A
MORENINHA
Joaquim
Manuel de Macedo
Bravo!
exclamou Filipe, entrando e despindo a casaca, que pendurou em um cabide velho.
Bravo!... interessante cena! mas certo que desonrosa fora para casa de um estudante
de Medicina e já no sexto ano, a não valer-lhe o adágio antigo: - o hábito não
faz o monge.
-
Temos discurso!... atenção!... ordem!... gritaram a um tempo três vozes.
- Coisa célebre!
acrescentou Leopoldo. Filipe sempre se torna orador depois do jantar...
-
E dá-lhe para fazer epigramas, disse Fabrício.
-
Naturalmente, acudiu Leopoldo, que, por dono da casa, maior quinhão houvera no
cumprimento do recém-chegado; naturalmente. Bocage, quando tomava carraspana,
descompunha os médicos.
-
C’est trop fort! bocejou Augusto, espreguiçando-se no canapé em que se
achava deitado.
-
Como quiserem, continuou Filipe, pondo-se em hábitos menores; mas, por minha
vida, que a carraspana de hoje ainda me concede apreciar devidamente aqui o meu
amigo Fabrício, que talvez acaba de chegar de alguma visita diplomática,
vestido com esmero e alinho, porém, tendo a cabeça encapuzada com a vermelha e
velha carapuça do Leopoldo; este, ali escondido dentro do seu robe-de-chambre
cor de burro quando foge, e sentado em uma cadeira tão desconjuntada que, para
não cair com ela, põe em ação todas as leis de equilíbrio, que estudou em
Pouillet; acolá, enfim, o meu romântico Augusto, em ceroulas, com as fraldas à
mostra, estirado em um canapé em tão bom uso, que ainda agora mesmo fez com que
Leopoldo se lembrasse de Bocage. Oh! VV. SS. tomam café!... Ali o senhor
descansa a xícara azul em um pires de porcelana... aquele tem uma chávena com
belos lavores dourados, mas o pires é cor-de-rosa... aquele outro nem
porcelana, nem lavores, nem cor azul ou de rosa, nem xícara... nem pires...
aquilo é uma tigela num prato...
-
Carraspana!... carraspana!...
-
O’ moleque! prosseguiu Filipe, voltando-se para o corredor, traze-me café,
ainda que seja no púcaro em que o coas; pois creio que a não ser a falta de
louças, já teu senhor mo teria oferecido.
- Carraspana!...
carraspana!...
-
Sim, continuou ele, eu vejo que vocês...
-
Carraspana!... carraspana!...
-
Não sei de nós quem mostra...
-
Carraspana!... carraspana!...
Seguiram-se
alguns momentos de silêncio; ficaram os quatro estudantes assim a modo de moças
quando jogam o siso. Filipe não falava, por conhecer o propósito em que estavam
os três de lhe não deixar concluir uma só proposição, e estes, porque esperavam
vê-lo abrir a boca para gritar-lhe: carraspana!...
Enfim,
foi ainda Filipe o primeiro que falou, exclamando de repente:
-
Paz! paz!...
-
Ah! já?... disse Leopoldo, que era o mais influído.
-
Filipe é como o galego, disse um outro; perderia tudo para não guardar silêncio
uma hora.
-
Está bem, o passado, o passado; protesto não falar mais nunca na carapuça, nem
nas cadeiras, nem no canapé, nem na louça do Leopoldo... Estão no caso...
sim...
-
Hein?... olha a carraspana.
-
Basta! vamos a negócio mais sério. Onde vão vocês passar o dia de Sant’Ana?
-
Por quê?... temos patuscada?... acudiu Leopoldo.
- Minha avó chama-se
Ana.
- Ergo!...
-
Estou habilitado para convidá-los a vir passar a véspera e dia de Sant’Ana
conosco na ilha de...
- Eu vou, disse
prontamente Leopoldo.
-
E dois, acudiu Fabrício.
Augusto
só guardou silêncio.
-
E tu, Augusto?... perguntou Filipe.
-
Eu?... eu não conheço tua avó.
-
Ora, sou seu criado; também eu não a conheço, disse Fabrício.
-
Nem eu, acrescentou Leopoldo.
-
Não conhecem a avó; mas conhecem o neto, disse Filipe.
-
E demais, tornou Fabrício, palavra de honra que nenhum de nós tomará o trabalho
de lá ir por causa da velha.
