiu um movimento impetuoso, misturado de
estranheza e desespero, e, lá da sua pele de tamanduá‑bandeira, ergueu‑se
meio apavorado o anão.
Nem reparou Meyer e com a
habitual ingenuidade prosseguiu:
—Aqui, no sertão do Brasil,
há o mau costume de esconder as mulheres. Viajante não sabe de todo se são
bonitas, se feias, e nada pode contar nos livros para o conhecimento dos que
lêem. Mas, palavra de honra, Sr. Pereira, se todas se parecem com esta sua
filha, é coisa muito e muito digna de ser vista e escrita! Eu...
—O Sr. não quer retirar‑se?
interrompeu Pereira com modo áspero.
—Pois não! replicou o alemão.
E como despedida acrescentou,
dirigindo‑se para Inocência:
—Chamo‑me Guilherme
Tembel Meyer, seu humilde criado, e estimo muito conhecê‑la por ser a
senhora filha de um amigo meu e prender a gente com o seu lindo rosto...
Estendeu então a mão, fez um
movimento de cabeça, e acompanhou ao mineiro que já ia saindo, branco de cólera
concentrada.—E que me diz o Sr. deste homem? perguntou a Cirino a meia voz e
puxando‑o de parte.
—Reparei muito nos seus
modos, respondeu‑lhe o outro no mesmo tom.
—Nem sei como me contenha...
Estou cego de raiva... Que presente me mandou o Chico!... É uma peste, este
diabo melado... Vê uma rapariguinha e enche logo as bochechas para lhe dizer
meia dúzia de pachouchadas e graçolas... Não está má esta!... 1!: um perdido.
Nada... Isto não me cheira bem: vou ficar de olho nele. . .
—Faz muito bem, apoiou
Cirino.
—Vejam só, continuou Pereira
retendo o seu interlocutor para deixar Meyer distanciar‑se, em boas me
fui eu meter! . . . Se não fosse a tal carta do mano, o cujo dançava ao som do
cacete... Malcriadaço! Uma mulher que daqui a dois dias esta para receber
marido... Deus nos livre que o Manecão o ouvisse... Desancava‑o logo, se
não o cosesse a facadas... Vejam só, hem?... Sempre 6 gente de outras terras...
Cruz! Também vi logo... um latagão bonito. .. todo faceiro... havéra por força
de ser rufião.
Ouvia‑o Cirino em
silêncio.
—E mulher, prosseguiu o
mineiro com raivosa volubilidade, 6 gente tão levada da breca, que se lambe
toda de gosto com ditinhos e requebros desta súcia de embromadores. Com elas,
digo eu sempre, não há que fiar... Má hora me trouxe este alamão... Mil raios o
rachem!... E logo o Chico... Tenho agora que ficar de alcatéia... meter‑me
em tocaia e fazer fojos para que o bracaiá não me entre no galinheiro. Ora que
tal!
—Também, breve se vai ele
embora, lembrou Cirino a modo de consolo.
—Que o demo o leve quanto
antes, replicou Pereira. Já estou todo enfernizado com o tal homem...
Neste momento, como que de
propósito, voltava‑se Meyer para os dois:
—Sr. Pereira, disse ele,
ficarei em sua casa talvez umas duas semanas. Os burrinhos vão engordar no seu
pasto e eu hei de fazer compridas viagens nesta sua fazenda, apanhando tudo o
que nela encontrar... Ouviu?
Reprimiu o interpelado um
gesto de viva contrariedade e, levado pelo instinto e dever de hospitalidade,
de pronto respondeu, embora secamente:
—Fique duas semanas, ou dois
meses ou dois anos. Já lho disse: a casa é sua, e palavra de mineiro não volta
atrás. Quem esta aqui, não é o Sr., é meu irmão mais velho.
Agarrando então com força na
mão de Cirino, acrescentou em voz surda e angustiada:
—Olhe, doutor; veja só isto! Que
lhe dizia eu?... Ah! meu Meyer, quer se engraçar comigo, não é? Mas cá fico...
e, uma vez avisado, nem dois, nem três me botam poeira nos olhos... Não é com
essa! Nocência nasceu filha de pobre, mas, graças a Maria Santíssima, tem ainda
pai com braço forte e muito sangue nas veias para defendê‑la dos
garimpeiros e cruzadores de estrada... Ele que não brinque com o Manecão; é
homem de cabelinho na venta e se lhe bota a mão em cima, esfarela‑lhe os
ossos, como se fora veadinho do campo enroscado por sucuri...
Ia, contudo, Meyer, de todo
ponto alheio ao temporal provocado por suas inconsideradas palavras e, sem
dúvida, estimulada em suas reminiscências pela vista da menina que acabava de
admirar, cantarolava entredentes uma velha valsa alemã, dançada talvez com
alguma loura patrícia em épocas remotas e de menos rigorismo científico.
XIII—DESCONFIANÇAS
Muitas vezes, somos iludidos
pela confiança: mas a desconfiança faz que sejamos por nós mesmos enganados.
(Príncipe de Ligne)
Quando o nosso saxônio entrou na sala em que estavam as suas
cargas, vinha tão contente do agasalho recebido, da firmeza do tempo, das
futuras caçadas de borboletas, que despertou a atenção do seu camarada José.
Estava este encostado a uma
canastra, a esgaravatar, de faca comprida em punho, a planta dos pés,
verificando se alguma pedrinha da estrada não se havia incrustado na grossa e
já insensível sola.
—Homem, disse ele com
familiaridade, Mochu está hoje muito alegre . . . Viu passarinho verde ?
—Passarinho verde? perguntou
Meyer. Que é isso? Não vi passarinho nenhum... Vi uma moça muito bonita...
—Olé... melhor ainda... Conte‑me
isso... e quem é ela.
—E a filha cá do Sr. Pereira.
—Parabéns! parabéns! exclamou
José com toda a indiscrição. Moça bonita é fruta rara por estas matarias e brenhas
do inferno... Quanto a mim, ainda não botei o olho senão em velhas corcorócas e
serpentões... Outra coisa é no Rio... Não se lembra Mochu, da procissão de São
Jorge?... Aí é que sai à rua uma tafularia de deixar a gente tonta de uma vez,
de queixo caído. Umas tão alvas!... Outras cor de café com leite... crioulas
chibantes.
—Juque, repreendeu o alemão
revestindo‑se de ar severo, não tome confiança com gente que não 6 da sua
classe...—Mas eu não disse nada de mau, Mochu, desculpou‑se o criado
recolhendo‑se meio enfiado ao silencio e voltando ao exame dos pés.Quem
estava em cima de um braseiro, era Pereira. Decididamente, aquele hóspede o
punha a perder, proclamando assim com a trombeta da fama que vira Inocência e
com ela conversara, que a achava do seu gosto... uma rapariga já noiva! Quantas
incongruências, que perigos, ó Santos do Paraíso!
Tornava‑se caso de
muita prudência. Qualquer passo menos pensado acarretaria conseqüências
irremediáveis,
Necessário e penetrar‑se
a força dos sentimentos que sobressaltavam o mineiro, para bem aquilatar os
transes por que passava e achar natural que seguisse uma linha de proceder toda
de duvida e vacilações.
Se, de um lado, criava
involuntária admiração por Meyer e, rodeando‑o, em sua imaginação, do
prestigio de uma beleza irresistível, via aumentar o seu receio em abrigar tão
perigoso sedutor; do outro, sentia as mãos presas pelas obrigações imperiosas
da hospitalidade, a qual, com a recomendação expressa de seu irmão mais velho,
assumia caráter quase sagrado. Juntem‑se a isto os preconceitos sobre o
recato doméstico, a responsabilidade de vedar o santuário da
família aos olhos de todos, o amor extremoso à filha, em quem não depositava, contudo, como mulher que era, confiança alguma, as suposições logo ideadas acerca da impressão que naturalmente aquele estrangeiro produzira no coração da sua Inocência, já quase pertencendo ela a outrem, e as colisões que previu para manter inabalável a sua palavra de honra, palavra dada em dois sentidos agora antagônicos—um mundo enfim de cogitações e de terrores. E tudo isto revolvendo‑se na cabeça de Pereira, refletia‑se com sombrios traços de inquietação em seu rosto habitualmente tão jovial.
—Por que razão é, perguntou
ele a José Pinho para desviar aquela conversa que tanto o magoava, que vosmecê
chama Mochu ao Sr. Meyer?
Sorriu‑se o carioca com
ar de superioridade e respondeu desembaraçadamente:
—Ah! E um modo de falar...
—Como assim?
—Já lhe ponho tudo em pratos
limpos... Vosmecê não lhe chama Sr.?
—Chamo.
—Pois, então?... Eu também
lhe chamo assim... mas falo em francês, Mochu quer dizer senhor, nessa língua.
—Ah! replicou Pereira dando‑se
por convencido, então e isso? Pensei que fosse outra coisa...
—Juque; avisou Meyer que
estava a remexer nas canastras, prepare tudo; nós vamos ao mato agora mesmo...
—Venha comigo, propôs o
mineiro com voz insinuante. Eu lhe apontarei lugares onde há dessa bicharia
miúda, coisa nunca vista.
—Com muito gosto, concordou o
alemão.
E voltando‑se para o
camarada:
—Ande, Juque, ordenou ele,
bote a pita para fora, caixas de folha‑de‑flandres, clorofórmio,
rede pronta... Depressa homem, depressa!
José Pinho, instigado por
estas palavras, entrou a voltear de um lado para o outro, como que atarantado
com o excesso de serviço.
—Minhas lentes, pediu o
naturalista, o saco para os bichos de casca grossa... Depressa... Vou ajudá‑lo.
E, por seu turno, começou a
tirar das canastras os objetos de que necessitava, enfiando a tiracolo dois ou
três talabartes finos que sustentavam umas caixinhas encouradas. Numa delas,
havia um copo de prata com a competente corrente noutra, um faqueiro de peças
dobradiças e de metal do príncipe. Também assentou ao flanco uma frasqueira
defendida de choques externos por fino trançado de vime e que continha
aguardente, comprada de fresco na Vila de Sant'Ana do Paranaíba.
Não contente com o peso de
todos esses apêndices à sua pessoa, fingiu largo talim com uma espécie de
patrona de folha‑de‑flandres e que sustentava um grande facão
inglês, um revólver e uma espada de caça.
Depois de ter vagarosamente
arranjado sobre si cada uma destas peças com grande espanto de Pereira e até de
Cirino, substituiu Meyer os óculos habituais por outros, de vidros afumados,
multo grandes e convexos, destinados a proteger‑lhe amplamente os olhos
dos ardores do Sol. Muniu‑se, além disso, de outro singular meio de
preservação: uma rodela ampla de pano branco forrado de verde que aumentava as
abas do chapéu‑do‑chile, descansando em parte sobre elas.
Com esse trajo ficou decerto
a mais estapafúrdia figura que algum cristão encontrar poderia naquelas
trezentas léguas em derredor; entretanto, Pereira, ofendido com aqueles
cuidados de prevenção meramente científica, que lá no seu bestunto qualificava
de faceirice feminil:
—Veja só, disse ele para
Cirino, como este maricas gosta de se enfeitar!... Você não me engana, não, Sr.
alamão das dúzias...
Mirava‑se nesse momento
o naturalista, para verificar se lhe faltava alguma coisa.
—Estou pronto, exclamou afinal,
e muito desejoso de entrar no mato.
—Ponham‑te a tinir os
carrapatos, resmoneou Pereira.
—Ah! disse Meyer, e as minhas
luvas?... Juque, procure na canastra nº 2, à esquerda, no segundo canto.
Sacou o camarada umas grandes
lavas de lã, brancas, muito largas, já usadas e sujas, nas quais o alemão
enfiou de um jacto as mãos espalmadas.
—Agora, sim! anunciou ele com
satisfação.
E, dando um sonoro e
prolongado hum! empunhou a rede de apanhar borboletas.
Depois, levando um dedo à
testa:
—Ah! exclamou, e o vinho! Não
me ia esquecendo?... O vinho para sua filha, Sr. Pereira, sua linda filha.
Encolheu o mineiro com furor
os ombros e disse em parte a Cirino:
—Fez‑se de esquecido só
para falar na menina... Veja bem. Este calunga não me bota areia nos olhos.
E acrescentou alto, recebendo
a garrafa que o camarada José Pinho tirara de uma das canastras:
—Agradeço o seu presente, Sr.
Meyer, mas se... lhe faz a menor falta .. a menina há de curar‑se sem
isto...
— Não, não, não, não,
respondeu o saxônio com uma série de negativas que pareciam não dever ter fim.
—Neste mundo, rosnou Pereira
mais para si do que para ser ouvido, ninguém mete prego sem estopa; mas com
sertanejos... não se brinca.
Cirino tomara a garrafa.
—Isto, afirmou ele, acaba com
certeza a cura.
E, esquivando‑se de
pronunciar o nome e a qualidade da pessoa de quem estava tratando:
—Ela há de ter hoje algum
apetite e poderá levantar‑se um pouco, pois já tomou o seu caldinho.
—Então, ao meio‑dia,
recomendou Pereira muito baixinho a Cirino, vosmecê mande chamar a nossa doente
e dê-lhe a mezinha. Ouviu? Já avisei lá dentro...
Cirino abanou a cabeça,
tomando ar misterioso.
—Eu por mim estarei de olho
vivo no bichão... Parece‑me suçuarana à espreita de veadinhas campeiras...
Não terá este vinho algum feitiço?
Contestou o outro com
energia tal possibilidade.
—Eu sei lá, insistiu
Pereira. Estes namoradores são capazes de muita coisa... Nunca ouviu contar
histórias de pirlas e beberagens.. hem? diga‑me, nunca?
—Sossegue, Sr. Pereira,
acudiu Cirino, hei de examinar o liquido... tenho certeza de que não haverá
novidade.
—Muito que bem .. Então, ao
meio‑dia em ponto... chame a Maria Conga ou o Tico. Nocência há de
arrastar‑se até cá... e o doutor lhe dará a dose...
—Ela sair já? objetou Cirino
com admiração. Não, senhor; em tal não consinto... Irei dar‑lhe o
remédio... Não me custa nada...
Pereira ficara meio
perplexo.
—Não sei...
E com súbita resolução:
—Pois bem, virei da roga até
cá... Se eu não aparecer, então o Sr. dê um pulo e faça‑lhe tomar a
poção... Quanto a este alamão melado, levo‑o para longe e não o trago
senão bem tarde e tão moído do passeio que só há de pensar em dormir.
Com Pereira se dava um fato
natural e comezinho nas singularidades do mundo moral.
A medida que as suspeitas
sobre as intenções do inocente Meyer iam tomando vulto exagerado, nascia
ilimitada confiança naquele outro homem que lhe era também desconhecido e que a
princípio lhe causara tanta prevenção quanto o segundo.
E que as dificuldades e colisões
da vida, quando se agravam, tão fundo nos incutem a necessidade do apoio, das
simpatias e dos conselhos de outrem, que qualquer aliado nos serve, embora de
muito mais proveito fora bem pensada reserva e menos confiança em auxiliares de
ocasião.
XIV—REALIDADE
Cordélia.—Há de o tempo
desvendar o que hoje esconde a discreta hipocrisia.
(Shakespeare, O Rei Lear, Ato
I).
Depois que Cirino viu sumir‑se
Pereira com os dois companheiros além do laranjal da casa, seguindo em direção à
roça por uma vereda pedregosa e cheia de seixos rolados, nos quais iam as patas
dos animais batendo; depois que teve certeza de que ficara só naquela vivenda,
entrou em grande agitação.
Ora, passeava pelo quarto
rápida e inquietantemente; ora, media‑o com passo lento em muitas
direções; ora, enfim, saia para o terreiro e ali, com a cabeça descoberta,
ficava a olhar atentamente para diversos lados, abrigando com a mão aberta os
olhos, dos vivíssimos raios do sol.
Prometia o dia ser muito
cálido. Por toda a parte chiavam as estrídulas cigarras, e ao longe se ouvia o
metálico cacarejar das seriemas nos campos.
Às vezes, encarava Cirino o
Sol; depois tapava os olhos deslumbrados e, tomado de vertigem, voltava para a
sala, onde recomeçava os seus passeios.
Por que, porém, não
descansava o mancebo?
Entrando familiarmente pela
sala adentro, os bacorinhos se haviam abrigado dos ardores do dia e, deitados
debaixo de uns jiraus, ressonavam, presa de gostoso sono.
Tudo quanto vivia apetecia a
sombra e o repouso. Fora, o Sol reverberava violento em seus fulgores, e as
sombras das arvores iam cada vez mais diminuindo. Até uma égua com o esguio e
peludo poldrinho deixara o distante pasto e viera abrigar‑se, à proteção
da casa, junto à qual parara já meio a cochilar.
A enervadora ação do calor
estival, juntavam sua influência as monótonas modulações de umas chulas e
modinhas, cantadas ao som da viola de três cordas pelos camaradas de Cirino,
acomodados no rancho junto ao paiol de milho.
A tudo, entretanto, resistia
o jovem, e com ascendente desassossego consultava o seu relógio de prata,
tirando‑o cada instante do bolso.
Passaram‑se segundos,
minutos e horas. Afinal soltou ele um suspiro de alivio:
—Meio‑dia!,.. Cuidei
que nunca havia de chegar!...
Saindo todo animado para o
terreiro, chamou com voz forte:
—Maria... O Maria Conga!...
Ninguém lhe respondeu. Só do
lado da cozinha ladraram uns cães.
Depois de esperar algum
tempo, rodeou Cirino toda a casa, como fizera com Pereira e, encostando‑se
à cerca que impedia a aproximação do lanço dos fundos, tornou a chamar:
—Ó Maria?... Maria!... Está
dormindo, minha velha?
Vendo que os gritos ficavam
sem resposta, saltou então o cercado e foi caminhando para a porta da cozinha,
devagar, porém, e como que a medo.
—Ó Maria?!... Minha tia!...
Olá! Ó de casa! chamava ele.
Afinal apareceu não a velha
escrava, mas o anão Tiro, que pareceu, com imperioso movimento de cabeça,
indagar a causa daquele intempestivo alarma.
—Que é da Maria Conga?
perguntou Cirino chegando‑se a ele.
Por meio de moderada
gesticulação, mas muito expressivamente, deu Tico a entender que a preta fora
ao córrego lavar roupa.
—E não há mais ninguém em
casa? inquiriu o outro.
Mostrou o anão, com singular
expressão de orgulho e despeito, que ali estava . ele e deitou um olhar de
cólera para o imprudente curioso.
—Bem, replicou Cirino
sorrindo‑se, vá você então dizer à sinhá dona, que já chegou a hora de
tomar o remédio. Trago o vinho, e é preciso quanto antes preparar café.
Desapareceu Tico, fazendo um
aceno ao intitulado medico para que esperasse fora.
—Ora, exclamou este com
aborrecimento e tom de chacota, aqui ao Sol?... Não está má esta!. .. E tal o
mestre nanica?. . .
Sem mais cerimônia entrou,
pois, na casa, penetrando no quarto que ficava entre a cozinha, teatro da
atividade de Maria Conga e a sala de jantar, onde se dera a apresentação de
Meyer a Inocência.
Daí a pouco, ouviu passos
arrastados e aos seus olhos mostrou‑se Inocência embrulhada em uma grande
manta de algodão de Minas, de variegadas cores, e com os longos e formosos
cabelos caídos e puxados todos para trás. Os grandes e aveludados olhos orlados
de fundas olheiras, e o quebrantamento do semblante, muita fraqueza denunciavam
ainda; entretanto, as cetinosas faces como que se apressavam a tomar cores, à
semelhança de rosas impacientes de desabrochar e expandir‑se vivazes e
alegres. Ao chegar à porta, não a tranpôs; mas encostando‑se à grossa
trave que fazia de umbral, ali ficou parada, indecisa, com o olhar turbado e
esquivo.
— Ao vê‑la, deu Cirino
com timidez alguns passos ao seu encontro; depois, por seu turno estacou junto
a uma cadeira de comprido espaldar, antigo e sólido traste trazido por Pereira
da sua casa de Piumi.
Após longa pausa, em que por
vezes se cruzaram incertos os olhares perguntou com esforço:
—Então... minha senhora...
como está?... Sente‑se melhor?
—Melhor, obrigada, respondeu
Inocência com voz aflautada e muito trêmula.
—Comeu já alguma coisa?
—Nhor‑sim... uma asa de
frango, mas com... bastante vontade.
—Sente o corpo abatido?
— A canseira está
passando... ontem muito mais...
A pouco e pouco, fora Cirino
recuperando o sangue frio e se aproximando da moça, que mais se apegou à
umbreira, como que a procurar abrigo e proteção.
De um lado da porta ficou
ela: do outro Cirino, ambos tão enleados e cheios de sobressalto que davam
razão às olhadas de espanto com que os encarava Tico, empertigado bem defronte
dos dois em suas encurvadas perninhas.
—Pois chegou a hora de tomar
o remédio...
—Já, seu doutor? implorou
Inocência.
—Nhã‑sim.
—Eu não tenho mais nada...
—É para cortar de uma vez as
sezões... Olhe, se elas voltassem... era um grande desgosto para mim...
—Mas é tão mau, objetou ela.
— Não é bom deveras... mas bem
melhor é voltar à saúde...
Com um bocadinho de coragem,
a gente engole tudo sem muito custo... Já que lhe amarga tanto... beberei
também um pouco...
—Oh! não! protestou
Inocência.
—É: para lhe mostrar... que
quero sentir... o que mecê sente.
Fez‑se a menina da cor
da pitanga, levantou uns olhos surpresos e voltou logo o rosto para fugir dos
olhares ardentes de Cirino.
—A mezinha? pediu ela por
fim toda comovida.
—Ah! é verdade! exclamou
Cirino. Ande, Tico: vá buscar café a cozinha. Lave bem um pires... percebeu?
O anão fitou o moço com
altivez e não se mexeu.
—Você é surdo?
—Não, respondeu Inocência.
Tico, às vezes, por manha é que se faz ansim de mouco.
Voltando‑se então para
o homúnculo, insistiu com voz meiga e carinhosa:
—Vai, Tico; é para mim, ouviu?
Transformou‑se
repentinamente a fisionomia do anão. Pairou‑lhe nos lábios inefável
sorriso, meneou a cabeça duas ou três vezes com a força de uma afirmação, mas,
colérico, enrugou a testa e moveu olhos inquietos e duvidosos.
Inocência teve que repetir o
recado.
—Já lhe disse, Tico: vai
buscar o café.
A esta quase ordem não ousou
ele resistir mas saiu devagarzinho, voltando‑se várias vezes antes de
entrar na cozinha, onde muito pouco se demorou.
Neste entrementes tomara Cirino
o pulso de Inocência e, sem pensar no que fazia, quebrando a débil resistência
da menina, cobrira‑lhe de beijos o braço e a mãozinha que havia segurado.
—Meu Deus! balbuciou ela,
que é isto?... Olhe, aí vem Tico.
Recuou então o mancebo e,
para melhor disfarçar a comoção adiantou‑se para o anão que vinha
trazendo na mão direita uma vasilha de folha‑de‑flandres, e na
outra um pires com colher.
—Muito bem, disse ele, ponha
tudo em cima da mesa.
E preparando rapidamente o
medicamento apresentou‑o a Inocência. que sem hesitação o sorveu todo.
—Deixe‑me um pouco,
exorou com ternura Cirino, um pouco só... Se é tão mau... sofra eu também.
—Não, respondeu ela com
alguma energia, por que havéra de mecê sofrer?
E, ou por efeito do
inexprimível e desconhecido abalo que experimentara no estado de debilidade a
que chegara, ou por ser aquela a hora em que costumava a febre salteá‑la,
o certo é que teve de encostar‑se ou melhor, agarrar‑se ao umbral
para não cair a fio comprido no chão.
—Oh! exclamou com angústia
Cirino, a senhora vai desmaiar.
Transpondo então o limiar da
porta, tomou nos braços a pálida donzela, sem relutância encostou a desfalecida
cabeça ao seu ombro e, com o hálito ofegante, aos poucos lhe foi fazendo voltar
às faces o precioso sangue.
—Estou melhor, balbuciou ela
procurando afastar a cabeça de Cirino.
—Não faça de forte à toa,
acudiu este. Vamos ate aquela cadeira.
E, com toda a lentidão e
cuidado, foi levando a convalescente até sentá‑la, desembaraçando‑a,
depois, dos muitos cabelos que, todos revoltos, lhe haviam invadido o colo e se
esparziam sobre o rosto.
—Quanto cabelo! exclamou
Cirino meio risonho.
Com muita atenção seguira
Tico as peripécias de toda aquela cena. Ao ver Inocência perder quase os
sentidos, soltou um grito surdo de desespero; depois, foi seguindo‑a até
a cadeira e, ajoelhado diante dela, contemplou‑a com inquietação.
Cirino quis aproveitar a
ocasião para um. congraçamento.
—Então está com cuidado, Sr.
Tico?... Não é nada... sua ama fica boa logo... Não é o que você quer?
Ao ouvir esta interpelação,
levantou‑se o anão e correspondeu ao simpático anúncio do moço com um
olhar de desprezo e pouco caso, como que a dizer:
—Não se meta comigo, que não
quero graças com você, médico de arribação!