-
Augusto, minha avó é a velha mais patusca do Rio de Janeiro.
- Sim?... que idade
tem?
-
Sessenta anos.
-
Está fresquinha ainda... Ora... se um de nós a enfeitiça e se faz avô de
Filipe!...
-
E ela, que possui talvez seus duzentos mil cruzados, não é assim, Filipe? Olha,
se é assim, e tua avó se lembrasse de querer casar comigo, disse Fabrício, juro
que mais depressa daria o meu “recebo a vós” aos cobres da velha, do que a
qualquer das nossas “toma-larguras” da moda.
-
Por quem são!... deixem minha avó e tratemos da patuscada. Então tu vais,
Augusto?
-
Não.
-
É uma bonita ilha.
-
Não duvido.
-
Reuniremos uma sociedade pouco numerosa, mas bem escolhida.
-
Melhor para vocês.
-
No domingo, à noite, teremos um baile.
-
Estimo que se divirtam.
-
Minhas primas vão.
- Não as conheço.
- São bonitas.
- Que me importa?...
Deixe-me. Vocês sabem o meu fraco e caem-me logo com ele: moças!... moças!...
Confesso que dou o cavaco por elas, mas as moças me têm posto velho.
-
É porque ele não conhece tuas primas, disse Fabrício.
-
Ora... o que poderão ser senão demoninhas, como são todas as outras moças
bonitas?
-
Então tuas primas são gentis?... perguntou Leopoldo a Filipe.
-
A mais velha, respondeu este, tem dezessete anos, chama-se Joana, tem cabelos
negros, belos olhos da mesma cor, e é pálida.
-
Hein?... exclamou Augusto, pondo-se de um pulo duas braças longe do canapé onde
estava deitado, então ela é pálida?...
-
A mais moça tem um ano de menos: loura, de olhos azuis, faces cor-de-rosa...
seio de alabastro... dentes...
-
Como se chama?
- Joaquina.
- Ai, meus
pecados!... disse Augusto.
-
Vejam como Augusto já está enternecido...
-
Mas, Filipe, tu já me disseste que tinhas uma irmã.
-
Sim, é uma moreninha de quatorze anos.
-
Moreninha? diabo!... exclamou outra vez Augusto, dando novo pulo.
-
Está sabido... Augusto não relaxa a patuscada.
-
É que este ano já tenho pagodeado meu quantum satis, e, assim como
vocês, também eu quero andar em dia com alguns senhores com quem nos é muito
preciso estar de contas justas no mês de novembro.
-
Mas a pálida?... a loura?... a moreninha?...
- Que interessante
terceto! exclamou com tom teatral Augusto; que coleção de belos tipos!... uma
jovem de dezessete anos, pálida... romântica e, portanto, sublime; uma outra,
loura... de olhos azuis... faces cor-de-rosa... e... não sei que mais: enfim,
clássica e por isso bela. Por último uma terceira de quatorze anos...
moreninha, que, ou seja, romântica ou clássica, prosaica ou poética, ingênua ou
misteriosa, há de, por força, ser interessante, travessa e engraçada; e por conseqüência
qualquer das três, ou todas ao mesmo tempo, muito capazes de fazer de minha
alma peteca, de meu coração pitorra!... Está tratado... não há remédio...
Filipe, vou visitar tua avó. Sim, é melhor passar os dois dias estudando
alegremente nesses três interessantes volumes da grande obra da natureza do que
gastar as horas, por exemplo, sobre um célebre Velpeau, que só ele faz por sua
conta e risco mais citações em cada página do que todos os meirinhos reunidos
fizeram, fazem e hão de fazer pelo mundo.
- Bela conseqüência!
É raciocínio o teu que faria inveja a
um caloiro, disse Fabrício.
- Bem raciocinado...
não tem dúvida, acudiu Filipe; então, conto contigo, Augusto?
- Dou-te palavra...
e mesmo porque eu devo visitar tua avó.
- Sim... já sei...
isso dirás tu a ela.
- Mas vocês não têm
reparado que Fabrício tornou-se amuado e pensativo, desde que se falou nas
primas de Filipe?...
- Disseram-me que
ele anda enrabichado com minha prima Joaninha.
- A pálida?... pois eu
já me vou dispondo a fazer meu pé-de-alferes com a loura.
- E tu, Augusto,
quererás porventura reqüestar minha irmã?...
- É possível.