—Agora, disse Cirino voltando‑se para Inocência, vai mecê beber dois goles deste vinho .. Vera logo, que sustância há de sentir dentro do corpo.
Desarrolhou então, com a
ponta da comprida faca que tirou do cinto, a garrafa de vinho oferecida por
Meyer, e num caneco de lousa branca apresentou à moça um pouco do ruborante
líquido.
Molhou a doentinha os lábios
e gratificou o obsequioso mancebo com um sorriso encantador.
Decididamente lhe agradava
aquele medico: curava do seu corpo enfermo e entendia‑lhe com a alma.
Raros homens que não seu pai e Manecão, além de pretos velhos, tinha até então
visto; mas a ela, tão ignorante das coisas e do mundo, parecia‑lhe que
ente algum nem de longe poderia ser comparado em elegância e beleza a esse que
lhe ficava agora em frente. Depois, que cadela misteriosa de simpatia a ia
prendendo àquele estranho, simples viajante que via hoje, para, sem duvida,
nunca mais tornar a vê‑lo?
Quem sabe se a meiguice e
bondade que lhe dispensava Cirino não eram a causa única desse sentimento novo,
desconhecido, que de chofre nascia em seu peito, como depois da chuva brota a
florzinha do campo?
A muito obriga a gratidão.
Rápidos correram esses
pensamentos pela mente de Inocência, ao passo que as suas pupilas se iam
erguendo até se fixarem em Cirino, límpidas, grandes, abertas, como que dando
entrada para ele ler claro o que se lhe passava na alma.
—Sinto‑me tão bem,
disse ela com metal de voz muito suave, tão leve de corpo, que parece nunca
mais hei de ficar mofina.
—Não, não, decerto! exclamou
Cirino, nunca mais. Além disso, aqui estou e...
Com a sua chegada,
interrompeu Maria Conga, a velha negra, aquele começo de diálogo. Vinha da
fonte com volumosa trouxa de roupa que entrou a estender em compridos bambus,
assentes horizontalmente sobre forquilhas fincadas no chão.
Despedindo‑se, então,
Cirino de Inocência:
—Agora, lhe disse ele risonho
e pegando‑lhe na mão, sossegue um pouco: depois tome um caldo e... queira‑me
bem.
—Gentes! Por que lhe não
havéra de querer? perguntou ela com ingenuidade. Mecê nunca me fez mal...
—Eu, retrucou Cirino com fogo,
fazer‑lhe mal? Antes morrer... Sim...dona... da minha alma, eu...
E, sem concluir, disse
repentinamente:
—Adeus!
Depois, com passo lento, foi
se retirando e passou diante da janela junto à qual ficara Inocência sentada.
—Olhe! recomendou ele
recostando‑se ao peitoril, cuidado com 0 sereno...
—Nhor‑sim...
—Não beba leite...
—Mecê já disse.
—Coma só carne‑de‑sol...
—Já sei...
—Então, adeus... adeus,
menina bonita!
E, a custo, despegou‑se
daquele lugar, onde quisera ficar, ate que de velhice lhe fraqueassem as
pernas.
XV — HISTÓRIAS DE MEYER
Grande felicidade é ter um
filho prudente e instruído; mas, quanto e filhas, e par. todo o pai carga bom
pesada.
(Menandro, Os Primos).
Com a tarde voltaram Meyer,
José Pinho e Pereira e, pouco depois pois deles, três avelhantados escravos;
estes dos trabalhos agrícolas, aqueles de grandes excursões entomológicas.
Vinha o mineiro meio risonho
e em altos gritos acordou Cirino, que, deitando‑se a dormir, sonhara todo
o tempo com a graciosa doente.
—Olá, amigo! olá, doutor!
chamou Pereira com voz retumbante, isso e que é vida, hem? Enquanto nós
trabalhamos, eu e o Mochu do José, você está nessa cama de veludo!...
—É verdade, concordou o
moço, apenas os Srs. se foram, estendi as pernas e até agora enfiei um sono
só...
—E o remédio da menina?
perguntou Pereira abaixando a voz.
—Ora, Sr., e eu que me
esqueci!... Não faz mal... se ela não teve febre... Ah! espere... agora me
lembro!... Eu lho dei... estou ainda tonto de sono.
Riu‑se Pereira.
—Estes doutores matam a
gente, como se tosse cachorro sem dono... Num momento, lhes passa da cachola se
deram ou não mezinhas e venenos a cristãos. ..
Vendo que Meyer saíra da
sala, mudou repentinamente de tom prosseguindo em voz baixa e muito
rapidamente:
—Então, sabe que o tal
alamão levou todo o dia, só querendo puxar conversa sobre a menina?
—Deveras?
—É o que lhe digo... E... eu
com as mãos atadas por aquele oferecimento de levá‑lo a comer lá dentro!...
Nada, nem que desconfie e se arrenegue dos meus modos... não me pisa em quarto
de família. . . Deus te livre! . . .
Com efeito, à hora da ceia,
Meyer manifestou surpresa de comer na mesma sala; não que tivesse motivo para
desejar outro qualquer local; mas, metódico como era, gravara na mente a
promessa de Pereira e, por delicadeza, supunha dever lembrar‑lha.
As desculpas que o mineiro
apresentou foram arranjadas de momento e ajudadas vitoriosamente por Cirino,
carregando este com a responsabilidade de haver recomendado à enferma muito
sossego, quase completa solidão.
De modo muito expansivo se
manifestou também o reconhecimento de Pereira.
—Estou conhecendo, disse ele
em aparte e apertando a mão de Cirino, que o doutor é homem sério e com quem se
pode contar... Deixe estar... o Manecão há de ser amigo seu... Isso há de sê‑lo...
Pessoas de bem devem conhecer‑se e estimar‑se... Ora, veja o tal
cujo... que temível, hem?... Não faz mal, há de ter o pago.
Se Pereira se mostrava
contrariado e inquieto, muito pelo contrário parecia o naturalista nadar em mar
de rosas.
—Sr. doutor, declarou ele a
Cirino à mesa da ceia, por muitos motivos estou em extremo contente com a minha
estada aqui... Hoje achei mais bichinhos curiosos do que em todas as zonas por
que tenho andado.
—Vosmecê nem imagina,
interrompeu Pereira dirigindo‑se para Cirino, o que faz este senhor
quando está dentro do mato. Ainda há de quebrar o pescoço nalgum barranco a que
se atire, pois caminha com as ventas para o ar... Não sei como não tem ambos os
olhos furados... não repara em galhos nem em nada... só o que quer e agarrar
anicetos... Já o avisei umas poucas de vezes; agora, sua alma, sua palma...
Judiciosas eram as
advertências do mineiro e bem cabidas; tanto assim que numa das tardes seguintes
voltou Meyer todo arranhado e com um gilvaz tão grande, que imediatamente deu
nas vistas de Cirino.
—Que foi isso, Sr. Meyer?
perguntou ele com admiração. O Sr. andou por ai afora aos trambolhões com
alguma onça?
—Oh! não é nada, respondeu
fleumaticamente o alemão.
—E a sua roupa vem suja de
barro... toda rota...
Desatou Pereira a rir.
—Isto são histórias deste
homem... Bem lhe dizia eu que mais dia menos dia isso havia de acontecer. Meu
amigo não sabe do ditado: ...Fia‑te na Virgem e não corras, veras o tombo
que levas!... Também foi um dia em que me ri a mais não poder. Tomei um
fartão... Imagine vosmecê que o tal Sr. Meyer, como já lhe contei, anda pulando
dentro da mata como se fosse veado mateiro... O José Pinho, que é mitrado, vai
sempre pela estrada limpa...
—Preguiçoso, atalhou Meyer a
modo de observação.
—Juízo tem ele, prosseguiu o
mineiro: mas, como ia dizendo cá, o Sr. com seus arrancos e saltos parece anta
disparada. Em aparecendo bichinho voador, zás‑trás que darás lá vai ele
logo sem olhar para os paus, podendo pisar em cobras e espinhos, com aquela
rede na mão, e tanto faz que engalfinha sempre algum animalejo... Hoje fui para
a roça, e o homem furou o mato, enquanto José buscava uma sombrinha e entrou
logo a roncar como um perdido...
—Eu, não senhor, protestou
José Pinho, que queria ouvir a historia.
—Vóce sim, corroborou Meyer
com severidade, preguiçoso!... Ande... dê cá a pita.
—Pois bem, continuou Pereira,
daí a duas horas voltou Mochu neste estado pouco mais ou menos; mas trazia uma caixa
cheia de bichos do mato...
—Oh! perguntou Cirino, e são
bonitos?
—Não há mais nada, suspirou
Meyer com tom dolente, o trabalho ficou perdido!... Eu tinha apanhado cinco
espécies novas... Uma queda...
—Deixe‑me contar o caso,
atalhou Pereira. Oh! eu ri‑me... ri ‑me. E, para confirmar a
asserção, pôs‑se novamente a dar gargalhadas, que foram acompanhadas por
José Pinho e até por Meyer, da parte deste com menos expansão, contudo.
—Apareceu‑me o Mochu
muito contente com a sua caixa, como se tivesse o rei na barriga. Era uma
imundície de besouros, cascudos e cigarras, que o Sr. nem pode imaginar...
Havia de tudo; depois, quando voltamos da roça, enxergou ele num pau podre um
aniceto vermelho e foi correndo a apanhá‑lo. Eu bradei‑lhe: — Olhe,
que ai tem barranco: a árvore é podre e oca, e vosmecê rola pelo despenhadeiro,
que nem a sua alma se salva. — Qual! O homem é teimoso, como um cargueiro
empacador... Eu gritava‑lhe: —Tome tento, Mochu!—Sem atender a nada,
começou a caminhar em cima da cipoada que cobria a boca de um percipício, fundo
como tudo neste mundo... Quando ia botar a mão no tal bicho encarnado, encostou‑se
ao pau e... zás!... afundou‑se, dando um grito esganiçado que parecia de
cotia. Mal teve tempo de agarrar‑se aos cipós e ia ficou entre a vida e a
morte, chamando Juque, Juque!... Eu, quando vi isso, mandei a toda pressa
buscar à roça uma vara comprida e, se ela não chega logo, o Sr. Meyer e toda a
sua bicharada rolavam de uma vez por aqueles fundões.
—Não, retificou o alemão,
bicho rolou; caixa abriu e tudo lá se foi no fundão...
—Pois bem, o Mochu segurou‑se
com unhas e dentes ao pau e nos puxamos devagarinho, devagarinho, com um medo,
um medo!... Maria Santíssima! . . .
Fazendo breve pausa:
—0 mais engraçado ainda não
chegou, avisou o mineiro: Ah! vosmecê vai tomar uma boa data de riso. Quando o
Mochu ganhou pé em terra, pôs‑se
a pular como um cabrito doido, por aqui, por acolá, pulo e mais pulo, e
gritando como se o estivessem esfolando... Estava .. ah! meu Deus!... estava
cheio de formigas novatas!
— Sim, exclamou Meyer com
desespero, formiga de pau podre!... mein Gott ... Eu rasgo a roupa... eu
pulo... eu gemo... fico nu como quando minha mãe me botou no mundo!... Horrível
Formiga do diabo! . . . Faz calombo em todo o meu corpo. . . Muita dor!
Com reiteradas e estrondosas
gargalhadas acolheram Pereira, Cirino e José Pinho essas enérgicas imprecações.
—Poderá isso, observou o
mineiro, curá‑lo da mania de não ouvir os outros que conhecem as coisas.
E voltando‑se para
Cirino:
—Verdade é que o corpo
dele... Que corpo, Sr. doutor, tão arvo!... ficou todo empolado que foi preciso
esfregá‑lo com folhas de fumo. Depois, tomou um banho no ribeirão...
—Tudo estava muito bem,
observou Meyer, se caixa não abre e atira no buraco meu trabalho...
—Ora, ficará para amanhã,
consolou filosoficamente o camarada.
Pereira, acalmado o frouxo de
riso, aproximara‑se de Cirino e lhe falava a meia voz:
—Ah! doutor, tive uma vontade
de deixar este alamão sumir‑se no socavão!...
Se não fosse meu hóspede,
enfim, e recomendado de meu mano, palavra de honra pinchava‑o de uma vez
no inferno...
Não sou nenhum pinóia...
—Mas por quê? indagou Cirino
simulando admiração...
—O Sr. ainda me pergunta?... Porque
o homem não me faz senão falar em Nocência... Outra vez me disse que ela era
muito bonita e mil coisas.. perguntou se estava casada, se não; que era preciso
casar as mulheres para bem delas. Eu lá sei o que mais?... Isto é um bruto
perdido... um namorador!...
—Qual, Sr. Pereira!...
—É o que lhe digo!... Por
acaso sou cobra de duas cabeças(4) que não veja?... Ah! que peso uma filha! Ah!
E então uma menina que já está apalavrada... Isto é uma anarquia! Que diria meu
genro, o Manecão?...
—Não poderá dizer nada,
retrucou o moço. E que diga, não faltará quem queira sua filha...
—Louvado Deus, não decerto!
Eu é que não quero que ela ande de mão em mão... Ou casa com o Doca ou...
— Ou... o quê? perguntou
Cirino com inquietação, mas fingindo pouca curiosidade.
—Ou mato a quem lhe vier
transtornar a cabeça .. Comigo ninguém há de tirar farofa!... E não hei de ter
mil cuidados quando vejo este estranja estar com suas macaquices a dar no fraco
das mulheres ?
—Por ora, nada fez ele...
—Por ora .. só leva a falar na pobre menina, que
a Srª Sant'Ana guarde de todo o mal!... Pudesse eu adivinhar, e macacos me
mordam, se punha os olhos em cima de Nocência. Nem que viesse com cartas e
ordens do Sr. D. Pedro II .
Chamei o José Pinho,
prosseguiu ele em voz baixa e dei‑lhe uns toques. — Então, disse‑lhe
eu, seu amo é o diabo com mulheres, hem? Ele, que é muito ladino, respondeu‑me
logo. —Nhor‑não. —Assuntei a embromação.—Qual, você, carioca, tem levado
areia nos olhos. — Eu?... não é capaz.— Então você não tem visto o que faz seu
amo? — Tem sido um santo, retrucou o espertalhão. No Rio, sim. —Na Corte?—Nhor‑sim,
na Corte. Ia todas as noites a uma casa de bebidas, assim uma espécie de venda
de muito luxo e lá estava horas perdidas petiscando e conversando com senhoras
muito bonitas, bem limpas... algumas com o pescoço e os braços todos à
mostra...
—Contou‑lhe isso?
atalhou Cirino com alguma dúvida e sobressalto.
— Contou, afirmou Pereira
com furor.
Vejam só que homem, hem? É
um mequetrefe!... Esta noite e dora em diante, venho dormir nesta sala a ver se
ele se mexe da cama. Ah! se eu pudesse!... caia‑lhe de calaboca em cima,
que lhe deixava as costelas em. lascas.
Acabavam as imprudentes
histórias de José Pinho de pôr a ultima pedra no edifício da desconfiança que
tão depressa erigira a imaginação de Pereira em desconceito de Meyer. O que
nelas havia de verdade, eram apenas algumas horas de lazer, consagradas,
durante a estada no Rio de Janeiro, pelo naturalista ao consumo de grandes
copázios de cerveja no café Stadt Coblenz, e nas quais entretivera risonhos,
bem que inocentes colóquios, com pessoas do sexo amável, freqüentadoras daquele
estabelecimento e de costumes não lá muito rigorosos.
XVI—O EMPALAMADO
Ao homem não faltam
importunações quanto à vossa capacidade, bem a conhecemos.
(Molière, O Médico A Força).
Conforme o prometido, trouxe
Pereira a rede para a sala dos li hóspedes e, encetando um modo de vigilância
muito especial ainda que perfeitamente inútil em relação à pessoa suspeitada, associou
os sonoros roncos do valente peito à ruidosa respiração de Meyer.
Se, contudo, não tivessem
seus olhos a venda da confiança ou, melhor, se o sono não os acometesse sempre
com tamanha imposição,, decerto em breve houvera estranhado a cruel agitação em
que vivia Cirino e que este não podia mais encobrir.
Na verdade, o modo por que o
infeliz mancebo passava as noites era de fazer nascer suspeitas no espírito
mais indiferente e desprevenido. Ou se revolvia na cama, dando mal abafados
suspiros, ou então saia para o terreiro, onde se punha a passear e a fumar
cigarros de palha uns após outros, até que os galos, alcandorados na cumeeira
da casa e nas árvores mais próximas, anunciassem as primeiras barras do dia.
Desabrida paixão enchia o
peito daquele malsinado; dessas paixões repentinas. explosivas. irresistíveis,
que se apoderam de uma alma, a enleiam por toda a parte, prendem‑na de
mil modos e a sufocam como as serpentes de Netuno a Laocoonte. Conhecedor como
era, dos hábitos do sertão, do jugo absoluto dos preconceitos, do respeito
fatal à palavra dada, antevia tantas dificuldades, tamanhos obstáculos diante
de si, que, se de um lado desanimava, do outro mais sentia revoltado o nascente
e já tão violento afeto.
—Deus me ajudará, pensava
consigo mesmo: o que só quero e a amizade de Inocência Há dias que não a
vejo... se não puder mais vê‑la... dou cabo da vida...
Sublevava‑se o seu
coração, girava‑lhe o sangue com vertiginosa rapidez nas velas e vinha
toldar‑lhe a vista, trazendo ondas de rubro calor ao descorado rosto.
—Nossa Senhora da Abadia,
implorava ele puxando os cabelos com desespero, valei‑me neste apuro em
que me acho! Dai‑me pelo menos esperanças de que aquela menina poderá um
dia querer‑me bem.., Nada mais desejo... Possa o fogo que me consome abrasar
também o seu peito...
Costumava a fervorosa prece
dirigida à santa da especial devoção de toda a Província de Goiás acalmar um
pouco o mancebo, que alquebrado de forças pegava no sono para, instantes
depois, acordar sobressaltado e cada vez mais abatido.
Também estava sempre de pé
quando Pereira costumava saltar da rede.
—Oh! observou ele da
primeira vez, isto 6 que se chama madrugar.
—Pois é contra o meu
costume, replicou Cirino, todas estas noites tenho passado mal...
—Na verdade vosmecê não está
com boa cara...
—Creio que me entraram no
corpo as maleitas.
—Essa é que é boa! Então o
doutor foi emprestar(') da doente a moléstia?...
Olhe, é preciso por‑se
forte, porque hoje mesmo há de lhe chegar uma boa maquina de doentes...
—Melhor...
—Já está tudo espalhado por
ai da sua chegada e a romaria não há de tardar.
—Cá a espero...
—Naturalmente virá primeiro
o Coelho... t: boa ocasião de pagar a sua divida... Não tenha receio de puxar
mais no preço...
—Daqui mesmo pretendo
despachar um próprio para me ver livre dessa obrigação...
—Isso mostra que o Sr.é
pessoa de brio... Não 6 como certa gente que conheço...
Ao dizer estas palavras,
voltara‑se Pereira para Meyer a contemplá‑lo atentamente.
Estava na verdade o alemão digno
de exame, posto ainda de parte outro qualquer motivo que não o de simples
curiosidade.
Dormia com as pernas e
braços abertos e caldos para fora do estreito leito das canastras: tinha o
queixo muito levantado pela posição incômoda da cabeça, deixando a boca meio
aberta ver uma fieira de magníficos dentes.
—Está roncando, hem?
murmurou o mineiro. Cavouqueiro... a mim você não engana..., mas é o mesmo!
Iam as prevenções de Pereira
tomando proporções de idéia fixa, e Meyer, na simplicidade da ignorância, como
que de propósito ministrava
elementos para que elas mais e mais se fossem arraigando.
Assim, ao almoço, lembrou‑se
de perguntar entre duas enormes colheradas de feijão:
—Sua filha, Sr. Pereira?
Como vai? É melhor?
—É melhor o quê, Mochu?
exclamou o pai com modo esquivo.
—A saúde dela é melhor?
—Está melhor; está, está,
respondeu Pereira muito secamente. Está boa... vai fazer uma viagem...
—Viagem, para onde?... Até a
vila?
—Homem; Mochu, observou o
mineiro um tanto desabrido, vosmecê está que nem mulher velha, tudo quer
saber...
Meyer, nessa repreensão, que
lhe causou vexame e alguma admiração, só enxergou censura justa a sua
curiosidade, falta que confessou com toda a nobreza, embora agravando a
situação.
—É verdade, Sr. Pereira,
concordou ele. A boa educação não manda o que eu fiz .. mereço, porém,
desculpa, mereço... Sua filha é tão interessante... que me lembro sempre
dela... Tenho comigo uns presentezinhos...
—Guarde‑os, rosnou
Pereira abafando a reflexão num acesso de tosse.
E para evitar o prosseguimento
de semelhante assunto, deu por finda a refeição, levantando‑se da mesa.
— Aí vem o Coelho, doutor, exclamou ele olhando
para fora. Xi! como esta amarelo!... Há tempos que o não via... já parece alma
do outro mundo... É do tal em quem falamos... Aperte‑o, porque é mofino
como tudo...
E, interpelando a quem
chegava gritou:
—Bons olhos o vejam!... Se
não fosse, amigo Sr. Coelho, ter médico em casa, nunca havéra de vê‑lo
por cá; não é verdade?
—Ora, respondeu o outro com um
gemido, ando sempre tão doente. Nem faz gosto viver assim... Mas qu'é dele, o
homem?
—Está aqui...
—Já me disseram que faz
milagres. Deixou nome para lá das Parnaíbas... Sabia?
— Lá que tivesse deixado
nome, não: mas que 6 cirurgião de patente, tenho certeza, porque, num abrir e
fechar de olhos, me pôs de pé uma pessoa cá de casa.
—Se ele me curar... não sei
mesmo como lhe agradecer.
—É pagar‑lhe, concluiu
Pereira, tratando logo de advogar os interesses do hóspede.
—Sim, hei de... pagar‑lhe,
confirmou o outro com alguma hesitação.
—Em todo caso, desça do
animal.
Pouco depois, entrava na sala
e cumprimentava a Cirino e a Meyer a pessoa a quem o mineiro chamara Coelho.
Era homem já de idade, muito mais quebrantado por enfermidades que pelos anos;
tinha a testa enrugada, as bochechas meio inchadas e balofas, os lábios quase
brancos e os olhos empapuçados.
—Qual dos senhores é o
doutor? perguntou ele.
—Sou eu, respondeu Cirino,
revestindo‑se de convicto ar de importância, enquanto Meyer apontava para
ele, cedendo direitos que talvez pudesse contestar.
Interveio Pereira com
amabilidade:
—Sente‑se, Sr. Coelho,
sente‑se. Não se ponha logo a falar de moléstias... Isto não vai de
afogadilho... Descanse um pouco... Olhe, já almoçou?
—O pouco que como, retrucou o
outro, já está comido.
—Pois bem, ponha‑se
primeiro a gosto: depois então, converse com o doutor... Diga‑me: que há
de novo pela vila?
—Que eu saiba, nada... Também
há mais de ano que de lá nenhuma noticia tenho... já não se me dá do que vai
pelo mundo... Quem não goza saúde, perde o gosto de tudo... E mesmo uma
calamidade . . .
Enquanto Coelho, em toada
monótona, desfiava outras queixas no mesmo sentido, tirara Cirino da canastra o
seu Chernoviz e algumas ervas secas que depôs em cima da mesa.
—O senhor, declarou ele
voltando‑se para o doente, está empalamado..
—É verdade, Sr. doutor.
— Eu, que não sou físico,
observou Pereira, diria logo isso...
—Xi, compadre! atalhou Coelho
com impaciência e pedindo silêncio.
—O senhor, continuou Cirino com
entono, teve maleitas muitos anos afios depois começou a sentir fastio e o
estômago embrulhado; inchou todo e em seguida definhou... Aos poucos, foi
perdendo a sustância e o talento.
—Tal qual! murmurou Coelho
seguindo com cautelosa atenção a marcha do diagnóstico.
—Agora, o Sr. não pode comer
que não sinta afrontação, não 6?
—Muita, Sr. doutor.
—Este homem, disse Pereira
para Meyer, leu bastante nos livros . . . —Veio‑lhe depois uma canseira, e, quando o
Sr. anda, dão‑lhe uns suores e tremuras por todo o corpo... O baço está
ingurgitado e o fígado também... De noite fica o Sr. sem poder tomar
respiração, mais sentado que deitado... As vezes tosse muito, uma tosse sem
escarrar, como quem tem um pigarro seco...
—Tal qual! repetiu o enfermo com
unção e quase entusiasmo.
—Pois bem, terminou Cirino,
como já lhe disse, o Sr. está empalamado.
—E não há cura? perguntou
Coelho meio duvidoso.
—Há, mas o remédio 6 forte
—Contanto que faça bem...
—Muita gente, replicou
Cirino, tenho já curado em estado pior que o Sr.; mas, repito, o remédio 6
violento...
—Tomarei tudo, afirmou
Coelho: há anos que faço um horror de mezinhas e de nenhuma delas tiro
proveito. Vamos ver.
Cirino neste porto mudou o
tom de voz e olhando para Pereira:
—O Sr. sabe, observou ele que
o meu modo de vida 6 este...
Com um movimento de cabeça
aplaudiu o mineiro aquela entrada em matéria.
O mesmo não pensou Coelho,
que tartamudeou:
—Ah!... Estou pronto... Sou
pobre, muito pobre...
Piscou Pereira um olho com
malícia.
—Costumo, continuou Cirino,
receber o pagamento em duas ametades. . .
Depois acrescentou, um tanto
vexado:
—Se falo nisto agora com esta
pressa, 6 porque também tenho precisão urgente de dinheiro. . Não acha, Sr.
Meyer?
—Pois não, pois não, concordou
o alemão: tem todo o direito.
—Meu amigo, corroborou
Pereira, o doutor não trabalha para o bispo; tem que ganhar honradamente a
vida.
—Então, como lhe dizia,
prosseguiu o outro dirigindo‑se para Coelho, o senhor pagar‑me‑á
no principio da aplicação e no fim. Assim, não há enganos... Serve‑lhe?
—Que remédio! suspirou
Coelho. Eu lhe darei... até trinta mil‑réis... ou... quarenta...
—Qual! retorquiu Cirino. O
meu preço 6 um só.
—E a quanto monta?
—A cem mil‑réis.
—Cem mim réis! exclamou
Coelho aterrado.
—Cinqüenta no principio,
cinqüenta no fim.
Gemeu o doente lá consigo.
—Ora o que 6 isto para você,
compadre? interveio Pereira. Um atilho de milho para quem tem tulhas cheias a
valer!...
—Nem tanto, nem tanto assim,
objetou Coelho.
—Deixe‑se de historias,
continuou Pereira. Se vosmecê não tivesse bons patacos, eu diria logo ao nosso
amigo:—Olhe que este 6 dos nossos, não tem onde cair morto — e ele havéra de
curar de graça... não é?
—Decerto, decerto, declarou
Cirino com muita prontidão.
—Mas com vosmecê o caso 6
defronte! Doutra maneira, por que razão havia um cirurgião de andar por estes
socavões? Também quer bichar um pouco...
— É muito justo...
—Cinqüenta... mil... réis,
balbuciava Coelho; assim de pancada. . .
—Se o médico o cura, disse
Meyer intrometendo‑se, 6 negócio da China.
Nada dizia Cirino por
dignidade própria. Estava folheando o Chernoviz, cujas páginas mostravam
continuo manusear, algumas até enriquecidas de notas e observações à margem.
Assim no artigo opilação ou
hipoemia intertropical havia ele escrito ao lado: "E o que se chama no
sertão moléstia de empalamado". E, no fim abrira grande chave para
encerrar esta ousada e peremptória sentença: "Todos estes remédios de nada
servem. Sei de um muito violento, mas seguro. Foi‑me, há anos, ensinado
por Matias Pedroso, curandeiro da Vila do Prata, no sertão da Farinha Podre,
velho de muita prática e que conhecia todas as raízes e ervas do campo".
—Pois bem, disse Coelho
depois de grande hesitação, está o negócio fechado. Mas, olhe que entrará no
pagamento o preço das mezinhas, e as visitas hão de ser feitas em minha casa...
—Não há duvida, concordou
Cirino; irei à sua fazenda todos os dias... Não é longe daqui?
—Nhor‑não... duas
léguas pequenas, pela estrada.
—Bem. O senhor, em voltando a
casa, meta‑se logo na cama.
Coelho fez sinal que sim.
—Amanhã, continuou o moço,
deve tomar estes pós que lhe estou mostrando. Divida isto em duas porções; há
de fazer‑lhe muito efeito; depois descanse dois ou três dias, se acaso se
sentir muito fraco; em seguida:
E parando de repente,
encarou Coelho alguns instantes:
—O Sr. quer mesmo curar‑se?
—Oh! se quero!
—E tem confiança em mim?
—Abaixo de Deus só mecê pode
salvar‑me.
—Então, tomará às cegas o
que eu lhe receitar?
—Até carvão em brasa.
—Olhe bem o que diz . . Não
gosto de começar a tratar para depois parar...
—Não tenha esse medo
comigo...
Viver como vivo, antes
morrer...
—Então, continuou Cirino com
pausa, acabados os dias de sossego, há de o senhor engolir uma boa data de
leite de jaracatiá.
— Jaracatiá?! exclamaram com
assombro o doente e Pereira.
—Jarracatiá?! gaguejou por
seu turno Meyer, arregalando os olhos, que 6 jarracatiá?
—Mas isso vai queimar as
tripas do homem, observou o mineiro.
Cirino replicou um tanto
ofendido:
—Não sou nenhum criançola,
Sr. Pereira. Sei bem o que estou dizendo. Este remédio 6 segredo meu, muito
forte, muito daninho; mas não é nem uma, nem duas vezes, que com ele tenho
curado empalamados. A coisa está no modo de dar o leite e na quantidade: por
isso, é que não faço mistério, avisando contudo que com uma porçãozinha mais do
que o preciso, o doente está na cova...
—Salta! atalhou Pereira, tal
mezinha não quero eu... antes ficar empalamado.
—Que é jarracatia? tornou a
perguntar Meyer.
Coelho abaixou a cabeça e parecia
estar refletindo na resolução que havia de abraçar.
Depois, com voz melancólica:
—O dito, dito, declarou,
aceito tudo o que vosmecê me der. Agora, quanto fizer está bem feito... Como é
que devo tomar o jaracatiá??
—Em tempo lhe direi,
replicou Cirino. Fazem‑se três cortes no pé da árvore e deixa‑se
correr o primeiro leite: eu mesmo hei de recolher o que for bom. Tenha toda a
confiança em que o senhor ficará são... Bem sabe, ninguém em negócio de doença,
mais do que outro qualquer, pode nunca dizer: isto há de ser assim ou assado...
Todos estamos nas mãos de Deus. Só Ele pode saber se a moléstia nos sairá do
corpo ou nos há de atirar à sepultura. Todo o bom cristão conhece isto e deve
conformar‑se com a vontade divina... O que o médico faz 6 ajudar a
natureza e dar a mão ao corpo quando ele pode ainda levantar‑se...
—Justo, justo! apoiou Meyer,
então todo empenhado em picar um formoso coleóptero.
—Assim também é que eu
entendo, disse o mineiro.
—Mas, o que é jarracatiá,
Sr. Pereira? insistiu o alemão.
Voltou‑se o
interpelado com impaciência:
—E uma árvore, Sr Meyer,
árvore grande, de folhas cortadas, que dá umas espécies de mamõezinhos. Deitam
leite muito grosso e queimam os beiços quando a gente não tem cuidado. E uma
árvore, ouviu? Uma árvore!
—Ah! exclamou o alemão
concertando a garganta.
Nesta ocasião sacou Cirino
da canastra outros remédios e passou‑os a Coelho, dando‑lhe
minuciosas informações sobre o modo por que havia de usar deles.
—Tem muito enjôo, quando
come? perguntou o curandeiro.
—Muito, Sr. doutor.
—Assim é, mas deixe estar;
depois do leite de jaracatiá, volta‑lhe a apetência. Nos primeiros
tempos, o senhor só há de beber claras de ovos bem batidas. Depois, ira a pouco
e pouco tomando mais alimento.
—Deus o onça...
Levantou‑se Pereira e,
chegando‑se à porta, anunciou:
—Ai vem gente... Estou
ouvindo passos de animal montado... Sem dúvida e algum pobre engorovinhado de
doença. Isto de moléstias, não faltam no mundo. Também há tanta maldade, que
não pudera ser por menos.
Depois de ligeira pausa,
acrescentou em tom de surpresa e aborrecimento.
—Hi meu Deus!... Nossa
Senhora nos socorra... Sabem quem vem chegando?... É o Garcia; está com o mal!
há mais de dois anos e não quer crer na desgraça... Pobre coitado, sem dúvida
vem comprar o desengano... Tenho muita pena dessa gente... mas, deveras, não a
quero ver em minha casa... Vamos, Sr. doutor, despache o Garcia depressa. Com
lázaros não se brinca. A Senhora Sant'Ana de tal nos livre! Nem olhar 6 bom.
E, Pereira, voltando‑se
para dentro, pediu apressadamente:
—Não deixe o homem desapear,
doutor: ficava‑me depois o desgosto de ter que lhe fazer alguma má‑criação.
Pelo amor de Deus vá lá fora... Veja o que ele quer... e dê‑lhe boas
tardes da nossa parte... Olhe, esta chamando... Sala, doutor, saia!
Ouvia‑se, com efeito,
uma voz perguntar se estava em casa o Sr. Pereira.
Este, vendo que Cirino não
se apressava à medida dos seus desejos, ou temendo que o recém‑chegado
lhe entrasse na sala, sem demora apareceu à soleira da porta e, com manifesta
sequidão, respondeu ao humilde cumprimento de chapéu e à meiga saudação que lhe
era dirigida.
XVII—O MORFÉTICO
O leproso. — Interesse? Ah!
nunca inspirei senão compaixão...
O militar — Quão feliz fora eu se pudesse dar‑vos
algum consolo!...
( Xavier de Maistre, O Leproso de Aosta).
Não devo ter sociedade senão
comigo mesmo, nenhum amigo, senão Deus.
Generoso estrangeiro, adeus, se feliz. Adeus para
sempre!
(Idem).
A pessoa que chegara, bem
que tivesse descavalgado, não se adiantou ao encontro do dono da casa. Pelo
contrário como que recuou, conservando‑se depois imóvel, encostado a um
burrinho, cujas rédeas segurava.
De seu lugar, perguntou‑lhe
Pereira com expressão não muito prazenteiro:
—Então, como vai, Sr.
Garcia?
—Como hei de ir, respondeu o
interpelado. Mal... ou melhor, como sempre.
—Pois esteja na certeza de
que muito sinto.
—Está ai o cirurgião?
indagou Garcia.
—Não tarda a vir vê‑lo
ai fora... Olhe, é um instantezinho.
Palavras tão cruéis não
pareceram fazer mossa ao desgraçado.
— Esperá‑lo‑ei
com toda a paciência, replicou melancólico.
—Já sei que volta hoje para
casa, afirmou Pereira.
—Volto. Se a noite me pegar
em caminho, ficarei no pouso das Perdizes.
—E verdade: lá há uma
tapera. Mas o Sr. não tem medo de almas do outro mundo? Dizem que o tal rancho
velho é mal‑assombrado.
—Eu? exclamou o infeliz. Só
tenho medo de mim mesmo. Quisesse um defunto vir gracejar um pouco comigo, e de
agradecido lhe beijava os dedos roídos dos bichos. Olhe, Sr. Pereira, continuou
com voz um tanto alta e agoniada, não levo a mal o senhor não me convidar para
entrar em sua casa; não, no seu caso havia de fazer o mesmo.
Oh! Sr. Garcia! quis
protestar Pereira.
—Nada;... digo‑lhe isto
do coração... Na minha família sempre tivemos nojo de lázaros... Sou o
primeiro... O Sr. nem imagina... Vivi muitos anos meio desconfiado... A ninguém
contei o caso... De repente, arrebentou o mal fora. Já não era mais possível
enganar nem a um cego... Ah! meu Deus, quanto tenho sofrido!...
—Permita Ele, interrompeu
Pereira em tom compassivo, que este doutor tenha algum remédio... Bem vê... às
vezes...
—Curar a morféia? replicou
Garcia com sorriso pungente de sarcasmo. Não há esse pintado... que em tal
pense...
—Então para que quer ver o
médico?
— Só para uma coisa... Saber
pelos livros que ele tem lido e pelo conhecimento das moléstias, se isto
pega... É só o que quero... Porque então fujo de minha casa. Desapareço desta
terra... e vou‑me arrastando até tombar nalgum canto por ai... Dizem uns
que pega... outros que não... que 6 só do sangue... Eu não sei...
É, abanando tristemente a
cabeça, apoiou‑se ao tosco selim.
Depois, ergueu os olhos para
os céus, e exclamou:
—Cumpra‑se tudo quanto
Deus Nosso Senhor Jesus Cristo houver determinado!... Se o médico me
desenganar, não quero que a minha gente fique toda... marcada... Irei para São
Paulo...
Pereira cortou este doloroso
diálogo:
—Está bem, patrício Garcia,
disse, vou já mandar‑lhe o homem. . . espere um pouco. . .
E, entrando, reiterou o pedido
a Cirino, que se demorara a receitar a Coelho umas beberagens de velame e pés‑de‑perdiz,
plantas muito abundantes naquelas paragens, de grandes virtudes diuréticas e
que deveriam ser empregadas um mês depois da aplicação do leite de jaracatiá.
—Ande, doutor, instou
Pereira, vá lá fora ver o coitado do outro e despache‑o depressa. Estou
todo enfernizado por vê‑lo no meu terreiro.
Cirino saiu então e,
caminhando com lentidão, parou a alguns passos do mal‑aventurado Garcia,
cujo rosto repentinamente se contraiu enquanto tirava o chapéu com submissão e
receio.
Vinha então a tarde descendo,
e a luz do crepúsculo irradiava por toda a parte, tão melancólica e suave que,
sem saber por que, a alma de Cirino de repente se confrangeu.
Com assombro o encarava o lázaro.
Diante dele se erguera quem lhe ia apontar o caminho da eterna proscrição. Dos
seus lábios ia cair a sentença última, irremediável, fatal!
Quanta angústia no olhar daquele homem! Que pensamentos sinistros!
Quanta dor!
Também ficara ali atônito, boquiaberto,
à espera que a palavra de Cirino lhe quebrasse o horroroso enleio.
—Então, disse este depois de
breve pausa, que me quer o senhor? —Doutor, balbuciou Garcia... primeiro que
tudo quero... pagar‑lhe;... trouxe algum... dinheiro... mas, talvez... seja...
pouco.
Interrompeu‑o Cirino:
—Não recebo dinheiro para
tratar... da sua moléstia.
—Quer isto dizer, replicou
com acabrunhamento Garcia, que ela não tem cura... Eu bem sabia, mas. . é tão
duro ouvir sempre isso!. . Olhe, o meu mal 6 de pouco . . . está em principio.
Quem sabe... se o Sr. não conhecerá alguma erva?...
— Infelizmente, respondeu
Cirino, nem eu, nem ninguém conhece essa planta...
—Enfim!
E Garcia, fechando os olhos
como que para concentrar as forças, continuou:
—Ah! doutor, eu sou um pobre
homem... velho já cansado... Por que não me velo a morte em lugar desta
podridão que me esta comendo as carnes?... Muito tempo a senti dentro de mim...
Disfarcei, até ao dia em que minha neta... a filha do meu coração.. a Jacinta.
. . ela mesma, mostrou certo receio de me abraçar . . Ah! senhor, quanto se
sofre nesta vida!
E Garcia parou ofegante,
empalidecendo muito.
—Dê‑me água, exclamou
ele, água... pelo amor de Deus!... Pudesse agora... ser o meu dia... A minha
garganta... está que nem fogo! . . .
E agarrou‑se aos
arreios para não cair no chão.
Cirino correu a buscar água.
—Onde há de ser? perguntou
Pereira.
—Onde queira, respondeu o
outro com pressa, veja que aquele cristão está sofrendo...
—Ah! leve a caneca de
louça... Depois a quebraremos...
Com sofreguidão tomou o
lázaro o vaso, bebeu de um trago e pareceu melhorar.
—Foi um vagado, disse
reassumindo aos poucos a calma. Mas, como lhe contava, certeza tinha eu do mal.
Agora, só quero saber uma coisa e vou‑me de partida. Esse mal... pega,
doutor?
—Pega, afirmou Cirino com
tristeza.
—E que me resta fazer?
—Pedir à Senhora Sant'Ana
paciência e a Nosso Senhor Jesus Cristo. . Garcia abanava a cabeça acabrunhado.
...que o proteja na sua vida
de desgraças.
—Meu Deus, balbuciou o
morfético a meia voz, dai‑me forças... coragem para que eu faça o que
devo fazer.
E, com súbita resolução:
—Cumpra‑se a vontade
do Altíssimo! exclamou, enfim. Doutor, obrigado! O pobre lázaro há de pedir ao
Todo‑Poderoso que neste mundo e no outro lhe pague as suas palavras de
homem de letras... Adeus! Eu me vou para as terras de São Paulo... Talvez me
junte à gente da minha espécie Adeus...
E, a custo montando a
cavalo, voltou‑se para as pessoas que tinham de longe vindo assistir à
consulta.
— Adeus, disse ele acenando
com o chapéu, gente e patrícios. Sr. Pereira, Sr. Coelho, mais senhores, adeus!
Eu me boto de uma feita para lá das Parnaíbas. . . Este sertão não me vê mais nunca!,
Acolheu o silêncio essas
palavras de eterna despedida.
Garcia então, esporeando com
o calcanhar o ventre da cavalgadura, a passo tomou rumo da estrada geral e
sumiu‑se numa das voltas do caminho, quando já vinha a noite estendendo o
seu lúgubre manto.
XVIII—IDÍLIO
Mas, que luz e essa que ali
aparece naquela janela? A janela é o Oriente e Julieta o Sol. Sobe, belo astro,
sobe e mata de inveja a pálida lua.
(Shakespeare,
Romeu e Julieta, Ato II).
Entretanto, desde algum
tempo, sentia‑se Virgínia agitada de mal desconhecido... Em sua fronte, não
pousava mais a serenidade, nem o sorriso lhe pairava nos lábios... Pensa ela na
noite, na solidão, e logo devorador a abrasa toda.
(B. de Saint‑Pierre, Paulo e Virgínia).
Decorreram sem novidade dias
e dias uns após outros; Cirino diagnosticando e curando ou melhor, receitando;
Meyer aumentando cada vez mais a sua bela coleção entomológica, sempre
feitorizado por Pereira, que cautelosamente tratava de mantê‑lo no
suspeito círculo da sua apertada vigilância.
Confidente de todos os
infundados e mal empregados receios era Cirino.
—O alamão, dizia o mineiro,
não me deixa pôr pé em ramo verde, mas também trago‑o vigiado que é um
gosto... Se desconfiasse, teria medo até da sua sombra... Estou em brasas...
Não sei por que não chega o Manecão Doca... Quero arriar a carga no chão...
Agora, mais do que nunca, devo casar Nocência... Estas mulheres botam sal na
moleira de um homem. Salta! E ainda isto tudo não 6 nada.
—Então espera muito breve o
Manecão? perguntou o outro com ansiedade.
—Não pode tardar... por
estes dois ou três dias quando muito... Vem de Uberaba e sem dúvida por lá
arranjou todos os papéis... Dei a certidão do meu casamento... a do batismo da
pequena... e adiantei dinheiro para as despesas... bem que ele refugasse meio
vexado.
— Então está tudo decidido?
perguntou Cirino com vivacidade.
—Boa dúvida!... Já lhe tenho
dito mais de uma vez. Hoje é coisa de pedra e cal... Se até trato o Manecão de
filho... A honra desta casa 6 também honra dele.
—Mas sua filha?
— Que tem?
—Gosta dele?
—Ora se!. . Um homenzarrão...
desempenado. E, quando não gostasse, é vontade minha, e está acabado. Para
felicidade dela e, como boa filha que 6, não tem que piar... Estou, porém,
certíssimo de que o noivo lhe faz bater o coração... tomara ver o cujo chegado!
Já nesse tempo, como
dissemos, Inocência de todo se restabelecera, ainda que Cirino tivesse feito
quanto possível render a enfermidade. Mas, quando o rubor da saúde voltou à
acetinada cútis da sertaneja e 0 vigor ao esbelto corpo, não houve pretexto a
que se apegar, e as entrevistas curtas e graves de médico foram cortadas, até
mesmo para não desviar a atenção de Pereira da pessoa de Meyer.
Com o coração, pois, partido
de dor, declarou que os e eus cuidados e presença se tornavam completamente
desnecessários.
Seguiram‑se então
semanas inteiras, sem que pudesse por os ansiosos olhos na formosa namorada, e
por tal modo se exacerbou a sua paixão que, para encobri‑la c disfarçar a
excitação nervosa, a falta de apetite e palidez extrema, teve que recorrer a
desculpas de moléstia; caiu realmente doente.
A incerteza em que se via,
sem, pelo menos, saber se o seu afeto era ou não correspondido, dava‑lhe
acessos de violenta angústia, que a desoras tocava às ratas da exasperação.
Uma noite, em que havia luar
embaciado por ligeira bruma, tomou a sua aflição tal violência que ele decidiu
fugir daquele local de sofrimentos e incertezas, logo na manhã seguinte.
Assente uma vez nesta
resolução, ergueu‑se do leito em que jazia prostrado pelo mais cruel
desalento e, com algum custo, saiu para o terreiro, abrindo cautelosamente a
porta da casa, a fim de não acordar os companheiros de quarto. Uma vez fora,
sentou‑se num tronco de madeiro e ali ao ar fresco e acariciador da
madrugada, entrou com mais tranqüilidade a pensar no caso.
Seria uma hora depois de
meia‑noite.
Estavam os espaços como que
iluminados por essa luz serena e fixa que irradia de um globo despolido; luz
fosca, branda, sem intermitências no brilho, sem cintilações, e difundida
igualmente por toda a atmosfera.
Haviam j á os galos cantado
uma vez, e, ao longe, muito ao longe, de vez em quando, se ouvia o clamor das
anhumapocas.
Levantou‑se de repente
Cirino.
Depois de alguma vacilação,
deu uma volta por toda a habitação, pulando os cercados, e tomou o ramo do
frondoso laranjal, a cuja espessa sombra se abrigou por algum tempo. Achegou‑se,
em seguida, à cerca dos fundos da casa e parou no meio do pátio, olhando com
assombro para uma janela aberta.
Um vulto ali estava!... Era
o dela; Inocência.. Não havia duvidar.
A principio, nenhum
movimento fez; mas, depois, lentamente se foi retirando e aos poucos fechou o
postigo.
Cirino deu um só pulo e de
leve, muito de leve, bateu apressadas pancadas na tábua da janela.
—Inocência!... Inocência!...
chamou com voz sumida, mas ardente e cheia de súplica.
Ninguém lhe respondeu.
—Inocência, implorou o moço,
olhe... abra, tenha pena de mim... Eu morro por sua causa...
Depois de breve tempo, que
para Cirino pareceu um século, descerrou‑se a medo a janela, e apareceu a
moça toda assustada, sem saber por que razão ali estava nem explicar tudo
aquilo.
Parecia‑lhe um sonho.
Quis, entretanto, dar
qualquer desculpa à situação e, fingindo‑se admirada, perguntou muito
baixinho e a balbuciar:
—Que vem... mecê... fazer
aqui?... já... estou boa.
Da parte de fora, agarrou‑lhe
Cirino nas mãos.
—Oh! disse ele com fogo,
doente estou eu agora... Sou eu que vou morrer... porque você me enfeitiçou, e
não acho remédio para o meu mal.
—Eu... não, protestou
Inocência.
—Sim... você que é uma mulher
como nunca vi... Seus olhos me queimaram... Sinto fogo dentro de mim... Já não
vivo... o que só quero 6 vê‑la... 6 amá‑la, não conheço mais o que
seja sono e, nesta semana, fiquei mais velho do que em muitos anos havia de
ficar... E tudo, por quê, Inocência?
—Eu não sei, não, respondeu a
pobrezinha com ingenuidade. —Porque eu amo... amo‑a, e sofro como um
louco... como um perdido.
—Ué, exclamou ela, pois amor
6 sofrimento?
—Amor é sofrimento, quando a
gente não sabe se a paixão é aceita, quando se não vê quem se adora; amor é
céu, quando se está como eu agora estou,
—E quando a gente está longe,
perguntou ela, que se sente?... —Sente‑se uma dor, cá dentro, que parece
que se vai morrer.. Tudo causa desgosto: só se pensa na pessoa a quem se quer,
a todas as horas do dia e da noite no sono, na reza, quando se pede a Nossa
Senhora, sempre ela, ela, ela!... o bem amado... e...
—Oh! interrompeu a sertaneja
com singeleza, então eu amo... —Você? indagou Cirino sofregamente.
—Se é como... mecê diz...
—É é... eu lhe juro!...
—Então... eu amo, confirmou
Inocência.
—E a quem?... Diga: a quem?
Houve uma pausa, e a custo
retrucou ela ladeando a questão:
—A quem me ama.
—Ah! exclamou o jovem, então
6 a mim... é a mim, com certeza, porque ninguém neste mundo, ninguém, ouviu? é
capaz de amá‑la como eu... Nem seu pai... nem sua mãe, se viva fosse...
Deixe falar seu coração... Se quer ver‑me fora deste mundo... diga que
não sou eu, diga!...
—E como ia mecê morrer?
atalhou ela com receio.
—Não falta pau para me
enforcar, nem água para me afogar.
—Deus nos livre! não fale
nisso... Mas, por que 6 que mecê gosta tanto de mim? Mecê não é meu parente,
nem primo, longe que seja, nem conhecido sequer... Eu lhe vi apenas pouco
tempo... e tanto se agradou de mim?
—E com você... não sucede o
mesmo? perguntou Cirino.
—Comigo?
—Sim, com você... Por que 6
que está acordada a estas horas? Por que é que não pode dormir?... que a cama
lhe parece um braseiro, como a mim também parece?... Por que pensa em alguém a
todo o instante? Entretanto, esse alguém não 6 primo seu, longe que seja, nem
conhecido sequer?...