- E de que gostarás
mais, da pálida, da loura ou da moreninha?...
- Creio que
gostarei, principalmente, de todas.
- Ei-lo aí com a sua
mania.
- Augusto é
incorrigível.
- Não, é romântico.
- Nem uma coisa nem
outra... é um grandíssimo velhaco.
- Não diz o que
sente.
- Não sente o que
diz.
- Faz mais do que
isso, pois diz o que não sente.
- O que quiserem...
Serei incorrigível, romântico ou velhaco, não digo o que sinto não sinto o que
digo, ou mesmo digo o que não sinto; sou, enfim, mau e perigoso e vocês
inocentes e anjinhos. Todavia, eu a ninguém escondo os sentimentos que ainda há
pouco mostrei, e em toda a parte confesso que sou volúvel, inconstante e
incapaz de amar três dias um mesmo objeto; verdade seja que nada há mais fácil
do que me ouvirem um “eu vos amo”, mas também a nenhuma pedi ainda que me desse
fé; pelo contrário, digo a todas o como sou e, se, apesar de tal, sua vaidade é
tanta que se suponham inesquecíveis, a culpa, certo, que não é minha. Eis o que
faço. E vós, meus caros amigos, que blasonais de firmeza de rochedo, vós jurais
amor eterno cem vezes por ano a cem diversas belezas... vós sois tanto ou ainda
mais inconstantes que eu!... mas entre nós há sempre uma grande diferença: -
vós enganais e eu desengano; eu digo a verdade e vós, meus senhores, mentis...
-
Está romântico!... está romântico!... exclamaram os três, rindo às gargalhadas.
- A alma que Deus me
deu, continuou Augusto, é sensível demais para reter por muito tempo uma mesma
impressão. Sou inconstante, mas sou feliz na minha inconstância, porque
apaixonando-me tantas vezes não chego nunca a amar uma vez.
- Oh!... oh!... que
horror!... que horror!...
-
Sim! esse sentimento que voto às vezes a dez jovens num só dia, às vezes, numa
mesma hora, não é amor, certamente. Por minha vida, interessantes senhores,
meus pensamentos nunca têm dama, porque sempre têm damas; eu nunca amei... eu
não amo ainda... eu não amarei jamais...
- Ah!... ah!... ah!... e como ele diz aquilo!
-
Ou, se querem, precisarei melhor o meu programa sentimental; lá vai: afirmo,
meus senhores, que meu pensamento nunca se ocupou, não se ocupa, nem se há de
ocupar de uma mesma moça quinze dias.
-
E eu afirmo que segunda-feira voltarás da ilha de... loucamente apaixonado de
alguma de minhas primas.
-
Pode bem suceder que de ambas.
-
E que todo o resto do ano letivo passarás pela rua de... duas e três vezes por
dia, somente com o fim de vê-la.
-
Assevero que não.
-
Assevero que sim.
-
Quem?... eu?... eu mesmo passar duas e três vezes por dia por uma só rua, por
causa de uma moça?... e para quê?... para vê-la lançar-me olhos de ternura, ou
sorrir-se brandamente quando eu para ela olhar, e depois fazer-me caretas ao
lhe dar as costas?... para que ela chame as vizinhas que lhe devem ajudar a
chamar-me tolo, pateta, basbaque e namorador?... Não, minhas belas senhoras da
moda! eu vos conheço... amante apaixonado quando vos vejo, esqueço-me de vós
duas horas depois de deixar-vos. Fora disto só queimarei o incenso da ironia no
altar de vossa vaidade; fingirei obedecer a vossos caprichos e somente zombarei
deles. Ah!... muitas vezes, alguma de vós, quando me ouve dizer: “sois
encantadora”, está dizendo consigo: “ele me adora”, enquanto eu digo também
comigo: “que vaidosa!”
-
Que vaidoso!... te digo eu, exclamou Filipe.
-
Ora, esta não é má!... Então vocês querem governar o meu coração?...
- Não; porém, eu torno
a afirmar que tu amarás uma de minhas primas todo o tempo que for da vontade
dela.
- Que mimos de amor
que são as primas deste senhor!...
-
Eu te mostrarei.
-
Juro que não.
-
Aposto que sim.
-
Aposto que não.
-
Papel e tinta, escreva-se a aposta.