—É verdade, confessou
Inocência com doce candura.
Depois quis emendar a mão:
—Mas, quem lhe disse que vivo
pensando em mecê?
—Inocência, implorou o moço, não
queira negar, vejo que sou amado . . .
—Sempre amar! observou ela,
mais para si do que para quem a ouvia. No ano que já passou e por ocasião da
Sra. Sant'Ana, aqui vieram umas parentas minhas e caçoaram comigo, porque eu
não as entendia: tanto assim que uma delas, a Nhã Tuca, me disse:
"Deveras, mecê ainda não gostou de nenhum moço? E eu respondi: Não assunto
o que mecês estão a prosear". Aquilo era certo, e tão verdade como estar
nosso Deus no paraíso... Hoje...
—E hoje?
—Hoje? repetiu a moça. Quem
sabe se não era bem melhor não ter nunca gostado de ninguém?
—Isso não está na gente. . .
É ordem lá de cima. . .
—Enfim, se for destino, que
se cumpra.
Conservava‑se Inocência
ainda um pouco arredada da janela, de modo que Cirino, para lhe falar baixinho,
tinha o corpo inclinado do lado de dentro. Segurava as mãos da namorada e
puxava‑a com doce violência, quando mostrava querer afastar‑se.
Era o ardente colóquio dos
dois cortado de freqüentes pausas, durante as quais se embebiam recíprocos os
olhares carregados de paixão.
—Deixa‑me ver bem o teu
rosto, dizia Cirino a Inocência Para mim, é muito mais belo que a Lua e tem
mais brilho que o Sol.
E, apesar de alguma
resistência, fraca embora, mas conscienciosa, que lhe foi oposta, conseguiu que
a formosa rapariga se recostasse ao peitoril da janela.
—Amar, observou ela, deve ser
coisa bem feia.
—Por quê?
—Porque estou aqui e sinto
tanto fogo no rosto!... Cá dentro me diz um palpite que é pecado mortal que
faço...
—Você tão pura! contestou
Cirino.
— Se alguém viesse agora e
nos visse, eu morria de vergonha. Sr. Cirino, deixe‑me . . . vá‑se
embora! . . . o Sr. me atirou algum quebranto... aquela sua mezinha tinha
alguma erva para mim tomar... e me virar o juízo...
— Não, atalhou o mancebo com
força, eu lhe juro! Pela alma de rainha mãe... o remédio não tinha nada!
—Então por que fiquei...
ansim, que me não conheço mais?... Se papai aparecesse... não tinha o direito
de me matar?...
Foi‑se‑lhe a voz
tornando cada vez mais baixa e sumiu‑se num golfão de lágrimas.
Atirou‑se Cirino de
joelhos diante dela.
—Inocência, exclamou, pela
salvação de minha alma lhe dou juramento, nada de mau fiz para prender o seu
coração.. Se você me quer, e porque Deus assim mandou... Sou um rapaz de bons
costumes . Ate hoje nunca tinha amado mulher alguma... mas não sei como deixar
de amar uma moça como você... Perdoe‑me; se você sofre... eu também
padeço muito... perdoe‑me...
Alçara o mancebo um pouco a
voz.
De repente Inocência
estremeceu.
—Não ouviu ruido? perguntou
ela com terror.
—Não, respondeu Cirino.
—Alguém acordou lá dentro...
—Pois... então vá ver... o
que é... e se não for nada, volte... Aqui a espero, escondido à sombra da
parede...
Minutos depois, reapareceu a
moça.
—Não vi nada, disse.
— Então foi abusão.
—É melhor que o Sr. se vá
embora.
—Não, Inocência tenha pena
de mim... Eu não poderei vê‑la tão cedo e... preciso conversar... mesmo
para arranjo da nossa vida. . O Manecão não tarda...
—Ah! exclamou ela com
sobressalto, então mecê sabe...
—Sei; e desgraçadamente,
breve está ele batendo aqui...
—Eu bem dizia que o Sr. me
havéra de perder... Antes de o ter visto... casar com aquele homem, me agradava
até... Era uma novidade... porque ele me disse que me levava para a vila... Mas
agora esta idéia me mete horror! Por que 6 que mecê mexeu comigo? Sou uma pobre
menina, que não tem mãe desde criancinha... Não há tanta moça nas cidades...
nos povoados?... Por que veio tirar o sono... a vontade de viver a quem era ..
tão alegre... que até hoje não pensou em maldade... e nunca fez dano a ninguém?
—E eu? replicou com energia
Cirino, pensa então que sou feliz?... Olhe bem uma coisa Inocência: Digo‑lhe
isto diante de Deus: ou hei de casar com você... ou dou cabo da vida... Quem
arranjou tudo assim... foi o meu caiporismo... Se eu tivesse passado aqui antes
daquele homem, que odeio, que quisera matar... nada impediria que eu fosse hoje
o ente mais feliz do mundo!... Mais feliz aqui neste sertão, do que o Imperador
nos seus paços lá na corte do Rio de Janeiro! Eu já lhe disse... culpa não
tive...
—Não há nada que nos possa
salvar, atalhou a moça.
—Nada?... Talvez...
Soou nesse momento, e
repentinamente, do lado do laranjal um assobio prolongado, agudíssimo, e uma
pedra, arremessada por mão misteriosa e com muita força, sibilou nos ares e
veio bater na parede com surda pancada, passando rente à cabeça de Cirino.
Deu Inocência abafado grito
de terror e fechou rapidamente a janela, ao passo que o mancebo, esgueirando‑se
com celeridade pela sombra, resoluto correu para o ponto donde presumia ter
partido a pedra.
Não viu ninguém.
Por toda a parte, o ruído
misterioso e peculiar a uma noite calma de verão.
Percorreu em todos os
sentidos o pomar, e só ouviu a bulha dos seus passos.
Afinal, de cansado, deixou o
sitio e cautelosamente se dirigiu para o terreiro da frente.
Quando lá chegou, parou
atônito.
O mesmo assobio, prolongado
e finíssimo, desta feita talvez mais estridente, feriu‑lhe os ouvidos.
XIX—CÁLCULOS E ESPERANÇAS
Apesar, porém, de jovem,
apesar da violência do amor que a prendia a Julião, sabia ela conter 06
movimentos do coração e desconfiar de si mesma.
(Walter Scott, Peveril do Pico)
Lisa. — Contento que tenhas
bastante resolução...Lucinda.— Que queres que eu faça contra autoridade de um
pai?Se ele for inexorável aos meus pedidos?...
(Molière, 0 Amor Medico).
Durante os dias de estada
nas terras de Pereira, as quais não
tinham limites nem vizinhos dali a muitas léguas, aumentou Meyer a sua interessante
coleção com extraordinária variedade de bichinhos e sobretudo borboletas.
Tal era a alegria de que se
possuíra por esse fausto motivo, que a cada momento a manifestava num tom de
franqueza capaz de por si 80 convencer o mais descrente dos homens em questão
de sinceridade.
—Sr. Pereira, dizia o
naturalista, afianço‑lhe que em parte alguma do Brasil estive ainda tão
bem como em sua casa.
—Eu te entendo, maroto,
rosnava o mineiro.
—Deveras!... Só o que sinto
6 que sua filha não nos aparecesse mais... Sinto muito, na verdade...
Sorriu‑se Pereira com
riso amarelo e replicou, apertando os punhos de raiva:
—Mochu sabe. isto são
costumes cá da terra. As mulheres não são feitas para...
— Para quê? perguntou Meyer
com pausa.
— Para prosearem com
qualquer um...
—Que é prosearem?
—É conversar, dar de língua,
explicou Cirino.
— Obrigado, doutor,
retorquiu Meyer, agradecendo mais aquela indicação filológica que foi
imediatamente enriquecer o seu caderno de notas. Prosear e conversar. Muito
bem!. . Pois é pena, Sr. Pereira, porque sua filha é uma bonita senhora!
—Nesta arapuca não caio eu,
seu tratante... Hei de toda a vida andar com olho em ti, murmurava o mineiro.
—E pena, confirmava Meyer
duas e três vezes .. é pena...
Por certo não era esta a
linguagem mais própria para desvanecer as prevenções e receios de Pereira; ao
invés, mais e mais recrescia a sua vigilância sobre Meyer, o que proporcionava
ao verdadeiro culpado a liberdade de que carecia para tornar a ver o mal
guardado tesouro.
Não foi todavia sem custo a nova
conferência.
Ficara a pobre menina tão
impressionada com o final da primeira entrevista, que, por alguns dias, mal
saia do quarto.
Escrever‑lhe Cirino,
era de todo inútil, por isso que ela nunca aprendera a ler; e, depois, qual o
meio de lhe fazer chegar às mãos qualquer papel ou recado?
Sobravam, portanto, razões
para que o jovem se ralasse de impaciência e quase desesperasse da sorte.
Passava as noites em claro,
metido no laranjal e procurando uma solução a tanta dificuldade; atordoavam‑no
ainda aqueles dois assobios que não podia explicar e sobretudo aquela pedrada
tão bem dirigida, que por pouco talvez o houvesse estendido por terra.
Numa dessas noites de
ansiedade, viu afinal reabrir‑se a janela de Inocência
A pobrezinha, abrasada
também de amor, queria respirar o ar da noite e beber na viração do sertão um
pouco de tranqüilidade para sua alma não afeita ao tumultuar dos sentimentos
que a agitavam e, quem sabe? verificar se por ai não andava rondando aquele que
no seio lhe inoculara tamanho desassossego, ímpetos tão desconhecidos e
violentos, superiores a todas as suas tentativas de resistência.
Cirino, rápido como uma
seta, rápido como aquela pedra arrojada tão vigorosamente, achou‑se ao pé
da janela e cobriu de beijos as mãos da sua amada.
—O grito? balbuciou ela.
Dois gritos... e a pedrada... Que foi?
—Ah! não foi nada, respondeu
apressadamente Cirino; foi ver no laranjal... era um macauã O que pareceu
pedrada era um noitibó que frechou para mim e veio dar com a cabeça na parede.
—Deveras? perguntou ela
incrédula.
—Deveras. A principio tomei
também um grande susto. Depois, verifiquei que não passava de miragem. De
noite, a gente em tudo vê maravilhas... Para mim, a única que vi era você,
minha vida, meu anjo do céu...
Com este madrigal encetou
Cirino uma conversação como a da primeira noite, como a que balbuciam duas
cândidas almas na eterna e sempre nova declaração de amor, desde que Adão e Eva
a trocaram. a sombra das maravilhosas árvores do Éden.
Mostrou‑se o moço
receoso da rivalidade de Meyer. Riu‑se ela e gracejou, com espírito e
bondade, da figura do estrangeiro. Com toda a confiança, chegou a idear planos
de risonho futuro:
—Agora, que sei o que é
amar, direi a meu pai que já não quero o Manecão, ..
— E se ele insistir?
— Hei de chorar .. chorar
muito...
— Lágrimas, muitas vezes, de
nada servem.
—Mas tenho cá comigo outro
recurso...
— Qual é ? perguntou Cirino.
— Morrer! . . .
—Não! Há outros... hei de
dizer‑lhe...
Tomou Inocência ar grave e
meio ofendido.
—Escute, Cirino, observou ela,
nestes dias tenho aprendido muita coisa. Andava neste mundo e dele não conhecia
maldade alguma... A paixão que tenho por mecê foi como uma luz que faiscou cá
dentro de mim. Agora começo a enxergar melhor... Ninguém me disse nada; mas
parece que a minha alma acordou para me avisar do que é bom e do que é mau...
Sei que devo de ter medo de mecê porque pode botar‑me a perder... Não
formo juízo como, mas á minha honra e a de toda a minha família estão nas suas
mãos...
Inocência quis interromper
Cirino.
—Deixe‑me falar, deixe
contar‑lhe o que me enche o peito... Depois ficarei sossegada... Sou
filha dos sertões; nunca morei em povoados, nunca li em livros, nem tive quem
me ensinasse coisa alguma... Se eu o magoar, desculpe, será sem querer...
Lembra‑me que, há já um tempão, pararam aqui umas mulheres com uns homens
e eu perguntei a papal por que é que ele não as mandava entrar cá para dentro,
como é de costume com famílias... O pai me respondeu: —Não, Nocência,, são
mulheres perdidas, de vida alegre. Fiquei muito assombrada.—Mas, então, melhor,
se são alegres hão de divertir‑me.—Aquilo 6 gente airada, sem‑vergonha,
secundou ele. —Tive tanto dó delas que mecê não imagina. Depois fui espiar..
caíam tontas no chão... pitavam e cantavam muito alto com modos tão feios, que
me fizeram corar por elas! E são os homens que fazem ficar ansim as
coitadas!... Antes morrer... Parece‑me que Nossa Senhora há de ter pena
dos que amam... mas desampara com certeza os que erram... & não houver
outro remédio, temos que nos lembrar que as almas, quando se acaba tudo neste
mundo, vão, pelos céus cheios de estrelas, passeando como num jardim... Se eu
me finasse e mecê também, punha‑se a minha alma a correr pelos ares,
procurando a de mecê procurando, procurando, e então nós dois juntinhos íamos
viajando ora para aqui, ora para ali, às vezes pelo carreiro de São Tiago, as
vezes baixando a este ermo a ver onde é que botaram os nossos corpos... Não era
tão bom?
Envolvida em sua pureza como
num manto de bronze, entregava‑se Inocência com exaltamento e sem reserva
a força da paixão. E essa natureza pudica e delicada a tal ponto dominava a
Cirino que invencível acanhamento o prendia ante a débil donzela, alheia a
todos os mistérios da existência.
Por isso, ao inflamado mancebo
não acudia a idéia de saltar por aquela janela e menos a de praticar qualquer
ação desrespeitoso. Consumia o tempo em beijos nas mãos da namorada, em
tagarelices de amor, protestos, juras e ilusões de futuro.
—Amanhã, dizia Cirino, hei
de, com cuidado, assuntar a seu pai.. falando no seu casamento... depois... hei
de virar a conversa para mim...
—Papai, observou a menina, é
muito bom, muito mesmo. Mas tenho um medo dele! Tem um gênio meu Deus!...
—Quanto a mim... hei de
falar bem claro e explícito... O que quero, é que você me seja constante.
Mas do sentimento de temor,
que sobressaltava Inocência, também participava Cirino. Por isso, chegado o
dia, não ousava tocar na melindrosa questão, bem que as continuas queixas de
Pereira contra
87
Meyer lhe dessem ensejo mais
ou menos favorável para desembaraçadamente encetá‑la. Com gosto adiava o
momento decisivo e esperava perplexo qualquer incidente, que melhor servisse a
seus planos,
Entretanto, apesar de se
acumularem os dias sem que trouxessem modificações naquele estado de coisas,
doce esperança pairava no fundo do seu coração, consentindo‑lhe planos de
venturoso porvir e feliz desenlace às dúvidas e sofrimentos em que vivia.
XX—NOVAS HISTÓRIAS DE
MEYER
Disse-me Sancho:Cada qual abra
bem o olho e fique alerta, porque o diabo entrou na dança e se lhe deram
ensejo, ver-se-ão maravilhas. Virai‑vos em mel, e as moscas vos
comerão(Cervantes, D. Quixote, Cap. XLIX).
Uma ocasião, de volta do
trabalho diário, atingiu a habitual irritação Pereira contra Meyer grande
intensidade. Entrara cabisbaixo, sorumbático e fez gesto a Cirino de que
precisava falar‑lhe a sós. Dali a pouco, saindo ambos, caminharam
silenciosos pela estrada ate a um regato que ficava a meio quarto de légua da
casa.
—Que terá este homem hoje?
dizia Cirino consigo mesmo. Talvez vá chegando o momento de tratar do assunto.
Voltou‑se de repente
Pereira e, com voz alterada, prorrompeu em exclamações:
—Sabe, doutor, que não posso
mais aturar esse alamão?... Aquilo é um mandingueiro, uma suçuarana, vinda do
inferno para me botar a perder!... Meu irmão... meu irmão, que presente me fez
você! . . .
—Mas, que houve? perguntou
Cirino.
—Olhe... se não fosse aquela
carta, e a palavra que dei ao maldito... mil raios o partam, surucucu do diabo!
potro melado!... já um bom balázio lhe teria varado os miolos.
—Que novidades há então, Sr.
Pereira? tornou a inquirir Cirino.
—Vim mesmo ate aqui para
tirar este peso do coração...
—Mas...
—Sabe o senhor que aquele
Mochu é pior que um tigre preto?... Parece homem à‑toa, um punga, incapaz
de matar uma pulga, não é?... Pois aquilo é uma alma danada... um sedutor...
—Sempre as suas
desconfianças! observou Cirino.
—Desconfianças, não: agora,
certeza. Pois o que quer dizer o homem
todo o dia... estar a lembrar‑se da menina..‑ Procurar trazê‑la
a conversa?—Como está sua filha? pergunta‑me ele sempre. —Esta boa, de
uma vez para todas. E ele, toda a vida a insistir... Isto me põe o sangue a
ferver, mas vou‑lhe respondendo com bom modo... Hoje, saiu‑se o
cujo de seus cuidados e disse‑me como quem toma leite com farinha de
milho: —Sua filha vai casar?—Vai, respondi‑lhe todo trombudo. — Com quem?
Tive vontade de lhe dizer: Não é da tua conta, seu bisbilhoteiro, seu biltre, e
atacar‑lhe uma cabeçada, mas, como é meu hóspede, secundei‑lhe
enfarruscado: com um homem do sertão que há de amolar a faca na pele da barriga
do mariola que vier mexer com a mulher dele. O alamão não se deu por achado e,
com todo o sem‑vergonhismo, me retrucou: Pois o senhor faz mal. A sua
filha é muito mimosa e deveria casar com alguém da cidade.—Então, perdi a
paciência: Mochu, lhe disse, cada um manda em sua casa como entende: eu na
minha, não quero ser anarquizado; ele, quando me viu fulo de raiva, pediu‑me
mil desculpas, contou‑me muitas histórias, isto, aquilo, aquilo outro, et
coetera e tal, que era para bem de minha filha e não sei mais o que, numa
língua que pouco entendi...
— Não fez bem, atalhou
Cirino.
—Boa dúvida! Aquilo é uma
alma danada... boa para as caldeiras de Pedro Botelho, um judeu... enfim, um
caçador de anicetos: está dito tudo! . . . Mas ainda não lhe contei o mais. . .
Parece que hoje estava mesmo com o diabo no corpo... Meteu‑se no mato
perto da minha roca, onde eu trabalhava com os meus cativos, e lá fazia um
barulhão a quebrar galhos e romper o cipoal como se fosse anta; de repente ouvi
uma gritaria muito grande; era o tal Meyer com o camarada José Pinho a berrar
como dois minhocões. Corri a ver o que era e os achei muito contentes a olhar
para uma barboleta grande já fincada num pau de pita. 0 alamão pôs‑se a
pular como um cabrito.
—É novo, me disse ele, é
novo! —Novo o que, Mochu?—Este bicho, ninguém o descobriu antes de mim! É coisa
minha... Entendeu? E vou botar‑lhe o nome de sua filha!...
Quando ouvi aquilo, fiquei
tão passado, que não pude engolir o cuspo da boca... Vejam só... o nome de
Nocência numa bicharada!. Até parece mangação... Agora, quero saber do doutor o
que devo fazer... Venho pelo menos desabafar... Não posso meter uma bala
naquele patife como bem merecia... mas também e demais tê‑lo em casa... é
demais! Peço‑lhe um conselho... Felizmente, sempre o trago arredado de
casa, e a menina de nada desconfia; do contrário como mulher que é, havéra de
me dar que fazer... Também não sei por que é que o Manecão não chega... só ele
é quem havia de me livrar destes apuros... Uma vez que o tal alamão visse a
rapariga com o noivo, deixava‑a sossegada... Não acha? Olhe, palavra de
honra, isto ansim não é viver! Fui feito para dizer o que penso, tratar bem a
todos. .. mas estes modos que tenho agora, só Deus sabe quanto me custam... Até
o meu serviço vai sofrendo, porque muitas vezes largo a roga e ponho‑me a
correr atrás dos bichinhos, só para não deixar de olho o tal marreco, em lugar
de feitorar o trabalho dos negros... O meu fazendeiro é um diabo ruim e já
velho... Ah! meu irmão, que carga você me pôs em cima das costas! Eu então, que
não nasci para esconder o que sinto cá dentro!...
E Pereira, de tão atribulado
que trazia o espírito deixou‑se cair num cômoro de terra.
Cirino, defronte dele,
ficara de pé e pensativo.
Afinal, depois de breve
dúvida, decidiu tentar fortuna e encetar a grave questão que lhe importava a
felicidade.
—Sr. Pereira, disse bastante
comovido, acho que o alemão faz mal em andar batendo língua em pessoa da sua família
e dou razão às suas inquietações...
—Ah! vosmecê é homem de
confiança.
—Mas, continuou o moço a
custo e parando em cada palavra, penso que num ponto tem ele alguma razão... É
quando... lhe deu... conselho... que o senhor não casasse sua filha... assim...
sem perguntar a ela... se... enfim não sei... mas talvez o Manecão lhe não
agrade...
Ergueu‑se Pereira de um
pulo e, aproximando a face, repentinamente incendida de cólera, junto ao rosto
de Cirino:
—O quê? exclamou com voz de trovão,
eu... consultar minha filha? Pedir‑lhe licença... para casá‑la?...
O senhor está doido?... Ou
está mangando comigo... Ai... que também...
E vago lampejo de
desconfiança lhe iluminou a chamejante pupila.
Compreendeu logo Cirino a
perigosa situação e, sem demora, tratou de desfazer a má impressão que
produzira.
—Ah! disse com fingido riso,
é verdade... Isto são costumes da cidade... aqui, no sertão, há outros modos de
pensar... Desculpe‑me, Sr. Pereira, este Meyer é que está a contundir‑me
todas as idéias. Pois eu julgo... já que pede a minha opinião, que o senhor
deve continuar a ter olho no estrangeiro... e eu hei de ajudá‑lo, quanto
estiver nas minhas forças.
—Também agora, disse o
mineiro depois de ligeira pausa, não há de ser por muito tempo... Há mais de um
mês que ele aqui pára e já me... contou que breve segue viagem para
Camapuã....Desenganou‑se afinal... O tal meco não chegará ate lá... mas é
o mesmo. Um destes dias, leva por ai algum tiro para lhe botar juízo na
cachola, ou alguma facada que lhe ponha as tripas a mostra... Nem sempre há de
ter cartas de irmão para sair‑se bem da rascada... O diabo o leve para
longe!... Voltemos, Sr. Cirino... Já demais temos deixado o bicharoco sozinho,
E encaminhou‑se para a
vivenda, acompanhado de Cirino. Ia este desalentado; na realidade, bem rentes
lhe ficavam cortadas as esperanças que o haviam animado na tentativa de
oposição ao projetado casamento da amada com o terrível e fatal Manecão.
Ainda a meio do caminho,
voltou‑se Pereira e disse‑lhe peremptoriamente:
—Deveras, Sr. Cirino, aquelas
suas palavras me buliram com o sangue todo... Ainda o sinto galopar nas
veias... Que idéias estúrdias!... Que lembrança! Ah... a tal vida das
cidades... cruzes!
XXI—PAPILIO INNOCENTIA
Considerai a arte da
composição das asas da borboleta: a regularidade da escamas, cobrindo‑as
como se fosse penas; a variedade das cambiantes cores: a tromba enrolada, com
que suga o alimento no seio das flores : as antenas, órgãos delicados do tato,
que lhe coroam a cabeça, cercada de uma rede admirável de mais de mil e duzentos
olhos...
(Bernadin de Saint-Pierre. de
Saint‑Pierre, Harmonias d. Natureza).
Meyer, que estava sentado na
soleira da porta com as compridas pernas encolhidas, ergueu‑se
precipitadamente ao avistar Cirino e correu ao seu encontro.
Trazia o coração no rosto,
um coração cheio de alegria e triunfo.
—Oh! Sr. doutor, exclamou.
todo risonho, venha, venha ver uma preciosidade. .. uma descoberta. .. espécie nova.
:. não há em parte alguma... Ouviu? Coisa assim vale um tesouro... E fui eu que
o descobri!... Nem sequer Juque me ajudou... pois estava deitado e dormindo...
Não é verdade, Sr. Pereira?
—Veja, murmurava o mineiro,
que barulhada faz ele com o tal aniceto... Ao menos, se fosse um animal grande!
—E uma espécie... nova...
completamente nova! Mas já tem nome... Batizei‑a logo... Vou‑lhe
mostrar... Espere um instante...
E, entrando na sara, voltou
sem demora com uma caixinha quadrada de folha‑de‑flandres, que
trazia com toda a reverencia e cujo tampo abriu cuidadosamente.
Da própria garganta saiu um
grito de admiração, que Cirino acompanhou, embora com menos entusiasmo.
Pregada em larga tábua de
pita, via‑se formosa e grande borboleta, com asas meio abertas, como que
disposta a tomar vôo.
Eram essas asas de
maravilhoso colorido; as superiores, do branco mais puro e luzidio; as de
baixo, de um azul metálico de brilho vivíssimo.
Dir‑se‑ia a
combinação aprimorada dos dois mais belos lepidópteros das matas virgens do Rio
de Janeiro, Laertes e Adônis, estes, azuis como cerúleo cantinho do céu,
aqueles, alvinitentes como pétalas de magnólia recém‑desabrochada.