-
Mas tu me dás muita vantagem e eu rejeitaria a menor. Tens apenas duas primas;
é um número de feiticeiras muito limitado. Não sejam só elas as únicas magas
que em teu favor invoques para me encantar. Meus sentimentos ofendem, talvez, a
vaidade de todas as belas; todas as belas, pois, tenham o direito de te fazer
ganhar a aposta, meu valente campeão do amor constante!
- Como quiseres, mas
escreve.
- E quem perder?...
- Pagará a todos nós
um almoço no Pharoux, disse Fabrício.
-
Qual almoço! acudiu Leopoldo. Pagará um camarote no primeiro drama novo que
representar o nosso João Caetano.
- Nem almoço, nem
camarote, concluiu Filipe; se perderes, escreverás a história da tua derrota, e
se ganhares, escreverei o triunfo da tua inconstância.
- Bem, escrever-se-á
um romance, e um de nós dois, o infeliz, será o autor.
Augusto escreveu
primeira, segunda e terceira vez o termo da aposta, mas depois de longa e
vigorosa discussão, em que qualquer dos quatro falou duas vezes sobre a
matéria, uma para responder e dez ou doze pela ordem; depois de se oferecerem
quinze emendas e vinte artigos aditivos, caiu tudo por grande maioria, e entre
bravos, apoiados e aplausos, foi aprovado, salva a redação, o seguinte termo:
“No dia 20 de julho
de 18... na sala parlamentar da casa n... da “rua de... sendo testemunhas os
estudantes Fabrício e Leopoldo, acordaram Filipe e Augusto, também estudantes,
que, se até o dia “20 de agosto do corrente ano o segundo acordante tiver amado
a uma “só mulher durante quinze dias ou mais, será obrigado a escrever um
“romance em que tal acontecimento confesse; e, no caso contrário, igual “pena
sofrerá o primeiro acordante. Sala parlamentar, 20 de julho de “18... Salva a
redação.”
Como testemunhas:
Fabrício e Leopoldo.
Acordantes: Filipe e
Augusto.
E eram oito horas da
noite quando se levantou a sessão.
2
Fabrício em Apuros
A
cena que se passou teve lugar numa segunda-feira. Já lá se foram quatro dias,
hoje é sexta-feira, amanhã será sábado, não um sábado como outro qualquer, mas
um sábado véspera de Sant’Ana.
São
dez horas da noite. Os sinos tocaram a recolher. Augusto está só, sentado junto
de sua mesa, tendo diante de seus olhos seis ou sete livros e papéis, pena se
toda essa série de coisas que compõem a mobília do estudante.
É
inútil descrever o quarto de um estudante. Aí nada se encontra de novo. Ao
muito acharão uma estante, onde ele guarda os seus livros, um cabide, onde
pendura a casaca, o moringue, o castiçal, a cama, uma, até duas canastras de
roupa, o chapéu, a bengala e a bacia; a mesa onde escreve e que só apresenta de
recomendável a gaveta, cheia de papéis, de cartas de família, de flores e
fitinhas misteriosas, é pouco mais ou menos assim o quarto de Augusto.
Agora
ele está só. Às sete horas, desse quarto saíram três amigos: Filipe, Leopoldo e
Fabrício. Trataram da viagem para a ilha de... no dia seguinte retiraram-se
descontentes, porque Augusto não se quis convencer de que deveria dar um ponto
na Clínica para ir com eles ao amanhecer. Augusto tinha respondido: Ora vivam!
bem basta que eu faça gazeta na aula de partos; não vou senão às dez horas do
dia.
E,
pois, despediram-se amuados. Fabrício queria ainda demorar-se e mesmo ficar com
Augusto, mas Leopoldo e Filipe o levaram consigo, à força. Fabrício fez-se
acompanhar do moleque que servia Augusto, porque, dizia ele, tinha um papel de
importância a mandar.
Eram
dez horas da noite, e nada do moleque. Augusto via-se atormentado pela fome, e
Rafael, o seu querido moleque, não aparecia... O bom Rafael, que era ao mesmo
tempo o seu cozinheiro, limpa-botas, cabeleireiro, moço de recados e... e tudo
mais que as urgências mandavam que ele fosse.
Com
justa razão, portanto, estava cuidadoso Augusto, que de momento a momento exclamava:
-
Vejam isto!... já tocou a recolher e Rafael está ainda na rua!! Se cai nas
unhas de algum beleguim, não é, decerto, o Sr. Fabrício quem há de pagar as
despesas da Casa de Correção... Pobre do Rafael! que cavaco não dará quando lhe
raparem os cabelos!