Era sem contestação
lindíssimo espécime, verdadeiro capricho da esplêndida natureza daqueles
paramos. Também Meyer não tinha mão em si de contente.
—Este inseto, prelecionou
ele como se o ouvissem dois profissionais na matéria, pertence à falange das
Helicônicas. Denominei‑a logo, Papilio Innocentia, em honra à filha do
Sr. Pereira, de quem tenho recebido tão bom tratamento. Tributo todo o respeito
ao grande sábio Linneu —e Meyer levou a mão ao chápeu—mas mas a sua classificação já está um pouco
velha. A classe e, pois, Diurna; a falange, Helicônia; o gênero Papilio e a
espécie, Innocentia, espécie minha e cuja glória ninguém mais me pode tirar...
Daqui vou, hoje mesmo, oficiar ao secretário perpétuo da Sociedade Entomológica
de Magdeburgo, participando‑lhe fato tão importante para mim e para a
sábia Germânia.
Dizia Meyer tudo isto com
legítima ufania e lentidão dogmática.
Depois, com mais
volubilidade, e apesar de tropeçar amiudadas vezes em palavras, o que, para
comodidade dos leitores, temos quase sempre deixado de indicar, continuou:
—Reparem, meus senhores,
neste lepidóptero com os olhos cuidadosos da ciência. Tem quatro pés
caminhantes: as antenas de terminação comprida e oval, cavada em forma de
colher; os palpares maiores do que a cabeça e escamosos; tromba toda branca e
lábio quase nulo. Não perdi nem sequer um pouco do seu pó, porque o pó, um só
grão de pó, vale tanto como uma pena de pássaro, e a comparação é perfeita,
visto como cada uma destas escamas, à semelhança das penas, é atravessada por
uma traquéia, por onde circula o ar. Oh! que achado! prosseguiu ele. Que
triunfo para mim! A Sociedade
Entomológica de Magdeburgo há de ficar muito orgulhosa... Sem dúvida alguma
farão uma sessão solene, extraordinária. Mein Gott!... Estou que não posso de
alegria... Também, daqui a três ou quatro dias, vou‑me embora desta
casa... ainda que cheio de saudades. . .
Deveras? atalhou Pereira, vai
partir?
—Sim, senhor. O meu
itinerário é para Camapuã; depois. vou a Miranda e talvez Niac... Hei de subir
até ao Coxim e ai, ou embarco para Cuiabá no Rio Taquari, ou sigo por terra
pelo Pequiri.
—E o senhor volta para sua pátria?
—Boa dúvida!... Daqui a ano e
meio, pretendo apresentar a minha coleção toda arranjada à Sociedade
Entomológica...
—Homem, observou Pereira com
intenção que seu hóspede não podia nem de leve perceber, eu quisera já estar
nesse dia. Daqui a ano e meio, que voltas terá dado o mundo?...
—Terá percorrido, respondeu
Meyer gravemente, dezoito signos do Zodíaco
—Pois bem, eu queria ver
isso... Já me tarda esse dia.
—Quando ele chegar, continuou
o alemão com sinceridade e um tanto comovido, hei de lembrar‑me com
gratidão do tratamento que recebi... nos sertões do Império... e hei de
dizer... bem alto... que os brasileiros:.. são felizes porque são morigerados e
têm muito boa Índole hospitaleiros como ninguém.
—Acrescente, interrompeu
Pereira com algum azedume, que zelam com todo o cuidado a honra de suas
famílias.
Obedeceu docilmente Meyer e
repetiu palavra por palavra.
—E zelam com todo o cuidado a
honra de suas famílias.
—Multo bem, replicou o
mineiro, diga isso, e o Sr. terá dito uma verdade.
XXII — MEYER PARTE
Adeus, pois amigos bela companhia! Aos lares distantes cada qual
de nós, por caminhos diversos. deve um dia chegar.
(Catulo, Epigrama XLVI)
Não haviam descontinuado as
visitas feitas a Cirino por enfermos de
muitas léguas em torno. Tão freqüentes e teimosos eram os casos de sezões ou
maleitas que a porção de sulfato de quinina que trouxera em suas canastras
estava toda esgotada, pelo que se vira levado a substituir esse medicamento sem
tanta confiança, porém, por plantas verdes do campo ou ervas secas, fornecidas
por uns bolivianos que encontrara em Minas, vindos de Santa Cruz de ia Sierra
em peregrinarão pelo interior do Brasil e a tratarem de doentes, sem Chernoviz
em punho, nem aqueles resquícios de conhecimentos terapêuticos que ostentava o nosso
doutor.
Entre os enfermos que o
vinham diariamente procurar, alguns acusavam moléstias cujas qualificações eram
complicadas e estrambóticas; assim declaravam‑se salteados de engasgue,
espinhela caída, mal de encalhe, tosse de cachorro, feridas brabas,
almorreimas, eripelas, até assombração e mau‑olhado.
Quem se queixava de engasgues
era o capataz de uma fazenda minada do Vau, distante umas boas cinqüenta
léguas.
—Sr. doutor, disse c enfermo,
a minha vida é um continuo lidar de sofrimentos. Estou com este mal vai fazer
cinco anos no São João por sinal que me veio com uma grande dor na boca do
estómbago. Vezes há que não posso engolir nada, sem beber muitos galos de água,
de maneira que me encharco todo e fico que mal me mexo de um lugar para outro.
—E a dor, perguntou Cirino,
ainda a sente?
— Toda a vida, respondeu o
capataz... O que me aflege mais é que há comidas então que não me passam a
goela... É um fastio dos meus pecados... Boto uns pedacinhos no bucho e parece‑me
que dentro tenho um bolo que me está a subir e descer pela garganta...
Receitou o médico umas doses
de erva‑de‑marinheiro como emético, e fez mais algumas prescrições
que o enfermo ouviu com toda a religiosidade.
No estado de perturbação
moral em que se achava o jovem facultativo, natural e que fosse uma coisa por
outra; mais importante porém, era a fé que suas indicações incutiam a fé, essa
alavanca poderosa da medicina, esse contingente precioso que o espírito
ministra aos ingentes esforços da natureza na sua constante lota contra os
princípios mórbidos.
O doente de espinhela caída
acusava um peso muito forte e perene no peito e a impossibilidade de levantar
as mãos juntas a mesma altura.
Prescreveu‑lhe Cirino
amargo do campo, genciana e quina, e ordenou‑lhe certas cautelas firmadas
na voz geral, mas com. algum fundo de razão; verbi c rata. engolir sempre a
saliva e sobretudo deixar de fumar
depois de comer.
O infeliz moço, ao passo que
tratava de curar os outros, mais que ninguém precisava de quem nele cuidasse,
pelo menos da alma.
Via não só Meyer fazendo os
seus preparativos de partida, e em véspera de deixá‑lo a sós com Pereira,
podendo este descobrir afinal o engano em que havia laborado, como também a
clínica quase esgotada, aconselhando‑lhe a conveniência de transportar‑se
para outro ponto e continuar a interrompida jornada.
Tudo isto, e o amor a
aumentar, a tirar‑lhe todo o sossego, a consumi‑lo a fogo lento...
Meyer, na realidade, desde o
achado da sua magnífica borboleta. não pensava senão em partir
—Oh! dizia ele, eu quisera
estar já em Magdeburgo... Quantas léguas, Mein Gott!... Papilio Innocentia... a
minha glória! Que diz, Sr. Cirino?...
—E verdade... mas quem sabe
se o senhor não deveria ficar mais tempo aqui?... Talvez achasse outra borboleta
nova...
—Não, é impossível... Era
felicidade demais... Além disso, o dinheiro não me havia de chegar.
—Oh! posso emprestar‑lhe....
—Muito obrigado... mas é de
todo Impossível a minha estada aqui... Veja o senhor: tenho ainda que ir a
Camapuã, a Miranda, a Cuiabá para então voltar... E só me restam poucos
meses... A Sociedade Entomológica de Magdeburgo conta comigo na primavera do
ano que vem...
Metida uma vez essa idéia na
cabeça, Meyer não deixou mais de falar na sua viagem um só instante e, para que
a execução correspondesse ao prometido, mandou na tarde seguinte, José Pinho, o
camarada, alçar cargas às costas do burro, depois de as ter, ele próprio,
arranjado e revistado com toda a cautela.
Julgou o carioca nesse
momento dever lavrar um protesto:
—Mochu, disse ele, vai
recomeçar com o seu modo de andar por essas estradas à noite.. Afinal havemos
todos de cair nalguma buraqueira, eu, o senhor, o barro de carga e os bichos; e
não chegaremos, nem eu ao Rio de Janeiro, nem eles e o senhor à sua terra. Enfim,
já estou cansado de o avisar.
No momento da partida,
apresentava o naturalista aquele mesmo aspecto da célebre noite da chegada;
eram aquelas mesmas frasqueiras a tiracolo, aquele mesmo ar tranqüilo e
bonachão com que viera, fora de horas, pedir pousada a casa de Pereira.
Este, ao ver o hóspede a
cavalo e prestes a deixar para sempre a sua morada, sentiu‑se possuído de
alegria, mesclada, sem saber por que, com surpresa repentina e intima, de tal ou
qual comoção. No fundo, achou de si para si as desconfianças mal empregadas, e
deixou‑se levar pela simpatia que em todos incutia o caráter naturalmente
inofensivo e meigo do saxônio.
—Chegou, declarou Meyer, a
hora da minha despedida.
E, sacudindo com força a mão
e o braço do mineiro:
—Sr. Pereira, meu amigo,
adeus!... nunca mais nos havemos de ver... mas hei de lembrar‑me do
senhor toda a vida... Quando eu estiver na minha pátria, daqui a miihares e
milhares de léguas... pelo pensamento recordarei os dias felizes... que aqui
passei.
—Oh! Sr. Meyer, balbuciou
Pereira.
—Sim, felizes, continuou
Meyer com muita lentidão, felizes porque correram... sem eu perceber que o
tempo estava caminhando... De todo o Brasil fica em mim a lembrança... mas
desta sua casa... essa lembrança é mais viva e mais forte.
Acompanhara o alemão o seu pensamento com acentuado gesto,
acenando com o punho fechado para mostrar a lealdade daquelas impressões.
Voltando‑se para
Cirino, acrescentou:
—Sr. doutor, as suas receitas
estão todas marcadas no meu caderno... O senhor pode enganar‑se às
vezes... mas as suas intenções são sempre boas... e isso basta para desculpá‑lo...
Eu...
Interrompendo o que ia
dizendo, ficou instantes a olhar para Cirino e Pereira, que estavam igualmente
silenciosos, e uma lágrima comprida deslizou‑se‑lhe pela face, sem
que a fisionomia mostrasse a menor alteração.
—Adeus! concluiu ele de
repente.
—Boa viagem, Sr. Meyer, boa
viagem, disse Pereira ajudando‑o a montar a cavalo.
—Adeus! adeus... repetiu
ele...
E interpelando o camarada:
—Juque, vá na frente!...
Toque pouco no burrinho... Nosso pouso é daqui a meia légua...
Deu Meyer então de rédeas e
caminhou a passo, logo após de José Pinho, este munido de cabeçudo cacete,
evidentemente hostil as costas do cargueiro entregue aos seus cuidados.
—Lá vai o homem, exclamou
Pereira ao ver a tropinha pelas costas. E um alivio... Ele, coitado, não era
mau... mas não tinha modos... Safa, hei de me lembrar para sempre do tal Sr.
Meyer! Foi uma campanha.. Ué... Olhe, Sr. Cirino... não está ele de volta?...
Teria esquecido alguma bugigangas
Com efeito reaparecia a
trote o alemão em carne e osso, como quem vinha procurar ou dizer coisa de
importância.
—Então que tem? perguntou
Pereira adiantando‑se e alçando a voz. Deixou algum trem? Daqui a pouco é
escurão.
Meyer, no entanto, ia
chegando e de certa distancia entrou a explicar a rasão da volta:
—Não deixei coisa alguma,
Sr. Pereira. Tão‑somente faltei a um dever.
—Qual é? indagou o mineiro.
—Não me despedi de sua
filha...
—Ah! replicou Pereira com
vivacidade... não era preciso... tanto mais que ela... está dormindo... meio
adoentado... Há pouco tinha muito peso na cabeça... Eu lhe hei de dizer... Não
se incomode . . .
—Pois então, observou Meyer
com muita gravidade, diga‑lhe que tem em mim um criado, em toda a parte
onde esteja... O seu nome ficou para sempre na ciência e a estima em que a
tenho é grande... E uma moça muito bela... digna de ser vista na Europa...
—Pois não, pois não,
interrompeu Pereira, vá sem susto...
—Sim, eu me vou, adeus!
—Vá indo... olhe que o Sol
dobra de repente aquele mato e a noite cai logo...
—Sim, sim, adeus, disse ele
despedindo‑se de uma vez.
E na estrada areenta, à luz
do astro que descambava, foi‑se tornando comprida a mais e mais a sombra
do bom Meyer, à medida que ele marchava atrás do seu camarada, do cargueiro e
da coleção entomológica.
XXIII — A ÚLTIMA
ENTREVISTA
Está a máscara da noite sobre meu rosto: a não ser ela, verias as minhas faces tintas
do rubor virginal.
(Shakespeare, Romeu e
Julieta, Ato 11).
Mais cresce a luz, mais
aumentam as trevas das nossas
desgraças.
(Idem. Ato IV).
Grave modificação trouxe a
retirada de Meyer no sistema de viver daquela vivenda, onde se agitava um dos
problemas mais comezinhos da natureza moral, mas que ali apresentava cores
algum tanto carregadas, senão já sombrias.
Fora Pereira dormir no
interior da casa, passando ali a maior parte do tempo. Assim os encontros dos
dois apaixonados tornaram‑se de todo impossíveis, e, não tendo mais a
atenção do mineiro o alvo que sempre colimara durante a estada do alemão,
começava como era de prever, a voltar‑se para Cirino, a quem confessou
ter tratado Meyer com injusta prevenção.
— Hoje, dizia o mineiro, dói‑me
a consciência do modo por que desconfiei daquele homem... Quem sabe se tudo que
eu parafusei não foi abusão cá da cachola? Sr. Cirino, quando a gente entra a
dar volta ao miolo.. é que vê que todos têm queda para malucos... Sim
senhor!... Hoje estou convencido que o tal alamão era bom e sincero... Olhou
para a menina... achou‑a bonitinha... e disse aquele despotismo de
asneiras sem ver a mal... Em pessoa que não guarda o que pensa, é que os outros
se podem fiar... Às vezes o perigo vem donde nunca se esperou... Enfim não me
arrependo muito de ter feito o que fiz... Receei e tomei tento...
Amiudando‑se estes e
outros dizeres iguais, deram que refletir a Cirino. De uma hora para outra
compreendeu que as vistas inquisitoriais poderiam tornar a sua posição
insustentável.
Por enquanto tratou de
encontrar‑se com Inocência. Grandes eram as dificuldades; o meio único,
tentar novamente as entrevistas noturnas; pelo que do laranjal não arredava pé,
noites e noites inteiras, ficando ali com os olhos presos à janela da querida
do coração.
Certa madrugada, viu afinal
a sombra de Inocência.
Achou‑se, num ápice, o
mancebo junto dela e agarrou‑lhe com violência nas mãos.
—Enfim, exclamou ele, eu a
vejo.
—Meu pai, murmurou a moça
com voz tão fraca que mal se ouvia, pode acordar...
— Não importa, replicou
Cirino desabrido, descubra‑se tudo... não posso mais viver assim,..
—Xi! observou ela, cuidado!
Se ele nos acha aqui, mata‑nos logo... Olhe, vá‑me esperar junto ao
corguinho para lá do laranjal... daqui a nada vou ter com mecê... A porta esta
só encostada . . .
O moço fez sinal que
obedecia e sumiu‑se incontinenti na escuridão do pomar.
Aquela hora dava a Lua de
minguante alguma claridade à terra; entretanto, como que se pressentia outra
luz a preparar‑se no céu para irradiar com súbito esplendor e infundir
animação e alegria à natureza adormecida. Nos galhos das laranjeiras, ouvia‑se
o pipilar de pássaros prestes a despertar, um gorjeio intimo e aveludado de ave
que cochila; e ao longe um sabia mais madrugador desfiava melodias que o
silêncio harmoniosamente repercutia. Riscava‑se o oriente de dúbias
linhas vermelhas, prenúncio mal percebível da manhã; nos espaços pestanejavam
as estrelas com brilho bastante amortecido, ao passo que fina e amarelada névoa
empalecia o tênue segmento iluminado do argênteo astro.
Não era mais noite; mas
ainda não era sequer a aurora.
Tão comovido se sentia
Cirino, que teve de sentar‑se, enquanto esperava por Inocência.
Esta não tardou: vinha
vestida de uma sala de algodão grosseiro e, à cabeça, trazia uma grande manta
da mesma fazenda, cujas dobras as suas mãos prendiam junto ao corpo. Estava
descalça, e a firmeza com que pisava o chão coberto de seixinhos e gravetos,
mostrava que o hábito lhe havia endurecido a planta dos pés, sem lhes alterar,
contudo, a primitiva elegância e pequenez.
Parecia muito assustada, e,
mau grado seu, dos olhos lhe rolavam lágrimas a fio.
O mancebo, apenas a avistou,
correu‑lhe ao encontro.
—Inocência, exclamou ele
notando um gesto de dúvida, nada receie de mim... Hei de respeitá‑la,
como se fora uma santa... Não confia então em mim?...
—Sim! disse ela
apressadamente. Por isso é que vim até cá... Entretanto, estou com a cara
ardendo... de vergonha...
E levando uma das mãos de
Cirino às suas faces:
—Veja, Cirino, como tenho o
rosto em brasa...
Por que é que mecê veio
bulir comigo? Eu era uma moça sossegada... agora, se mecê não gostasse mais de
mim... eu morria...
— Deveras?
—Eu lhe juro... t: mais fácil
apagarem‑se de repente estas estrelas todas, do que eu deixar de amá‑la...
—E Manecão? perguntou ela com
terror.
—Oh! esse homem, sempre esse
nome maldito!...
—Há de ser meu marido...
—Isso nunca, Inocência... É
impossível!... E se fugíssemos?... Olhe, amanhã a estas mesmas horas ou mais
cedo, trago para aqui dois bons animais... Você monta num, eu noutro... batemos
para Sant'Ana e, a galope sempre, havemos de chegar a Uberaba... onde acharemos
um padre que nos case... Vamos, ouviu?
—E mecê havia de me estimar
toda a vida?
—Sempre... Diga, sim... diga
pelo amor de Deus, e estamos salvos. . . diga! . . .
— E meu pai, Cirino? Que
havéra de ser? .. Atirava‑me a maldição... eu ficava perdida... uma
mulher de má vida... sem a bênção de meu pai... Não... mecê está me tentanto...
Não quero fugir... Antes a desgraça para toda a existência... mas fique eu
sendo o que meu nome diz que sou... Já muito peco, fazendo o que faço.. Mecê é
moço da cidade; não lhe custa enganar uma criatura como eu... Até...
—Pois bem, interrompeu
Cirino, você não quer?... não falemos mais nisso .. Não hei de querer, senso
aquilo que achar bom... E se eu, por fim, me decidir a falar a seu pai?
—Deus nos livre! retorquiu
ela aterrada. Pensei a principio que pudera ser, mas depois vi que era pior... Mecê
não conhece o que é palavra de mineiro... ferro quebra, ela não... Manecão? há
de ser genro dele...
—Quem sabe, Inocência? Hei de
falar tanto... pedir com tanta humildade.
—Ché, que esperança!... de
nada serviria...
—Então, que fazer? bradou o
moço. A que Santa agarrar‑nos? Por que é que o céu nos quer tanto mal?
E ocultando a cabeça entre as
mãos, desatou a chorar ruidosamente. Inocência, por seu lado, encostou a fronte
ao ombro do amante, e ambos, unidos, choraram como duas crianças que eram.
Foi ela quem primeiro rompeu
o silêncio
—Ah! meu Deus, se o padrinho
quisesse!...
— Seu padrinho? perguntou
Cirino. Quem é?... quem é ele?
—Um homem que mora para lá
das Parnaíbas, já nos terrenos Gerais.
—Onde?... É longe?...
—Meio longe, meio perto. ..
Mecê não conhece o Pauda ?
—Conheço... A 16 léguas do
Rio Paranaíba...
—Pois é aí que padrinho
pára... A esquerda da fazenda do Pauda, numas terras de sesmaria...
—E como se chama ele?
—Antônio Cesário... Papai lhe
deve favores de dinheiro e faz tudo quanto ele manda... Se dissesse uma
palavra, Manecão? havéra de ficar atrapalhado...
—Oh! exclamou Cirino com
confiança, estamos salvos então!,.. Amanhã mesmo, monto a cavalo e toco para
lá... Daqui à vila são sete léguas... Até lá, umas dezessete... f: um
passeio... Chego... conto‑lhe tudo... ponho‑me de rastos aos seus
pés... e...
—Mas, interrompeu Inocência,
não lhe fale em mim, ouviu? Não lhe diga que tratou comigo... que comigo
mapiou... Estava tudo perdido... Invente umas histórias... faça‑se de
rico... nem de leve deixe assuntar que foi por meu juízo que mecê bateu à porta
dele... Hi! com gente desconfiada, 6 preciso saber negacear ..
—Oh! meu Deus, disse Cirino
no auge da alegria, estamos salvos!... Não há dúvida... Vejo agora como há de
tudo acontecer... Depois de um dia ou dois de parada na casa, desembucho o
negócio. O velho escreve uma carta a seu pai e, pelo menos, se não se arredar
logo o Manecão? .. ganha‑se tempo... Eu já quisera estar montado na minha
besta tordilha queimada, a bater a estrada por ai afora... Dois dias para ir,
dois para voltar, dois ou três de pousada... Com pouco mais de uma semana,
estou de volta, trazendo ou a felicidade ou a caipora de uma vez. Não! Tenho fé
em Nossa Senhora da Abadia... Ela nos ajudará... e juntos havemos ainda de cumprir
a promessa que já fiz...
—Que permessa foi? perguntou
Inocência com curiosidade.
—Irmos nós daqui até a vila a
pé, botar duas velas bentas no altar de Nossa Senhora.
—Sim, confirmou a moça com
fogo, eu juro... Fosse até ao fim do mundo! . . .
—Oh! minha santa do Paraíso,
exclamou o moço apertando‑a de encontro ao peito, quanto você me ama!!
E assim abraçados, quedaram
eles inconscientes, enquanto a aurora vinha clareando o firmamento e desferindo
para a terra raios indecisos como que a sondarem a profundidade das trevas;
enquanto os pássaros chilreavam à surdina, preparando as gargantas para o
matutino concerto, enquanto o orvalho subia da terra ao céu molhando o dorso
das folhas das grandes árvores e suspendendo, às das rasteiras plantinhas,
gotas que cintilavam já como diamantes.
Ao longe, à beira de algum
rio, as aracuãs levantavam a sonora grita, e o macauã atirava aos ares os pios
prolongados da áspera garganta.
—É dia, observou Inocência
desprendendo‑se dos braços de Cirino.
—Já! exclamou este amuado.
—Meu Deus, e eu que tenho de
ir até a casa... vou‑me embora...
—Então, partirei hoje mesmo,
disse o moço.
—Sim...
—E na semana que vem, estou
de volta...
—Pois bem... Leve com mecê
esta certeza; a minha vida ou a minha morte depende do padrinho...
—A minha também, replicou o
mancebo beijando com fervor as mãos de Inocência...
—Deixe‑me... deixe‑me,
implorou ela. Adeus, estou com um medo!... Felizmente ninguém me viu...
Nesse momento e, como que
para responder à asseveração, de dentro do pomar partiu aquele fino assobio que
tanto assombrara os amantes na primeira das suas entrevistas.
Inocência quase caiu por
terra.
—Meu Deus! balbuciou ela, que
agouro!... Quem sabe se não 6 gente?
Ao assobio seguiu‑se
uma espécie de gargalhada, que gelou o sangue nas veias dos dois míseros.
Agarrou‑se a menina a
Cirino.
—É alma do outro mundo,
murmurou ela persignando‑se.
Não perdera o mancebo o
sangue frio. Invocando a São Miguel, fez o sinal‑da‑cruz na direção
dos quatro pontos cardeais; depois suspendeu a moça em seus braços e,
transpondo a toda a pressa o pomar, foi depô‑la junto à porta da casa,
porta que estava entreaberta, naturalmente pelo vento.
Quase desmaiara Inocência
entretanto, reunindo as forças pôde entrar, e cautelosa correu o ferrolho
interior.
Mais sossegado a esse
respeito, voltou Cirino ao laranjal e, como da primeira vez, pôs‑se a
percorrê‑lo em todos os sentidos, indagando, à nascente claridade do dia,
se era ente humano ou fantasma quem dele parecia fazer joguete.
No momento em que passava por
junto de uma laranjeira mais copada, viu de repente certa massa informe cair‑lhe
quase na cabeça e no meio de folhas e ramos quebrados vir ao chão com surdo
grito de angústia.
—Cruz! T'esconjuro! bradou o
moço.
E, como uma visão, passou‑lhe
por perto uma criaturinha, desaparecendo logo entre os troncos das árvores.
Ali esteve Cirino com os
cabelos eriçados, os olhos fixos, os braços hirtos de terror, os lábios secos a
tartamudear um exorcismo, e as pernas a tremer.
Uma voz, a certa distancia,
arrancou‑o desse espasmo.
Era Pereira; com a mão
encostada a boca, interpelava a um dos seus escravos.
—Faz fogo, José!... Se for
alma do outro mundo ou lobisomem, a bala não pega... Se for gente, melhor.
E um tiro troou.
Sibilou uma bala aos ouvidos
de Cirino, indo cravar‑se numa árvore próxima.
Por outra, não esperou ele.
Com o favor da escuridão que ainda reinava, deslizou rápido e foi buscar a
frente da casa, quando já iam acordando os camaradas.
Mal chegara a sala, apareceu‑lhe
Pereira à porta.
—Que foi isso? perguntou
Cirino compondo a fisionomia.
—Lá sei, respondeu o mineiro.
Uma matinada de gritos no laranjal, que parecia um inferno... A pequena ficou
toda que parecia querer morrer de medo. Desconfio que a alma do Coletor andou
hoje me rondando a casa... Não seja presságio de mal... A Senhora Sant'Ana nos
proteja.
—Pois eu cá dormi como um
chumbo, disse Cirino; acordei com um tiro...
—Não há de poder enfiar
outra soneca daqui a um nadinha, está o sol batendo no terreiro.
Com efeito, depressa
caminhava o alvorecer, e debaixo daquelas vivas impressões acordaram aqueles
que haviam conciliado o sono, na morada de Pereira.
XXIV—A VILA DE SANT'ANA
Debaixo do céu há uma coisa
que nunca se viu: é uma cidade pequena sem falatórios, mentiras e bisbilhotices.
(Lavergne).
Nesse mesmo dia, montou
Cirino a cavalo e despediu‑se de Pereira por uma semana ou pouco mais,
dando por motivo de tão inesperada viagem, não só a necessidade de visitar alguns
doentes mais afastados, senão também procurar, quer na vila, quer mesmo nos
campos da província de Minas Gerais, uns remédios e símplices que lhe iam
faltando.
—Daqui a um terno de dias
estarei de volta, disse ao partir.
Desde a casa de Pereira até ao
Albino Lata é tão ensombrada e agradável a estrada, que essas três léguas lhe
foram muito fáceis de vencer.
Ali, porém, começam campos
dobrados e soalheiros que, num estirão de quatro léguas, até a Vila de Sant'Ana
tornam penosa a viagem, sobretudo quando são percorridos sob os ardentes raios
do sol do meio‑dia.
Exaltam‑se e irritam‑se
os incômodos do espíritos, no momento em que o físico começa a sofrer.
Quando Cirino passou por
aquelas campinas desabrigadas, abrasado de calor, desanimou completamente do
êxito da empresa a que se atirara. Tanta esperança o alvoroçara quando ia
seguindo a vereda encoberta e amena, quanto desalento sentia agora; e,
descoroçoado, deixava que o animal o fosse levando a passo vagaroso e como que
identificado com a disposição de animo do cavaleiro.
—Que vou eu fazer? pensava
quase alto... Como encetar aquela conversa?
Tamanha era a duvida que o
salteava que chegou quase a blasfemar contra a amada do seu coração.
—Maldita a hora em que vi
aquela mulher... Seguia eu sossegado o meu rumo... botaram‑me a perder os
seus olhos!... Depois, exclamou contrito:
—Perdão, Inocência! perdão,
meu anjo! Estou a amaldiçoar a hora da minha felicidade... Eu, que sou homem,
posso fugir... deixar‑te... mas tu, amarrada à casa... Infeliz, fui o culpado!...
E, engolfado em dolorosa
cogitação, alcançou a Vila de Sant'Ana do Paranaíba.
De longe é sumamente
pitoresco o primeiro aspecto da povoação.
Ponto terminal do sertão de
Mato Grosso, assenta no abaulado dorso de um outeirozinho. O que lhe dá, porém,
encanto particular para quem a vê de fora, é o extenso laranjal, coroado
anualmente de milhares de áureos pomos, em cuja folhagem verde‑escura se
encravam as casas e ressalta a cruz da modesta igreja matriz.
Transpondo límpido regato e
vencida pedregosa ladeira com casinholas de sapé à direita e à esquerda, chega‑se
à rua principal, que tem por mais grandioso edifício espaçosa casa de sobrado,
de construção antiquada. Ornamenta‑a uma varanda de ferro e um telhado
que se adianta para a rua, como a querer abrigá‑la em sua totalidade dos
ardores do sol.
É aí que mora o Major
Martinho de Melo Taques, baixote, rechonchudo, corado.
Na sua loja de fazendas, ao
rés‑do‑chão, reúne-se a melhor gente da localidade, para ouvi‑lo
dissertar sobre política, ou narrar a guerra dos farrapos no Rio Grande do Sul
e a vida que se leva na corte do Rio de Janeiro, onde estivera pelos anos de
1838 a 1839.
De vez em quando, naquela
silenciosa rua em que tão bem se estampa o tipo melancólico de uma povoação
acanhada e em decadência, aparece uma ou outra tropa carregada, que levanta
nuvens de pó vermelho e atrai às janelas rostos macilentos de mulheres, ou a
porta crianças pálidas das febres do Rio Paranaíba e barrigudas de comerem
terra.
Também aos domingos, à hora
da missa, por ali cruzam mulheres velhas, embrulhadas em mantilhas,
acompanhando outras mais mocinhas, que trajam capote comprido até aos pés e
usam daqueles pentes andaluzes, de moda em tempos que já vão longe.
Atravessou Cirino a vila, e passando
por defronte do Sr. Taques saudou‑o com a mão, e sem parar.
Estava o major, como de
costume, sentado ao balcão, de chinelos, sem meias, e rodeado das pessoas
gradas do lugar, a contar não só as próprias proezas, que muitas tinha aquele
estimável cidadão, senão também as façanhas dos antigos sertanejos, histórias
que sabia na ponta da língua.
—Lá vai o doutor, disse um
dos presentes a palestra da loja.
—O Sr. Cirino! interpelou o
major correndo para a porta. Então que é isso? Por aqui?
—É verdade, respondeu Cirino,
e vou de passagem; também por pouco tempo: talvez nesses oito ou dez dias
esteja de volta.
Tudo quanto enchia a salinha
havia saído para a rua, de modo que o moço ficou logo cercado. Recostavam‑se
uns quase à anca do animal; afagavam‑lhe outros a pá do pescoço ou
brincavam com o freio.
Achava‑se a
curiosidade aguçada: era preciso dar‑lhe pasto.
Compreendeu o major o
alcance da situação.
—Cada qual tem os seus
negócios particulares, disse logo para começar; mas, se não há segredo que quer
dizer esta sua volta?
—Já devia estar bem longe de
acá, observou um sujeito. Há quase dois meses que parou aqui na cidade e...
Espere, interrompeu o
vigário, não há tal dois meses. O doutor passou por esta rua há um mês e vinte
dois dias, às oito horas da manhã.
—Pois bem, continuou o major,
tinha tempo. de sobra para estar já por bandas de Miranda...
—Isso, se fosse escoteiro,
replicou Cirino, reparem que levava cargas... e, demais, viajava curando...
—É verdade! confirmou o
coletor (homem esguio, que trazia um chapéu muito alto e afunilado), não pensam
nisso. O que querem é falar... falar...
—Creio que o senhor não atira
a mim, observou o vigário com ar rusguento.
Sempre as mesmas teorias de
Pereira: a mesma grosseria repassada de desprezo ao sexo fraco, a mesma
suscetibilidade para desconfiar de qualquer pessoa ou de qualquer palavra que
lhes parecesse menos bem soante aos prevenidos ouvidos.
—Minha afilhada, continuou
Cesário, deve levantar as mãos para o céu. Achou um marido que a há de fazer
feliz e torná‑la mãe de uma boa dúzia de filhos.
Estremeceu Cirino, mas nada
disse.
Por toda a parte esbarrava de
encontro a preconceitos que nada podia vencer.
Nessa mesma tarde quis montar
a cavalo e voltar para Sant'Ana entretanto, o pensamento da resistência com que
Inocência encetara a terrível lata com seu pai, atuou em seu espírito e o
reteve.
Decidiu‑se a atacar o
touro pelas aspas.
Restar‑lhe‑ia ao
menos o consolo do desabafo, e num jogo perdido arriscava ainda ousado lance.
—Sr. Cesário, disse ele na
manhã seguinte, preciso muito falar‑lhe em particular.
—A mim?
—Sim, senhor.
—Pois, estou aqui às suas
ordens.
—Quisera que saíssemos. O que
lhe vou dizer... ninguém pode... ninguém deve ouvir.
—Oh! O senhor me assusta...
Então tem segredos que me contar?
—Tenho...
—Pois vá lá... Mapiaremos
fora... Ao meio‑dia esteja na minha roga... sabe onde é?
—Sei...
— Espere‑me num pau de
peroba seco que está derrubado.
—Lá estarei.
Muito antes da hora aprazada,
achava‑se Cirino no lugar indicado.
Devorava‑o a
impaciência.
Resolvido a desvendar sem rebuço
os seus amores a esse homem a quem mui conhecia, que por ele não tinha senão
razões de passageira simpatia, e de quem, contudo, estava dependente sua
felicidade, considerava decisivos os momentos.
Quem em tais circunstâncias
se acha, enxerga em tudo quanto o rodela sintomas de bom ou mau agouro, e nesse
instante a Cirino pouco parecia sorrir a natureza.
Não chovia; mas o tempo
estava carregado e sombrio.
Tinha o céu cor acinzentada e
do lado do poente linhas negras e continuas denunciavam trovoada talvez para a
tarde.
Era o local, além disso,
tristonho. Enfileiravam‑se numa grande área, pés de milho já pendoados,
dentre os quais surgiam possantes madeiros de tronco rugoso e galhada
completamente despida de ramagem, uns, da base à extrema ponta, lugubremente
enegrecidos pelo fogo lançado antes da sementeira; outros perdidas todas as
folhas em conseqüência da incisão profunda e circular com que o machado
impedira a ascensão da selva. Esses quedavam vivos mas de uma vida latente e
esmorecida, denunciada por entanguidos brotos no mais alto do tope.
Quando o dia é claro, aqueles
gigantes da floresta, que pela robustez do cerne haviam desafiado as chamas e
os esforços do homem, servem de poleiro a inúmeros bandos de papagaios,
periquitos, araçaris, ou de graúnas que formam concertos capazes de ensurdecer
os ecos.
Naquela ocasião, porém, tudo
era silêncio.
Só de vez em quando se ouviam
pancadas surdas e intermitentes dos pica‑paus de crista vermelha,
agarrados aos troncos das árvores e a explorar‑lhes os pontos
carunchosos, subindo em ziguezagues.
A hora ajustada, apresentou‑se
Antônio Cesário.
Por cautela vinha armado de
uma espingarda de caça, que bem serviria para derrubar alguma onça, ou animal
daninho.
Seu rosto, habitualmente
sereno, indicava certa inquietação, repassada de curiosidade.
—Aqui me tem, doutor, disse
ele descansando a arma sobre o pau derrubado e sentando‑se ao lado de
Cirino. Estou pronto para ouvi‑lo quanto tempo queira...
Muito pensara Cirino nesse
momento a que devia chegar e, entretanto, não pudera achar o modo por que
encetasse as suas declarações. Parafusara de continuo mil pretextos sem nada
assentar
Foi, pois, a balbuciar que
respondeu:
—0 Sr... há de me
desculpar... o incômodo que... lhe dou. .
—Incomodo nenhum.
—E deve estar... espantado
do que lhe pedi... vir falar comigo... em lugar ermo... comigo que sou como
qualquer hospede. como tantos que sua casa tão franca todos os dias recebe
—Com efeito, confirmou
Cesário.
—Pois bem, daqui a nada tudo
lhe ficará claro e explicado . Se enquanto eu falar... o ofender, perdoe‑me,
ouviu?
Sr. Cesário, continuou
Cirino após breve pausa, se o Sr. visse um homem arrastado numa corredeira e
pudesse atirar‑lhe uma corda e salvá‑lo... o faria?
—Boa dúvida, replicou o
outro com forca. Ainda que corra perigo de vida, não deixarei homem nenhum,
branco ou preto, livre ou escravo, rico ou pobre, conhecido ou não, sem o
socorro de meu braço.
—Pois bem, exclamou Cirino
arrebatadamente, sou eu esse homem que vai morrer, que está perdido e a quem o
Sr. pode salvar...
E respondendo à tácita
suspeita de quem o ouvia:
—Não acredite que esteja
doido... não. Estou tão são de juízo como o Sr. e falo‑lhe a verdade. Uma
palavra esclarece‑lhe tudo... eu morro de paixão por uma mulher e essa
mulher é... sua afiIhada! . . . Inocência!
De um pulo levantou‑se
Cesário. Seus lábios tremiam, os olhos de súbito injetados de sangue. A mão
procurou a arma que lhe ficava ao lado.
—Que é isso? balbuciou
encarando fixamente Cirino.
Adivinhara‑lhe este
todos os pensamentos.
Erguera‑se também,
cara a cara com Cesário:
— Mate‑me, bradou ele,
mate‑me... E um favor que me faz.. Dê cabo desta vida desgraçada.
Já arrependido do gesto que
fizera e um tanto corrido de sua precipitação, replicou o outro todo sombrio:
—Não tenho razões para matá‑lo...
O Sr. nunca me fez mal...
—Não, prosseguiu Cirino no
meio desvairado, peço‑lhe por favor... Se o Sr. tem caridade, e é bom,
"se gosta de seus filhos, se tem pai e mãe no céu... por tudo isso eu lhe
peço de joelhos! mate‑me... mate‑me!
E deixou‑se cair aos
pés de Cesário, ocultando a cabeça entre as mãos.
Contemplou‑o largos
instantes o mineiro com surpresa.
Inclinando‑se para o
moço, bateu‑lhe no ombro e quase com brandura lhe disse:
— Que história é essa,
doutor?... Isso é loucura! Conte‑me que há... Quero saber se a sua bola
está girando ou não. Sou homem do sertão, mineiro de lei... mas sei tratar com
gente...
A estas palavras, recobrou
Cirino algum alento e pôs-se de pé.
Sentando‑se então ao
lado de Cesário, narrou‑lhe tudo, o desespero que o minava, a certeza que
tinha do amor de Inocência e a implacável sentença preferida por Pereira.
Ouvia‑o Cesário
atentamente. Só de vez em quando deixava escapar esta exclamação:
— Ah! mulheres!... mulheres!
É a nossa perdição.
Depois que Cirino acabou de
falar, encarou‑o detidamente e, com ar severo, perguntou:
—Fale‑me a verdade,
doutor, o senhor nunca trocou palavra com Inocência?
Nunca esteve só com ela?
— Estive, respondeu o outro
meio receoso.
As faces de Cesário subiu
uma onda de sangue.
—Então, rouquejou ele, a
desgraça...
—Deus meu, atalhou Cirino
com fogo, caia a alma de minha mãe no inferno, se Inocência não é pura... se...
Conteve‑o Cesário com
um gesto.
—Basta moço: quem jura
assim, não mente... Também no meu tempo tive uma paixão infeliz... e sei o que
é sofrer..,
—Oh! Sr. Cesário, salve‑me!...
—Que posso eu fazer? Não
sabe o senhor que ela hoje hão pertence nem mesmo ao pai, ao seu próprio pai?
Pertence a palavra de honra, e palavra de mineiro não volta atrás... Não sabia
o senhor disso, quando deixou que o amor lhe entrasse pelos olhos?... Mulheres
não pensam... mulheres o que querem é ver os homens derretidos por elas...
sacrificam tudo... e por um requebro pincham na rua a honra de suas casas ..
—Não, protestou Cirino, ela
não é assim...
—Então é melhor que as
outras? objetou Cesário com desdém.
—Sim, sim, é melhor do que
tudo deste mundo. Acima dela, só Nossa Senhora! . . .
Ligeiramente sorriu o
mineiro.
—Qual! observou ele, bem
disse o outro: a paixão 6 um transtorno. Fica um homem que nem uma miséria! É.
. .
—Então? interrompeu Cirino.
—Então o quê?... Já lhe não
disse quanto basta? Minha afilhada pertence tanto a Manecão, como uma garrucha
ou um guampo lavrado que Pereira lhe tivesse dado... Não há meios e modos de
voltar atrás...
Não desanimou o mancebo.
Falou por muito tempo com
verdadeira eloqüência, apelando principalmente para a proteção que todo o
cristão tem obrigação de dispensar ao ente que leva à pia batismal, a seu
segundo filho, ao pagãozinho por quem o padrinho se torna responsável perante
Deus.
Feriu o sentimento religioso
do mineiro e comoveu‑o.
—Não me fale assim,
contrariou este, o senhor quer ver se me puxa para o seu lado... E quem me
assegura que Nocência gosta tanto da sua pessoa?... Quem?
—O coração está‑lho
dizendo baixinho, respondeu com calma Cirino. O senhor, que é homem de honra,
acredita que eu esteja mentindo? Que tudo isso é falso?... diga, acredita?
Cesário tartamudeou:
—Sim... Assunto verdades,
mas...
—Ah! exclamou Cirino, o Sr.
sente a consciência bater‑lhe que sua afilhada está desamparada, que vai
ser sacrificada... e agora tapa os ouvidos e diz: Não quero ouvir, não quero
cumprir a minha palavra! Por que a deu então o Sr. . . essa palavra de honra de
que tanto tala?... Nossa Senhora que a proteja... que a tire deste mundo ..
Isso há de pesar‑lhe no peito... e, quando um dia tiver noticia que
Inocência morreu de desgostos, há de dizer lá consigo que ajudou a cavar‑lhe
a sepultura.
Estava Cesário abalado; com
verdadeira ansiedade retorquiu:
—Que histórias me conta o
Sr.? Eu metido no meu canto... vivendo tão sossegado... não bulindo com
ninguém, e agora anarquizado por estes mexericos! . . . Quem o mandou vir cá?
—Quem seria, retrucou
Cirino, senso Inocência? Porventura eu o conhecia?... algum dia o vi?... Não;
foi aquele anjo que me
disse: busca meu padrinho, 6
o último recurso. Se ele não nos amparar, então... estamos perdidos de uma vez.
Estas palavras convenceram
de todo Cesário.
Ficou em silêncio,
recolhido, a meditar; Cirino o observava ofegante.
—Pois bem, disse por fim o
mineiro em tom grave e pausado, hei de pensar no que o Sr. me conta...
—Oh! Sr. Cesário!...
—Levarei dois dias a remoer
sobre o caso... O que disse uma vez, não digo duas... No fim desse tempo, monto
a cavalo e apareço por casa de Pereira...
Sim, sim, balbuciou o moço.
—Amanhã mesmo, de madrugada,
o Sr. sal daqui e vai esperar‑me na Senhora Sant'Ana.
—Irei... salve‑me...
Cesário parou um pouco.
—Agora, quero que o Sr. me faça
um juramento... pelas cinzas de sua mãe.
—Estou pronto.
—Pela salvação de sua
alma...
—Pela salvação de minha
alma, repetiu Cirino.
—Pela vida eterna...
Cirino acenou a cabeça.
— Jure!
O mancebo cruzou os dois
índices e beijo‑os com unção abaixando os olhos e empalidecendo.
—O Sr., disse Cesário, Jurou
antes de saber o que era... Deu‑me boa idéia do seu caráter... Farei tudo
por ajudá‑lo, mas exijo‑lhe uma condição... Se quiser aceitá‑la,
fica valendo o juramento; senão... o dito por não dito...
—Que será, meu Deus? murmurou
Cirino.
—E ficar o Sr. esperando em
Sant’Ana. Se eu aparecer por estes oito dias, iremos juntos à casa do compadre.
Se não, é que decidi contrário. Neste caso, virá o Sr. até cá e aqui esperará
as suas cargas que mandarei buscar. Será sinal de que nunca mais há de procurar
botar as vistas em Inocência... nem sequer falar nela. Aceita?
—Aceito, respondeu o moço com
exaltação; mas fique certo de uma coisa: se o Sr., no tempo marcado, não
estiver na vila, reze por alma de Cirino, porque ele terá deixado este mundo de
aflições.
Cesário meneou tristemente a
cabeça e retirou‑se, sem dizer mais palavra.
XXIX—RESISTÊNCIA DE
CORÇA
Acasto.—
Não pode ela falar?
Osvaldo — Se falar é
tão‑somente fazer ouvir sons por meio da língua e dos lábios. e aquela
criatura muda; mas se tão maravilhosa faculdade consiste também em tornar
compreensíveis os menores pensamentos por acionados e expressivos gestos, pode
dizer‑se que ela a possui, pois seus olhos cheios de eloqüência têm uma
linguagem inteligível, embora falha de sons de palavras.
(Antiga Comédia Inglesa
citada por Walter Scott).
Deixamos Inocência tão
abatida de corpo, quanto resoluta de
espírito.
Pressentia os choques que
tinha de suportar, e robustecia a alma na meditação continua e firme de sua
infelicidade.
Estava de joelhos diante da
imagem de Nossa Senhora, quando a voz de seu pai a fez levantar.
—Nocência! chamava ele.
Rapidamente passou a
pobrezinha a mão pelo rosto para apagar os vestígios de copioso pranto, e com
passo quase seguro penetrou na sala.
Estavam Pereira e Manecão
sentados junto à mesa. O anãozinho Tico aquecia‑se aos pálidos raios de
um Sol meio encoberto e, sentado à soleira da porta, brincava com umas
palhinhas.
—Estou aqui, papai, disse
Inocência em voz alta e um pouco trêmula.
Encarou‑a Manecão com
ar entre sombrio e apaixonado.
Julgou dever dizer alguma
coisa.
—Até que afinal a dona saiu
do ninho... E que hoje o dia está de sol, não é?
A moça nada lhe respondeu;
fitou‑o com tanta insistência que o fez abaixar os olhos.
—Ela esteve doente, desculpou
Pereira.
E voltando‑se para a
filha:
—Sente‑se aqui bem perto
de nós... O Manecão quer conversar com você em negócios particulares.
— Bem percebe ela, observou o
desazado noivo intentando abrir o motivo para risos.
Inocência replicou em tom
incisivo:
—Não percebo.
—Está se... fazendo de...
engraçada, balbuciou Manecão. Pois já... se esqueceu... do que tratei com seu
pai?... Parece que comeu muito queijo.
Com a mesma entoação e
cortando‑lhe a palavra retorquiu ela:
—Não me lembro.
Houve uns minutos de
silencio.
Acumulava‑se a cólera
no peito de Pereira; seus olhares irados Iam rápidos de Manecão à imprudente
filha.
—Pois, se você não se lembra,
disse ele de repente, eu cá não sou tão esquecido,
—Ora, recomeçou Manecão
levantando‑se e vindo recostar‑se à beira da mesa para ficar mais
chegado à moça, faz‑se de enjoada a toa... o nosso casamento...
—Seu casamento? perguntou
Inocência fingindo espanto.
—Sim...
—Mas com quem?
—Ué, exclamou Manecão, com
quem há de ser... Com mecê...
Pereira fora‑se
tornando lívido de raiva.
O anão acompanhava toda essa
cena com muita atenção Cintilavam seus olhinhos como diamantes pretos; seu
corpo raquítico estremecia de impaciência e susto.
A resposta de Manecão,
levantou‑se rápida Inocência e, como que acastelando‑se por detrás
da sua cadeira, exclamou:
—Eu? .. Casar com o senhor?! Antes
uma boa morte!... Não quero... não quero... Nunca... Nunca...
Manecão bambaleou.
Pereira quis por‑se de
pé, mas por instantes não pôde.
—Está doida, balbuciou, está
doida.
E, segurando‑se à mesa,
ergueu‑se terrível.
—Então, você não quer? perguntou
com os queixos a bater de raiva.
—Não, disse a moça com
desespero, quero antes...
Não pode terminar.
O pai agarrara‑a pela
mão, obrigando‑a a curvar‑se toda.
Depois, com violento
empurrão, arrojou‑a longe, de encontro à parede.
Caiu a infeliz com abafado
gemido e ficou estendida por terra amparando o peito com as mãos. Mortal
palidez cobria‑lhe as faces e de ligeira brecha que se abrira na testa
deslizavam gotas de sangue
Ia Pereira precipitar‑se
sobre ela como para esmagá‑la debaixo dos pés, mas parou de repente e,
levando as mãos ao rosto, ocultou as lágrimas que dos olhos lhe saltavam a
flux.
Manecão não fizera o menor
gesto. Extático assistira a toda essa dolorosa cena. A fisionomia estava
impassível, mas, por dentro, seu coração era um vulcão.
Lúgubre silencio reinou por
algum tempo naquela sala.
O anão chegara‑se a
Inocência, tomando‑lhe uma das mãos: depois, a fizera sentar e, no meio
de carinhos, mostrara‑lhe por sinais a necessidade de retirar‑se.
A custo pôde ela seguir
aquele conselho. Quase de rastos e ajudada por Tico é que saiu da presença do
pai e de seu perseguidor.