Mas
neste momento ouviu-se tropel na escada... Era Rafael, que trazia uma carta de
Fabrício, e que foi aprontar o chá, enquanto Augusto lia a carta. Ei-la aqui:
“Augusto.
Demorei o Rafael, porque era longo o que tenho de escrever-te. Melhor seria que
eu te falasse, porém, bem viste as impertinências de Filipe e Leopoldo.
Felizmente, acabam de deixar-me. Que macistas!... Principio por dizer-te que te
vou pedir um favor, do qual dependerá o meu prazer e sossego na ilha de...
Conto com a tua amizade, tanto mais que foram os teus princípios que me levaram
aos apuros em que ora me vejo. Eis o
caso.
“Tu
sabes, Augusto, que, concordando com algumas de tuas opiniões a respeito de
amor, sempre entendi que uma namorada é traste tão essencial ao estudante como
o chapéu com que se cobre ou o livro em que estuda. Concordei mesmo algumas
vezes em dar batalha a dois e três castelos a um tempo; porém tu não ignoras
que a semelhante respeito estamos discordes no mais: tu és ultra-romântico e eu
ultraclássico. O meu sistema era este:
“1º.
Não namorar moça de sobrado. Daqui tirava eu dois proveitos, a saber: não
pagava o moleque para me levar recados e dava sossegadamente, e à mercê das
trevas, meus beijos por entre os postigos das janelas.
“2º.
Não reqüestar moça endinheirada. Assim eu não ia ao teatro para vê-la, nem aos
bailes para com ela dançar, e poupava os meu cobres.
“3º.
Fingir ciúmes e ficar mal com a namorada em tempo de festas e barracas no
Campo. E por tal modo livrava-me de pagar doces, festas e outras
impertinências.
“Estas
eram as bases fundamentais do meu sistema.
“Ora,
tu te lembrarás que bradavas contra o meu proceder, como indigno da minha
categoria de estudante; e, apesar de me ajudares a comer saborosas empadas,
quitutes apimentados e finos doces, com que as belas pagavam por vezes minha
assiduidade amantética, tu exclamavas:
-
Fabrício! não convém tais amores ao jovem de letras e de espírito. O estudante
deve considerar o amor como um excitante que desperte e ateie as faculdades de
sua alma: pode mesmo amar uma moça feia e estúpida, contanto que sua imaginação
lha represente bela e espirituosa. Em amor a imaginação é tudo: é ardendo em
chamas, é elevado nas asas de seus delírios que o mancebo se faz poeta por
amor.
“Eu
então te respondia:
“-
Mas quando as chamas se apagam, e as asas dos delírios se desfazem, o poeta por
amor não tem, como eu, nem quitutes nem empadas.
“E
tu me tornavas:
“-
É porque ainda não experimentaste o que nos prepara o que se chama amor
platônico, paixão romântica! Ainda não sentiste como é belo derramar-se a alma
toda inteira de um jovem na carta abrasadora que escreve à sua adorada e
receber em troca uma alma de moça, derramada toda inteira em suas letras, que
tantas mil vezes se beija.
“Ora,
esses derramamentos de alma bastante me assustavam, porque eu me lembro que em
patologia se trata mui seriamente dos derramamentos.
“Mas
tu prosseguias:
“-
E depois, como é sublime deitar-se o estudante no solitário leito e ver-se
acompanhado pela imagem da bela que lhe vela no pensamento, ou despertar ao
momento de ver-se em sonhos sorvendo-lhe nos lábios voluptuosos beijos!
“Ainda
estes argumentos me não convenciam suficientemente, porque eu pensava: 1º. que
essa imagem que vela no pensamento não será a melhor companhia possível para um
estudante, principalmente quando ela lhe velasse na véspera de alguma sabatina;
2º. porque eu sempre acho muito mais apreciável sorver os beijos voluptuosos
por entre os postigos de uma janela, do que sorvê-los em sonhos e acordar com
água na boca. Beijos por beijos antes os reais que os sonhados.
“Além
disto no teu sistema nunca se fala em empadas, doces, petiscos, etc.; no meu
eles aparecem e tu, apesar de romântico, nunca viraste as costas nem fizeste má
cara a esses despojos de minhas batalhas.