Nenhum movimento fizeram os
dois para retê‑la. Calados como estavam, deixaram‑se ficar de pé,
um ao lado do outro, ambos acabrunhados pela grandeza daquela desgraça.
Com frenesi cofiava Manecão
o basto bigode.
Pereira tinha a cabeça
pendida sobre o peito.
Afinal, exclamou:
—É preciso que eu desembuche
o que tenho cá dentro, senão estouro .. Quem for homem que seja... Manecão,
Nocência para nós está perdida... para nós, porque um homem lhe deitou um mau‑olhado
. . .
—E que homem é esse?
perguntou em tom surdo e ameaçador o outro.
—Agora vejo como tudo foi...
Eu mesmo meti o diabo em casa... Estive alerta... mas o mal já caminhava.
—Mas, quem é ele? tornou a perguntar
com impaciência Manecão.
—Um maldito! um infame, um
estrangeiro que aqui esteve... Roubou‑me o sossego que Deus me deu...
Contou então às pressas
Pereira todas as tentativas do alemão Meyer, tentativas que haviam sido
descobertas, mas que infelizmente, pelo menos assim supunha, já haviam
produzido os seus danosos frutos.
—Ah! disse por fim abaixando
a voz, pensou aquele cachorro que tudo era namorar mulheres e depois dar com os
pés em polvorosa, não é?... Amanhã mesmo eu lhe saio no rasto.
—Para quê? interrompeu
Manecão.
—Respondam os urubus...
—Para matá‑lo?
—Sim...
Houve breve pausa.
—Não será, o senhor, disse o
capataz, que lhe há de dar cabo da pele.
—Por quê?
—É negócio que me pertence.
O senhor é pai.,. eu porem sou.,. noivo. Mangaram com os dois... mas o alamão
fica no chão.
—Pois seja, concordou
Pereira, parta amanhã mesmo ou hoje... agora, se possível for. Cão danado deve
logo ser morto, para que a baba não dê raiva. Vá depressa e venha contar‑me
que aquele homem já não existe... Como velho, como pai... abençôo a mão que o
há de matar. Cala o sangue que correr... sobre os meus cabelos brancos . . .
Havia toda esta conversa
sido atentamente ouvida por alguém: o anão Tico.
Viera a pouco e pouco
aproximando‑se da mesa com os olhos a fulgir.
De repente, colocou‑se
resolutamente entre Manecão e Pereira.
—Que quer você aqui?
perguntou o mineiro com aspereza.
Começou então o homúnculo a
explicar por gestos vagarosos, mas muito expressivos, que de tudo estava
ciente, participando de todos os projetos e do mesmo sentimento de indignação e
desespero que enchia os dois ofendidos.
Depois, apressando mais a
gesticulação e por sons meio articulados, fez ver que Pereira laborava em
engano, tão‑somente quanto a pessoa.
Com multa propriedade de imitação
e perfeita mímica, ora levantando o braço para caracterizar as fisionomias, tão
exatamente representou Meyer e Cirino, que o mineiro logo os reconheceu.
—Bem sei, bem sei, Tico,
murmurou ele. Você fala do doutor e daquele...
Ai o anão fez um gesto de
negação e, apontando para o quarto de Inocência, indicou que nada tinha ela com
o alemão.
Ficaram pasmos os dois.
— Então, balbuciou Pereira,
quem será?... Ci...rino, meu Deus?!
—Sim... Sim! gritou o anão
com violento esforço abaixando muitas vezes a cabeça.
—Qual! protestou Pereira, o
doutor?...
Com muita habilidade e
segurança Tico desenvolveu as provas que tinha.
Gesticulou como um possesso;
correu para fora de casa; denunciou as entrevistas; reproduziu ao vivo todas as
passadas de Cirino; mostrou o lugar do laranjal donde vira tudo, o galho
quebrado em razão da sua queda; repetiu o grito que dera; lembrou a cena da
madrugada, findando com aqueles tiros; exprimiu‑se por sinais tão
adequados e tais movimentos de cabeça e fisionomia, que toda a dúvida desapareceu
do espírito de Pereira.
Então tudo se lhe descortinou
claro e deslumbrante, e sua cólera subiu a um grau de violência inexprimível.
Esteve a cair fulminado.
—Infame, murmurou roxo de
ira, tu me pagas!
—Infame... Infame!
Depois voltando‑se para
Manecão:
—Dê‑me esse... eu o
quero...
Abanou o capataz a cabeça.
— Não, respondeu surdamente.
Esse me pertence... Caçoou com o senhor... e fez de mim chacota.
—Então, disse apressadamente
Pereira, parta hoje... parta já . E quando voltar, diga só: estamos
desagravados... Inocência será sua...
Parando um pouco. concluiu
tomado de enleio:
—Se quiser aceitá‑la.
—Havemos de conversar,
Teve o mineiro uma explosão
de desespero
—Meu Deus, exclamou com dor,
em que mundo vivemos nos? Um homem entra na minha casa, come do que eu como,
dorme debaixo do meu teto, bebe da água que carrego da fonte, esse homem chega
aqui e, de uma morada de paz e de honra, faz um lugar de desordem e vergonha!
Não, mil raios me partam!... Não quero mais saberque esse miserável respire o
ar que respiro. Não! mil vezes, não! E desde já enxoto a canalhada que trouxe,
gente do inferno como ele! . . . Hei de cuspir‑lhes na cara. . . Pinchá‑los
fora como cães que são!... Ladrões! .. Eu... Interrompeu‑o Manecão com
calma:
—Não faça nada... E preciso
que ninguém saiba do que se está passando aqui... Ninguém!... percebe?
—E então?
—Faça de conta que recebeu
uma letra de Sant'Ana. O cujo foi quem a mandou, para que os camaradas o vão
esperar no Leal... Ouviu?
Pereira fez sinal de tudo
compreender.
—Depois, acrescentou Manecão
com voz sinistra, mãos a obra.
—Você diz bem, retorquiu
Pereira, tenha pena de mim... Estou com esta cabeça corno um cortiço de
guaxupés... E um zumbido!... Mostre que já é dono desta casa e faça como
entender... Entrego‑me de pés e mãos atados a você... Tudo lhe
pertence... Enquanto a honra do mineiro não for desafrontada .. não levanto o
rosto... Meu Deus, meu Deus, que vergonha! .
—Coragem, coragem,
aconselhou o outro.
—Se este socavão não chegar
para esconder minhas misérias... mudo‑me para as bandas do Apa... Parece
que vou morrer... sinto fogo dentro da cabeça...
E, vencido pela emoção,
encostou a testa à mesa, deixando cair os braços.
Bateu‑lhe Manecão no
ombro.
—Que é isso, meu pai? animo!
De que serve ser homem?... Olhe cara a cara a sua desgraça... que também é
minha. Não o consola a certeza de que aquele homem brevemente...
—Sim, replicou Pereira
levantando a cabeça e reparando que o anão se retirara, mas que faremos deste
tico de gente, que sabe tudo ?
—Não o deixe sair mais de
casa.
—Qual!... É que nem muçu.
Quando a gente mal pensa, surge no Sucuriú e até no Corredor.
—Pois bem... Ficará sabendo
que... um só piscar de olho... pode sair‑lhe caro... muito caro.
—Então implorou Pereira, vá
quanto antes limpar o meu paiol daquela gente vá... Se eu pudesse ainda
dormir... esquecia um pouco, mas .
Com estas palavras retirou‑se
a custo o mineiro.
Incontinenti foi Manecão despachar os camaradas de Cirino, os quais,
pouco depois saiam com destino à casa do Leal.
Em seguida, montando o
tropeiro a cavalo, partiu em carreira desapoderada para a Vila de Sant'Ana do
Paranaíba, onde chegou alta noite.
XXX—DESENLACE
Estão contados os grãos de areia
que compõem a minha vide. É aqui que devo tombar. É aqui que ela há de acabar.
(Shakespeare, Henrique V, Ato
1)
Eis que vi um cavalo amarelo,
e quem o montava, era a morte.
(São João Apocalipse)
Durante três dias, foi
Cirino rigorosamente espreitado pelo noivo de Inocência.
Com a cautela própria dos
seus hábitos esquivos, soube Manecão acompanhar‑lhe todos os passos sem
ser pressentido.
Assim notou que o rival
montava a cavalo e ia até certo ponto da estrada como que esperar por alguém
que não chegava. Na ida, mostrava impaciência e inquietação; na volta vinha
melancólico e curvado sobre si mesmo, absorto em fundo meditar.
Ia o infeliz mancebo ao
encontro de Cesário; mas este não aparecia.
Estava quase expirado o
prazo combinado, e prestes a soar a hora do completo desengano.
Oh! se ele pudera!...
Agarraria com forças de Josué esse Sol que lhe marcava os dias e o deixaria
imóvel, até que o seu salvador se resolvesse a estender‑lhe a mão.
E já ia findando a
semana!...
Completo o círculo de horas,
se Cesário não aparecesse, começava a imperar o juramento que dera,
irrevogável, implacável!
—Matar‑me‑ei,
dizia Cirino; ficarão sabendo que não menti às minhas palavras.
Nessa firme resolução saiu
da vila; passou o Rio Paranaíba e, como costumava, caminhou pela estrada de São
Francisco de Sales, talvez três léguas. Contava pousar por aqueles sítios de
modo que alongava o seu passeio.
Claro era o dia; lindo:
Por toda parte cantavam mil
pássaros. Gritavam as gralhas nos cerrados; piavam as perdizes no relvoso chão.
Cirino ia multo agitado.
Nada ouvia; os seus olhos, fitos sempre na frente, buscavam na estrada,
ansiosos, o vulto de um cavaleiro.
Soou‑lhe de repente
aos ouvidos o tropel de um animal.
Alguém vinha a galope.
Seu coração pulsou que
parecia ter entrado também a galopar.
Mas o som partia de detrás.
Sem dúvida, algum viajante
vindo da vila.
Continuou Cirino na vagarosa
marcha.
—Mas, doutor, atalhou o
major, onde esteve o senhor de molho este tempão todo?... nalguma fazenda?
Prometia ir longe o
interrogatório.
—Eu já estava quase perto do
Sucuriú, disse Cirino meio perturbado, no...
—Não é tão perto assim,
objetou o vigário. Uma vez...
—Ouçamos, senhor padre,
atalhou o coletor denunciando rixa velha com o clérigo. O moço não disse que
seja perto daqui...
Repetiu o major as palavras
de Cirino, acentuando‑as de certo modo:
—Então o doutor já estava quase
perto do Sucuriú, não é?
—De fato. Ali encontrei uma
pessoa que me devia, há meses um dinheiro...
—Um dinheiro? perguntou o
vigário. Uma pessoa?... Que pessoa? Quem será?
—Homem, quem poderá ser?
indagaram a um tempo vozes sôfregas.
Prosseguiu o major
implacável:
—Deixem o doutor explicar‑se...
Vocês fazem logo uma algazarra! . .
Foi quase a balbuciar que
Cirino procurou continuar:
—Sim... certo tropeiro...
mandou ordem para mim cobrar... de um parente uma bolada... Também eu tinha
que... pagar outra pessoa... que...
—Espere, espere, interrompeu
o major, então o senhor velo receber dinheiro ou desembolsar? Não 6 uma e a
mesma coisa...
—Por certo, apoiaram os
circunstantes.
Cirino fez repentina parada
nas suas explicações.
—Também, disse com alguma
volubilidade, muito breve estarei voltando cá. Tenho de ir para lá do rio...
—Vai até as Melancias?
Indagou o coletor ajeitando o nome de um pouso para ver se acertava.
—Mais adiante, respondeu o
moço. E vendo a impossibilidade de escapar de tão terrível inquirição, mudou de
tática.
—Na volta, disse ele
dirigindo ao major, hei de lhe comprar algumas fazendas...
—Já adivinhei, exclamou o
vigário cortando a palavra a Cirino, o doutor vai casar.
—Ora, chasquearam alguns,
para que tanto segredo?... Ninguém lhe vai roubar a noiva!...
—Sobretudo quando as coisas
têm de me vir parar às mãos, ponderou o padre.
Por instante, deram o
acanhamento e o silêncio de Cirino azo a muitas observações.
—Parabéns! dizia um.
—Quem é essa feliz
sertaneja? perguntaram outros.
—Juro‑lhes, meus
senhores, protestou o moço, não há nada...
Prosseguiu o padre:
—Pois, se quer um conselho,
apresse isso; de uma cajadada matarei dois coelhos... E o senhor e o Manecão.
—Na verdade, concordaram os
presentes.
—Mas, onde se meteu ele? perguntou
um deles.
—Há pouco estava aqui...
—Quem? o Manecão?
—Sim...
—Ali vem ele! anunciou alguém
No fim da rua, aparecia, com
efeito, um homem montado em fogoso cavalo que sofreava com firmeza e mão
adestrada.
Era a personificação do
capataz de tropa.
Cabelos compridos e
emaranhados, ar selváticos e sobranceiro tez queimada e vigorosa musculatura
constituíam um tipo que atraia de pronto a atenção.
Metidos os pés numa espécie
de polainas de couro cru de veado, grandes chinelas de ferro, lenço vermelho atado
ao pescoço, garruchas nos coldres da sela e chicote de cabo de osso em punho,
tudo indicava o tropeiro no exercícios da sua lida.
—Nosso Senhor... convosco,
disse ao chegar, erguendo ligeiramente a aba do chapéu com a ponta do dedo
indicador.
—Bons dias, Sr. Manecão?
respondeu por todos o major, ou melhor, boas tardes... Já sei que desta feita
vai de batida..
—Boa dúvida, grazinou o
vigário, vai ver a pequerrucha.
Sorriu‑se o capataz
com melancolia:
—Não é por isso Sr. vigário.
Não me deixo anarquizar por mulheres; mas, enfim a gente deve um dia deitar a
poita... A vida é uma viagem...
Haviam Cirino e Manecão?
ficado no meio dos curiosos.
Fitaram‑se: um,
indiferente e altivo no modo de encarar; outro, descorado meio trêmulo
—Este cujo é o cirurgião? Perguntou
à meia voz Manecão? adernando no selim para o lado do coletor. A Cula da venda
me disse que tinha chegado... Tem‑me cara de enjoado.
—Xi! retrucou o outro, mas
tem cabeça. Por aí fez um despotismo de curas.
Cirino, notando que tratavam
dele, cumprimentou com um sorriso de amabilidade
—Boa tarde, patrício.
—Ora viva, correspondeu o
tropeiro em tom áspero.
E, olhando para o Sol,
acrescentou:
—Vejam lá o que é um homem
estar como mulher... a bater língua... A tarde vem descendo, e muito tenho hoje
que palmear... Minha gente, adeus... Sr. major, até mais ver... Sr. vigário,
breve estou por cá...
Esporeou o animal o circulo
abriu‑se, e Manecão? partiu em boa marcha.
Aproveitando, por seu turno,
aquela saída rápida, que rompera a cadela dos que o rodeavam, apertou Cirino a
mão do major e tomou rumo do Rio Paranaíba em cuja margem contava passar a
noite.
Mal desaparecera, e choveram
comentários que nem saraiva.
—Notou o senhor, disse o
vigário para o major, como esta mudado? .. todo jururu...
—Nem tanto, contrariou o
coletor, nem tanto...
O Sr. Taques, major e juiz de
paz, tomou ar de profunda meditação.
—Hão de os senhores ver,
disse por fim levantando um dedo para o ar, que ai há dente de coelho.
Durante aquela noite e muitos
dias subsequentes, repetiu a vila todas estas célebres palavras.
—Foi o major quem o disse,
asseveravam convictos, ali há dente de coelho.
XXV—A VIAGEM
Às vezes sinto necessidade de
morrer, como pessoas acordadas sentem necessidade de dormir
(Mme Du Deffand).
Encantador país! Teu aspecto,
teus solitários bosques ar puro e balsâmico, tem o poder de dissipar toda a
sorte de tristezas, menos a da perda da esperança.
(Carlota Smith).
Cirino em pouco mais de uma hora,
transpôs a distancia da povoação ao rio. Também, na légua e quarto que ate lá
media só há de ruim o trecho em que fica a floresta que borda as margens da
majestosa corrente.
Nessa mata, trazem os
troncos das árvores vestígio das grandes enchentes; o terreno 6 lodacento e
enatado; centro de putrefação vegetal donde irradiam os miasmas que, por
ocasião da retirada das águas, se formam em dias de calor abrasador e
sufocante.
Abundam ali coqueiros de
estípite curto e folhuda coroa chamados aucuris, a que rodeiam numerosas
lagoinhas de água empoçada e coberta de limo.
Em nada é, pois, aprazível o
aspecto, e a lembrança de que ali imperam as temidas sezões faz que todo o
viajante apresse a travessia de tão tristonhas paragens.
Ouve‑se a curta
distancia o ruído do rio que corre largo, claro e com rapidez.
Como duas verdes orlas
refletem‑se no espelhado da superfície as elevadas margens, a cujo sopé
moitas de sarandis, curvadas pelo esforço das águas e num balancear continuo,
produzem doce marulho.
Causa‑nos involuntário
cismar a contemplação de grande massa liquida a rolar, a rolar mansamente,
tangida por força oculta.
Bem como a ondulação
incessante e monótona do oceano agita a alma, assim também aquele perpassar
perene, quase silencioso, de uma corrente caudal, insensivelmente nos leva a
meditar.
E quando o homem medita,
torna‑se triste.
Franca e espontânea é a
alegria, como todo o fato repentino da natureza. A tristeza é uma vaga
aspiração metafísica uma elação inquieta e quase dolorosa acima da contingência
material.
Ninguém se prepara para ficar
alegre. A melancolia, pelo contrário, aos poucos é que chega como efeito de
fenômenos psicológicos a encadear‑se uns nos outros.
De que modo nasceu aquela
enorme mole de água? Donde velo? Para onde vai? Que mistérios encerra em seu
seio?
Largo tempo ficou Cirino a
olhar para o rio. Em sua mente tumultuavam negros pensamentos.
Já se havia difundido o
crepúsculo, e bandos folgazões de quero‑queros saudavam os últimos raios
do Sol e despertavam os ecos em descomunal gritaria. De vez em quando, passava
algum pato selvagem, batendo pesadamente as asas; sobre as águas, adejavam
garças estirando e encolhendo o níveo colo e pombas, aos centos, cruzavam de
margem a margem a buscar inquietas o pouso de querência.
Foi a luz gradativamente
morrendo no céu, seguida de perto pelas sombras; e o rio tomou aspecto uniforme
como se fora imensa lâmina de prata não brunida.
—Enfim, ‑conheci o
Manecão? pensava Cirino. E para esse é que reservam a minha gentil Inocência .
. . Bonito homem para qualquer... para mim, para ela, horrendo monstro!... E
como é forte ! . . .
Digamo‑lo, sem por isso
amesquinhar o nosso herói, a Idéia de força no rival acabrunhava‑o.—Se eu
pudesse... esmagava‑o!... E que ar sombrio e desconfiado!... Meu Deus,
dai‑me coragem... dai‑me esperanças... Nossa Senhora da Abadia!...
Nosso Senhor da Cana‑Verde... vaiei‑me!...
E o mancebo, diante daquela
natureza acabrunhadora a quem tanto Importava a paixão que lhe atanazava‑o
peito, como o inseto a chilrar debaixo da folha de humilde erva, caiu de
joelhos, orando com fervor ou, melhor, desfiando automaticamente as preces que
sua mãe lhe havia, em pequeno, ensinado.
E o rio lá se ia sereno; e
uma onça ao longe urrava, ou algum pássaro da noite soltava gritos de susto, esvoaçando
às tontas.
Transpondo na
manhã seguinte, o Rio Paranaíba, pisou
Cirino território de Minas literais.
Depois de légua e meia em
mata semelhante à da margem direita, abrem‑se campos dobrados, um tanto
arestados do sol, de aspecto pouco variado, mas abundantíssimos em perdizes e
codornas. Tão preocupado levava o moço o espírito que, nem sequer uma só vez,
imitou o pio daquelas aves; distração, a que aliás não se furta quem por lá
viaja, tão Instantes os motivos de instigação.
Foi com impaciência mais e
mais crescente que percorreu as dezesseis léguas intermédias à fazenda do
Pauda.
Ia com o coração cheio de
apreensões e os olhos se lhe arrasavam de lágrimas, de cada vez que contemplava
o melancólico buriti. Então pelo pensamento voava à casa de Inocência. Também,
ali junto ao córrego em cuja borda se dera a última entrevista, se erguia uma
daquelas palmeiras, rainha dos sertões.
Que estaria fazendo a querida
dos seus sonhos?
Que lhe aconteceria? E
Manecão?! Já teria lá chegado?
Ao pensar nisto, aumentava‑se‑lhe
a agitação e com vigor esporeava a cavalgadura.
Transformava‑se para
ele o caminho em dolorosa via, que numa vertiginosa carreira quisera vencer mas
que era preciso ir tragando pouso a pouso, ponto a ponto.
A majestosa impassibilidade
da natureza exasperava‑o.
Quando o homem sofre deveras,
deseja nos raptos do alucinado orgulho, ver tudo derrocado pela fúria dos
temporais, em harmonia com a tempestade que lhe vai no intimo.
—Meu Deus! murmurava Cirino,
tudo quanto me rodeia está tão alegre e é tão belo! Com tanta leveza voam os
pássaros: as flores são tão mimosas; os ribeirões tão claros... tudo convida ao
descanso... só eu a padecer! Antes a morte... Quem me dera arrancar do coração
este peso! esta certeza de uma desgraça imensa! Que é afinal o amor?... Daqui a
anos talvez nem me lembre mais da pobre Inocência... Estarei me atormentando à
toa... Oh não! Essa menina é a minha vida! é o meu sangue... o meu farol para
os céus... Quem ma rouba mata‑me de uma vez. Venha a morte... fique ela
para chorar por mim... um dia contará como um homem soube amar! . . .
Levantara Cirino a voz. De
repente, deu um grande grito, como que o sufocava:
—Inocência!... Inocência!
E as sonoridades da solidão,
dóceis a qualquer ruído, repetiram aquele adorado nome, como repetiam o uivo
selvático da suçuarana, a nota plangente do sabiá ou a martelada metálica da
araponga.
Como tudo, afinal, tem termo,
alcançou Cirino, no quarto dia, a casa de Antônio Cesário. Acolheu‑o este
com toda a amabilidade e franqueza.
XXVI—RECEPÇÁO CORDIAL
Assinalemos este dia entre os
mais felizes não se poupem ânforas; e, como Sábios, descanso não demos aos
nossos pés.
(Horácio Ode XXVI).
Em breve chegara Manecão? à
casa do futuro sogro.
Não é grande a distancia de Sant'Ana
até lá, e entretanto o animal brioso e descansado que montava o tropeiro viera
sempre estimulado do férreo acicate.
Batia de impaciência o
coração do capataz, e a lembrança da formosa noiva que o esperava, enchia‑o
de desconhecido alvoroço. Também, por vezes, fugia‑lhe do rosto o toque
habitual de severidade e tênue sorriso afastando a custo os densos bigodes lhe
pairava nos lábios,
Acolheu‑o Pereira com
verdadeira explosão de alegria.
—Viva! viva! exclamou de
longe acenando com os braços, seja bem‑vindo neste rancho... Ora, até que
afinal!... Faltam rojões para festejar a sua chegada... Que demora!... Pensei
que não topava mais com o caminho da casa... Nocência vai pular de contente. .
.
Enquanto o mineiro enfiava
estas palavras quase em gritos, apeou‑se o sertanista que, de chapéu na
mão, veio pedir‑lhe a bênção.
—Deus o faça um santo, disse
Pereira abençoando‑o com fervor. Você não queria chegar...
—Como vai a dona? perguntou
Manecão.
—Agora, muito bem. Teve
sezões, mas já está de todo boa...
—E lembrou‑se de mim?
—Olhe, que enjoado... Pois se
ele enfeitiça a gente... Eu mesmo só pensava em você... Quando estará por cá
aquele marreco? dizia eu comigo mesmo:... e botava uns olhos compridos por essa
estrada afora... quanto mais, mulher! Isto é um não acabar nunca de saudades.
Mas, observou ele, estamos a bater língua e não o faço entrar... Agorinha
mesmo, Nocência foi para o córrego... Desencilhe o pingo e deixe‑o por
ai...
Fez Manecão o que disse
Pereira. Tirou os arreios, não de súbito, mas com cautela e lentidão para que o
animal, encalmado como estava, não ficasse airado, deixou sobre o lombo a manta
e, apanhando um sabugo de milho, esfregou devagar a anca e o pescoço.
Depois de dar termo aqueles
cuidados, penetrou na casa fazendo soar ruidosamente as esporas, que pelas
dimensões desproporcionadas o obrigavam a caminhar firmado nos dedos do pé e
com a planta levantada.
O mineiro não cabia em si de
contente.
—Então, está tudo arranjado?
perguntou alegremente.
—Tudo. Os papéis já foram
tirados... Tive que ir até Uberaba, e foi o que me atrasou... Quando mecê
queira... botamo‑nos de partida para a Senhora Sant'Ana... Amanhã cá
chegam os cavalos que comprei... Está falado o Lata... o vigário avisado; só...
falta o dia...
—Nestes casos, quanto mais
depressa melhor... Não acha?
— Certo que sim...
—Então, se quiser, daqui a
dois domingos...
—Como queira . . Eu, cá por
mim. . . Bem sabe, isto de casórios, o que custa é... tomar resolução...
depois... deve‑se pegar na carreira... A rapariga esta pronta?...
—Não sei... há de estar...
Vejo‑a sempre cosendo... Quero ficar bem certo do dia, porque mando
chamar a gente do Roberto... Afinal, é preciso matar a porcada e mandar buscar
restilo. Quando se casa uma filha e... filha única, as algibeiras devem ficar
veleiras. Já estão todos combinados... é só dar o sinal... Tudo se arma logo...
Aqui, em frente da casa, faz‑se um grande rancho... A latada para a janta
há de ser no oitão direito... Já encomendei de Sant'Ana alguns rojões, e o
mestre Trabuco prometeu‑me uns que deitam lágrimas .. Depois, tiros de
bacamarte e ronqueiras hão de troar . . .
—Eu, interrompeu Manecão,
mandei com a sua licença vir da cidade duas dúzias de garrafas de vinho da casa
do major...
—Olaré! Você meteu‑se
em gastos!... Duas dúzias de garrafas de vinho?
—Nhor‑sim...
—Pois essas, meu caro, hão de
ser reguladinhas da silva... Para o vigário.. para o major... o coletor... o
professor... Enfim, gente de alguma representação, porque com ela conto, sem
falar na arraia miada. Isto há de haver um despotismo. Quero que, dez dias
antes da fonçonata venha a comadre do Ricardo com o seu povaréu para prepararem
sequilhos, tarecos, broas, biscoitos de polvilho e brevidades. Haverá regalo de
chicolate todas as manhãs... Você verá que desta festa falarão... E o sapateado
à noite? Os descantes?... Talvez se possa arranjar um cururu valente...
—Mas, perguntou Manecão, qu’é
de sua filha?
Riu‑se Pereira.
—Maganão! não pensa noutra
coisa, hem? Também fui ansim... cada qual tem o seu tempo... Isto é regra de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
E, saindo para o terreiro,
gritou com força, fazendo das mãos buzina:
—Nocência!... Nocência!...
Não teve resposta.
—Coitadinha da pequena, disse
ele, há de saltar que nem veadinha, quando voltar do rio.
E acrescentou:
—Já que ela não vem...
entremos. Você é de casa: tome por cá e chegue até o meu quarto... Rede e peles
macias não faltam.
Ao dizer estas palavras,
Pereira bateu amigavelmente no ombro de Manecão e fê‑lo seguir para o
lanço do fundo da casa.
XXVII— CENAS ÍNTIMAS
Santa Maria. advogada nossa,
ouvi nossos rogos. Virgem pura, ante Vós se prostra uma infeliz donzela.
(Walter Scott, Os Dois
Desposados).
Descrever o abalo que sofreu
Inocência ao dar, cara a cara com
Manecão fora impossível Debuxaram‑se‑lhe tão vivos na fisionomia o
espanto e o terror, que o reparo, não só da parte do noivo, como do próprio pai
habitualmente tão despreocupado, foi repentino,
—Que tem você? perguntou
Pereira apressadamente.
—Homem, a modos, observou
Manecão com tristeza, que meto medo a senhora dona...
Batiam de comoção os queixos
da pobrezinha: nervoso estremecimento balanceava‑lhe o corpo todo.
A ela se achegou o mineiro e
pegou‑lhe no braço.
—Mas você não tem febre?...
Que é isto, rapariga de Deus?
Depois, meio risonho e
voltando‑se para Manecão:
—Já sei o que é... Ficou toda
fora de si... vendo o que não contava ver... Vamos, Nocência, deixe‑se de
tolices.
—Eu quero, murmurou ela,
voltar para o meu quarto.
E encostando‑se à
parede, com passo vacilante se encaminhou para dentro.
Ficara sombrio o capataz.
De sobrecenho carregado,
recostara‑,se à mesa e fora, com a vista, seguindo aquela a quem já
chamava esposa.
Sentou‑se defronte dele
Pereira com ar de admiração.
—E que tal? exclamou por
fim... Ninguém pode contar com mulheres, iche!
Nada retorquiu o outro.
—Sua filha, indagou ele de
repente com voz muito arrastada e parando a cada palavra, viu alguém?
Descorou o mineiro e quase a
balbuciar:
—Não... isto é, viu... mas todos
os dias... ela vê gente... Por que me pergunta isso?
—Por nada...
—Não;... explique‑se...
Você faz assim uma pergunta que me deixa um pouco... anarquizado. Este negócio
é muito, muito sério. Dei‑lhe palavra de honra que minha filha havéra de
ser sua mulher... a cidade já sabe e... comigo não quero histórias... t: o que
lhe digo.
—Esta bom, replicou ele, nada
de percipitações. Toda a vida fui ansim... Já volto; vou ver onde pára o meu
cavalo.
E saiu, deixando Pereira
entregue a encontradas suposições.
Decorreram dias, sem que os
dois tocassem mais no assunto que lhes moía o coração. Ambos, calmos na
aparência, viviam vida comum, visitavam as plantações, comiam juntos, caçavam e
só se separavam á hora de dormir, quando o mineiro ia para dentro e Manecão para
a sala dos hóspedes.
Inocência não aparecia.
Mal saia do quarto,
pretextando recaída de sezões: entretanto, não era o seu corpo o doente, não; a
sua alma, sim, essa sofria morte e paixão; e amargas lágrimas, sobretudo à
noite, lhe inundavam o rosto.
—Meus Deus, exclamava ela,
que será de mim? Nossa Senhora da Guia me socorra. Que pode uma infeliz
rapariga dos sertões contra tanta desgraça? Eu vivia tão sossegada neste
retiro, amparada por meu pai... que agora tanto medo me mete... Deus do céu,
piedade, piedade.
E de joelhos, diante de tosco
oratório alumiado por esguias velas de cera, orava com fervor, balbuciando as
preces que costumava recitar antes de se deitar.
Uma noite, disse ela:
—Quisera uma reza que me
enchesse mais o coração... que mais me aliviasse o peso da agonia de hoje...
E, como levada de inspiração,
prostrou‑se murmurando:
—Minha Nossa Senhora mãe da
Virgem que nunca pecou, ide adiante de Deus. Pedi‑lhe que tenha pena de
mim... que não me deixe assim nesta dor cá de dentro tão cruel. Estendei a
vossa mão sobre mim. Se é crime amar a Cirino, mandai‑me a morte. Que
culpa tenho eu do que me sucede? Rezei tanto, para não gostar deste homem!
Tudo...
tudo... foi inútil! Por que então este suplício de todos os momentos? Nem sequer tem alivio no sono? Sempre ele... ele!
As vezes, sentia Inocência em
si ímpetos de resistência: era a natureza do pai que acordava, natureza forte,
teimosa.
—Hei de ir, dizia então com
olhos a chamejar, à igreja, mas de rastos! No rosto do padre gritarei: Não,
não!... Matem‑me... mas eu não quero...
Quando a lembrança de Cirino
se lhe apresentava mais viva, estorcia‑se de desespero. A paixão punha‑lhe
o peito em fogo...
—Que é isto, Santo Deus? Aquele homem me teria
botado um mau olhado? Cirino, Cirino, volta, vem tomar‑me... leva-me!...
eu morro! Sou tua, só tua... de mais ninguém.
E caia prostrada no leito,
sacudida por arrepios nervosos.
Um dia, entrou inesperadamente Pereira e achou‑a toda
lacrimosa.
Vinha sereno, mas com ar
decidido.
—Que tem você, menina, perguntou
ele, meio terno, de alguns dias para cá?
Inocência encolheu‑se
toda como uma pombinha que se sente agarrar.
Puxou‑a brandamente o
pai e fê‑la sentar no seu colo.
—Vamos, que é isto, Nocência?
Por que se socou assim no quarto?... Manecão lá fora a toda a hora está
perguntando por você... Isto não bonito... É, ou não, o seu noivo?
Redobraram as lágrimas.
—Mulher não deve atirar‑se
a cara dos homens... mas também é bom não se canhar assim... É de enjoada... Um
marido quase, como ele já é...
De repente o pranto de
Inocência cessou.
Desvencilhou‑se dos
braços do pai e, de pé diante dele, encarou‑o com resolução:
—Papai. sabe por que tudo
isto?
—Sim.
—É porque eu... não devo...
—Não devo o quê?
—Casar.
Arregalou Pereira os olhos e
de espanto abriu a boca.
—Que? perguntou ele elevando
muito a voz...
Compreendeu a pobrezinha que
a lata ia travar‑se. Era chegado o momento.
Revestiu‑se de toda
coragem.
—Sim, meu pai, este casamento
não deve fazer‑se..
—Você está doida? observou
Pereira com fingida tranqüilidade.
Prosseguiu então Inocência
com muita rapidez, as faces incendiadas de rubor:
—Conto‑lhe tudo
papai... Não me queira mal... Foi um sonho... O outro dia, antes de Manecão
chegar, estava sesteando e tive um sonho... Neste sonho, ouviu, papai? minha
mãe vinha descendo do céu... Coitada! estava tão branca que metia pena... Vinha
bem limpa, com um vestido todo azul... leve, leve!
—Sua mãe? balbuciou Pereira
tomando de ligeiro assombro.
—Nhor‑sim, ela mesma...
—Mas você não a conheceu! Morreu,
quando você era pequetita... . .
—Não faz nada, continuou
Inocência, logo vi que era minha mãe... Olhava para mim tão amorosa!...
Perguntou‑me: Cadê seu pai? Respondi com medo: Esta na roga; quer mecê,
que ele venha? — Não, me disse ela, não é perciso; diga‑lhe a ele que eu
vim ate cá, para não deixar Manecão casar com você, porque há de ser infeliz...
muito!... muito!...
—E depois? perguntou Pereira
levantando a cabeça com ar sombrio, girando os olhos.
—Depois... disse mais... Se
esse homem casar com você, uma grande desgraça há de entrar... nesta casa que
foi minha e onde não haverá mais sossego. Bote seu pai bem sentido nisso. E sem
mais palavra, sumiu‑se como uma luz que se apaga.
Cravou Pereira olhar
inquiridor na filha.
Uma suspeita lhe atravessou o
espírito.
—Que sinal tinha sua mãe no
rosto?
Inocência empalideceu.
Levando ambas as mãos à
cabeça e prorrompendo em ruidoso pranto, exclamou:
—Não sei... eu estou
mentindo... Isto tudo 6 mentira! mentira! Não vi minha mãe!... Perdão, minha
mãe, perdão!
E, caindo de bruços sobre a
cama, ficou imóvel com os cabelos espargos pelas espáduas.
Contemplou‑a Pereira
largo tempo sem saber que pensar, que dizer.
Súbito se inclinou sobre o
corpo da filha e ao ouvido lhe segredou com muita energia:
—Nocência, daqui a bocadinho
Manecão chega da roça... você ha de ir para a sala... se não fizer boa cara, eu
a mato.
E erguendo a voz:
—Ouviu? Eu a mato!... Quero
antes vê‑la morta, estendida, do que... a casa de um mineiro desonrada...
As pressas saiu do quarto,
deixando Inocência na mesma posição.
—Pois bem, murmurou ela, já
que é preciso... morra eu!
XXVIII—EM CASA DE CESÁRIO
Ah! a perspectiva que pode
mais docemente sorrir ao meu coração é a do aniquilamento.
(Klopstock, A Messiada)
Cirino, logo que se
estabeleceu em casa do seu novo hospedeiro,
tratou de lhe captar as simpatias. Medicou um escravo que estava de
cama, fez valer o conhecimento e amizade que tinha com
Pereira, conversou muito a
respeito dele e incidentemente deu noticias de Inocência.
Atalhou‑o Antônio
Cesário neste ponto.
—Mecê a viu? perguntou ele.
—Pois não, respondeu o moço,
por sinal que a curei de sezões.
—Ah! É uma guapa rapariga...
—Parece‑me...
—Isso é... falo assim, porque
afinal... daqui a poucos dias está casada... não sabe?
—Ouvi contar.
—Pois é verdade. O noivo
passou por cá e levou a minha licença. É homem de mão‑cheia. A pequena
deve estar contente. Ah! nem todas no sertão são felizes assim. Tem‑se
por aqui o mau vezo de arranjar casamentos as cegas, e às vezes se encambulha
um mocetão com uma fanadinha ou então uma sujeita de encher o olho com algum
rapaz todo engrouvinhado. . . Cruz! E, uma vez dada a palavra, acabou‑se...
Achou Cirino a ocasião
própria e redargüiu com vivacidade:
—Então o senhor não é desse
parecer.
— Conforme, respondeu logo
Cesário com reserva. Aos pais é que convém inziminar essas coisas.
—Boa dúvida... Mas... se...
sua afilhada... não gostasse de Manecão?
—Não gostasse?
—Sim.
—E que nos importa isso? Uma menina
como ela não sabe o que lhe fica bem ou mal... Ninguém a vai consultar.
Mulheres, o que querem é casar. Não ouviu já o patrício dizer que elas não
casam com carrapato, porque não sabem qual é o macho?
E Cesário sorriu.
Depois, fechando de repente a
cara, perguntou:
—Por que é que estamos a dar
de língua nesse particular? Não sou amigo disso. Quer‑me parecer que mecê
é um tanto namorador. . .
—Eu? protestou Cirino com
vivacidade.
—Boa dúvida. Eu cá nem falar nelas quero. Mulher é para viver muito quietinha perto do tear, tratar dos filhos e criá‑los np>
O estrupido vinha indicando
carreira folgada e que breve consigo estaria emparelhando, quem
extravagantemente em hora tão imprópria corria à desfilada.
O mancebo de nada cuidava,
tanto que mal reparou que alguém a trote largo passara por perto de si, quase a
rogar animal contra animal.
Dali a pouco, novo galope se
fez ouvir.
Parecia que o mesmo cavaleiro
havia dado de rédeas, cortando o rumo que levava.
Dessa vez, porém, Cirino
acordou do letargo, esporeou vigorosamente a sua cavalgadura e... esbarrou com
Manecão.
Instintivamente empalideceu.
O outro estava também muito descorado.
Estacaram eles os animais e
fitaram‑se alguns minutos, de um lado com desconfiança e pasmo, de outro
com mal concentrado furor.
—Patrício, interpelou por fim
o capataz em tom provocador, que faz mecê por aqui?
—Eu? perguntou Cirino.
—Nhor‑sim, mecê mesmo.
—É boa... viajo.
—Ah! viaja! replicou Manecão.
Então é andejo?
—Andejo, não, contestou
Cirino com força. Não sou nenhum bruto.
E por prevenção levantou a
capa do coldre em que havia uma pistola, fazendo menção de a sacar.
—Não será andejo, continuou o
capataz, mas então o que é?
—Sou o que sou, não é da sua
conta.
Contraiu‑se o rosto de
Manecão.
De um tranco chegou o cavalo
bem junto a Cirino e disse‑lhe em voz surda:
—É um ladrão... é um
cachorro! .
A esse insulto, puxou Cirino
a pistola.
—Mato‑o já, bradou com
violência se continua a destratar‑me.
Sorriu‑se o capataz com
desprezo.
—Gentes, observou cuspindo
para um lado, vejam só que valentão... E sabe manejar garrucha!...
—Acabemos com isso, gritou
Cirino.
—Acabemos, retorquiu Manecão
com fingida calma.
—Mas quem é o Sr.? perguntou
Cirino.
—Eu?
—Sim!... sim!...
—Então não me conhece?
—Não, balbuciou Cirino.
—Conhece Nocência? uivou
Manecão com voz terrível
E de supetão tirando uma
garrucha da cintura, desfechou‑a à queima‑roupa em Cirino.
Varou a bala o corpo do
infeliz e o fez baquear por terra.
Dois gritos estrugiram.
Um de agonia, outro de
triunfo.
Ficara Cirino estendido de
bruços. Reunindo as forças, que se lhe escapavam com o sangue, voltou‑se
de costas e prorrompeu em vociferações contra o inimigo, que o contemplava
sardônico.
—Matador!. vil! .. sim! ..
conheço Inocência... Ela é minha .. Infame! .. Mataste‑me... mas mataste
também a ela!... Que te fiz eu?... Deus te há de amaldiçoar... sim, meu Deus,
meus Santos .. maldição sobre este assassino... Foge, foge... minha sombra há
de seguir‑te sempre...
—Melhor, interrompeu Manecão
do alto do cavalo, isso mesmo é 0 que eu quero.
—Ah! queres? continuou
Cirino com voz rouquejante, não é?... Pois bem!... De noite e de dia... minha
alma há de estar contigo . . sempre, sempre! . . .
Calou‑se por um pouco
e, revolvendo‑se no chão, passou a mão pela testa. Lentejava‑lhe
dos poros o suor frio e visguento da morte.
Foi seu rosto abandonando a
expressão de rancor; a respiração tornou‑se‑lhe mais difícil
—Não murmurou com pausa e
gravidade, não quero morrer... assim. Devo sair desta vida... como cristão...
Hei de saber perdoar... E reunindo as forças, acrescentou com unção e energia:
Manecão... eu te perdôo... por Cristo... que morreu... na cruz, para nos
salvar... eu te perdôo Nosso Senhor tenha pena de ti... Eu te perdôo, ouviste?
A medida que o moribundo
pronunciava estas palavras, esbugalhara Manecão os olhos de horror com o corpo
todo a tremer.
—Não quero o teu perdão,
bradou ele a custo.
—Não importa, respondeu‑lhe
Cirino com voz suave. Ele é... dado do fundo d'alma... Cata sobre tua cabeça...
Quero, quero morrer como
cristão... Que me importa agora o mundo, a vingança... tudo?... só
Inocência!... Coitada de Inocência... Quem sabe... se... ela... não morrerá?
Manecão, dá‑me água. Água pelo amor de Deus! . . . Desce do cavalo,
homem. . . É um defunto que te pede... Desce!...
E com os braços erguidos
acenava para Manecão.
—Água, bradou o mancebo
forcejando por levantar‑se, dá‑me água... eu te dou a salvação...
Sentia o capataz escorrer‑lhe
o suor dentre os cabelos. Queria fugir e não podia. Parecia que os seus olhos
tinham de acompanhar passo a passo a agonia da sua vitima. Aquela cena, se lhe
afigurava um pesadelo, e completo torpor lhe tolhia os membros.
Tirou‑o desse enleio o
bater das patas de um animal que vinha pela estrada a trote.
Ouvira também Cirino o
estrupido e arregalara com ansiedade os olhos.
Desabrochou‑lhe nos
lábios um sorriso de acre tristeza.
Alguém vinha chegando.
Esporeou Manecão com vigor o
cavalo e, levantando uma nuvem de poeira, desapareceu num abrir e fechar de
olhos.
Nisto assomava um cavaleiro
numa das voltas do caminho.
Era Antônio Cesário.
Vendo um homem estirado por
terra apressou o passo.
— O doutor?! exclamou
apeando‑se rapidamente e todo horrorizado.
—Eu mesmo, respondeu Cirino
com voz fraca.
—Mas, quem lhe fez este dano,
santo Deus?
E correndo para o moço
ajoelhou‑se junto dele e levantou‑lhe o corpo.
—Quem foi o assassino?
—Ninguém, rouquejou o mísero,
foi... destino... Morro contente... Dê-me água .. e fale‑me de
Inocência...
—Água? exclamou Cesário com
desespero, aqui no meio do cerrado?... O córrego fica a três léguas pelo
menos...
—Ah! replicou Cirino meio
desvairado, se não há... com que estancar a sede do corpo... estanque a... da
alma... Inocência... onde esta? quero vê‑la... Diga-lhe que morri... por
causa dela...
—Mas, quem o matou? bradou o
mineiro.
—Não vale a pena dizê‑lo,
respondeu o mancebo entre gemidos. Cuide agora... só de mim... Olhe nunca fui
mau... não tenho pecados .. grandes... Acha que Deus me... há de perdoar?
— Acho, respondeu Cesário com
força ..
—Que fiz eu... na minha vida?
Talvez... enganasse os outros... dizendo que era .. médico... Mas também curei
alguns . De nada mais me recordo . . . Ah! sim . . . uma divida de honra . . .
Na minha carteira... há uns seiscentos mil‑réis; pague... trezentos ‑ao
Totó Siqueira, da vila; de... cinqüenta mil‑réis. a cada camarada...
meu... o mais... distribua.. todo... pelos pobres, sobretudo... morféticos...
depois das .. missas... que por mim... mandar... rezar... ouviu?... ouviu?
Fez o mineiro sinal que sim.
Vinha a morte desdobrando as
suas sombras no rosto de Cirino. Ia‑se‑lhe empanando o brilho dos
olhos; ficara a língua trôpega, afilara‑se‑lhe o nariz e sinistro palor
mais realçava a negra cor dos seus cabelos e barbas.
Sentara‑se Cesário no
chão para segurar com mais jeito o corpo do moribundo. Duas lágrimas vinham‑lhe
sulcando as másculas faces.
Ligeiro estremecimento
agitava o corpo de Cirino.
—Agora, acrescentou com voz
muito sumida, chegou... o meu dia... Mas... eu lhe peço... nada diga... à sua
afilhada... Não consinta... que case com... Manecão.
—Então, interrompeu Cesário,
foi ele quem?...
—Não, não, contestou Cirino,
mas... ela havia de ser... infeliz... Ouviu? Promete‑me?
—Prometo, respondeu Cesário
com firmeza. Juro até...
—Pois bem, suspirou o
agonizante, agora... agradeço a morte. Quero apegar‑me... às Santas do
Paraíso... e chamo por...
E com esforço, no último
alento, murmurou mais e mais baixo:
—Inocência!
Na tarde deste dia, o
viajante que passasse por aquele sitio poderia ver uma cova coberta de fresco,
sobre a qual se erguia uma cruz tosca feita de dois grossos paus amarrados com
cipós.
Eram mostras da caridade do
mineiro Antônio Cesário
EPÍLOGO—REAPARECE MEYER
Possuí‑te do justo
orgulho o coroem os louros de Apolo tua cabeça.
( Horácio ).
No dia 18 de agosto de 1863,
presenciava a cidade de Magdeburgo pomposo espetáculo, há muito anunciado no
mundo científico da sabia Germânia.
Era uma sessão extraordinária
e solene da Sociedade Geral Entomológica, a qual chamava a postos não só todos
os seus membros efetivos, honorários, correspondentes, como muitos convidados
de ocasião, a fim de acolher e levar ao capitólio da glória um dos seus mais
distintos filhos, um dos mais infatigáveis investigadores dos segredos da
natureza, intrépido viajante, ausente da pátria desde anos e de volta da
América Meridional, em cujas regiões centrais por tal forma se embrenhara, que
impossível havia sido seguir‑lhe o roteiro, até nos mapas e cartas
especiais do grande colecionador Simão Schropp,
Revestira‑se de mil
galas a ciência. Todos os sócios de casaca preta, gravata e luvas brancas
alguns com discursos nos bolsos, enchiam a sala das sessões muito antes da hora
marcada; a orquestra executava a sonata nº 26 de Ludwig van Beethoven, e
senhoras ostentavam toilettes ricas e de aprimorado gosto.
De repente atroou um grito:
—Vivat Meyer! Hurrah! Vivat! Hoch! Hoch!...
E, ao passo que todos os
pescoços se estiravam para ver quem entrava sacudiam‑se no ar com
entusiasmo lenços e chapéus.
Acalmada a ruidosa
manifestação, levantou‑se o presidente da Sociedade Entomológica, um
presidente magro como um espeto e ornamentado de ruiva cabeleira que lhe dava o
aspecto de um projeto de incêndio.
—Sim! exclamou ele depois de
ter bebido uns goles d'água açucarada e de haver preparado a garganta; eis
enfim, aqui, no meio de nós, o grande, o vencedor, o incomparável Guilherme
Tembel Meyer! . . .
E neste gosto falou duas
horas seguidas
No dia seguinte, traziam as gazetas de Magdeburgo
extensa relação da festa, transcreviam o discurso do presidente e, como
apêndice às notas biográficas relativas a Meyer, enumeravam os prodígios
entomológicos que havia recolhido em suas dilatadas peregrinações.
"O que há de mais digno
de admiração, dizia O Tempo (Die Zeit), em toda a imensa e preciosíssima
coleção trazida pelo Dr. Meyer das suas viagens, é sem contestação uma
borboleta, gênero completamente novo e de esplendor acima de qualquer
concepção. É a Papilo Innocentia... (Seguia‑se uma descrição de
minuciosidade perfeitamente germânica).
"O nome, acrescentava a
folha, dado pelo eminente naturalista àquele soberbo espécime foi graciosa
homenagem à beleza de uma donzela (Mädchen) dos desertos da Província de Mato
Grosso (Brasil), criatura, segundo conta o Dr. Meyer, de fascinadora formosura.
Vê‑se, pois, que também os sábios possuem coração tangível e podem por
vezes, usar da ciência como meio de demonstrar impressões sentimentais de que
muitos não os julgam suscetíveis."
* * *
Inocência, coitadinha...
Exatamente nesse dia fazia
dois anos que o seu gentil corpo fora entregue a terra, no imenso sertão de
Sant'Ana do Paranaíba, para ai dormir o sono da eternidade.