“Mas
enfim, maldita curiosidade de rapaz!... eu quis experimentar o amor platônico,
e dirigindo-me certa noite ao teatro S. Pedro de Alcântara, disse entre mim:
esta noite hei de entabular um namoro romântico.
“Entabulei-o,
Sr. Augusto de uma figa!... entabulei-o, e quer saber como?... Saí fora do meu
elemento e espichei-me completamente. Estou em apuros.
“Eis
o caso:
“Nessa
noite fui para o superior; eu ia entabular um namoro romântico, e não podia ser
de outro modo. Para ser tudo à romântica, consegui entrar antes de todos; fui o
primeiro a sentar-me; ainda o lustre monstro não estava aceso; vi-o descer e
subir depois, brilhante de luzes; vi se irem enchendo os camarotes; finalmente
eu, que tinha estado no vácuo, achei-me no mundo: o teatro estava cheio.
Consultei com meus botões como devia principiar e concluí que para portar-me
romanticamente deveria namorar alguma moça que estivesse na quarta ordem.
Levantei os olhos, vi uma que olhava para o meu lado, e então pensei comigo
mesmo: seja aquela!... Não sei se é bonita ou feia, mas que importa? Um
romântico não cura dessas futilidades. Tirei, pois, da casaca o meu lenço
branco, para fingir que enxugava o suor, abanar-me e enfim fazer todas essas
macaquices que eu ainda ignorava que estavam condenadas pelo romantismo. Porém,
ó infortúnio!... quando de novo olhei para o camarote, a moça se tinha voltado
completamente para a tribuna; tossi, tomei tabaco, assoei-me, espirrei e a
pequena... nem caso; parecia que o negócio com ela não era. Começou a ouverture...
nada; levantou-se o pano, ela voltou os olhos para a cena, sem olhar para o meu
lado. Representou-se o primeiro ato... Tempo perdido. Veio o pano finalmente
abaixo.
“-
Agora sim, começará o nosso telégrafo a trabalhar, disse eu comigo mesmo, erguendo-me
para tornar-me mais saliente.
“Porém,
nova desgraça! Mal me tinha levantado, quando a moça ergueu-se por sua vez e
retirou-se para dentro do camarote, sem dizer por quê, nem por que não .
“-
Isto só pelo diabo!... exclamei eu involuntariamente, batendo com o pé com toda
a força.
“-
O senhor está doido?! disse-me... gemendo e fazendo uma careta horrível, o meu
companheiro da esquerda.
“-
Não tenho que lhe dar satisfações, respondi-lhe amuado.
“-
Tem, sim senhor, retorquiu-me o sujeito, empinando-se.
“-
Pois que lhe fiz eu, então? acudi, alterando-me.
“-
Acaba de pisar-me, com a maior força, no melhor calo do meu pé direito.
“-
Ó senhor... queira perdoar!...
“
E dando mil desculpas ao homem, saí para fora do teatro, pensando no meu amor.
“Confesso
que deveria ter notado que a minha paixão começava debaixo de maus auspícios,
mas a minha má fortuna ou, melhor, os teus maus conselhos me empurravam para
diante com força de gigante.
“Sem
pensar no que fazia, subi para os camarotes e fui dar comigo no corredor da
quarta ordem; passei junto do camarote de minhas atenções: era o n.º 3 (número
simbólico, cabalístico e fatal! repara que em tudo segui o romantismo). A porta
estava cerrada; fui ao fim do corredor e voltei de novo: um pensamento
esquisito e singular acabava de me brilhar na mente, abracei-me com ele.
“Eu
tinha visto junto à porta n.º 3 um moleque com todas as aparências de ser
belíssimo cravo-da-índia. Ora, lembrava-me que nesse camarote a minha
querida era a única que se achava vestida de branco e, pois, eu podia muito bem
mandar-lhe um recado pelo qual me fizesse conhecido. E, pois, avancei para o
moleque.
“Ah!
maldito crioulo... estava-lhe o todo dizendo para o que servia!... Pinta na tua
imaginação, Augusto, um crioulinho de 16 anos, todo vestido de branco, com uma
cara mais negra e mais lustrosa do que um botim envernizado, tendo dois olhos
belos, grandes, vivíssimos e cuja esclerótica era branca como o papel em que te
escrevo, com lábios grossos e de nácar, ocultando duas ordens de finos e claros
dentes, que fariam inveja a uma baiana; dá-lhe a ligeireza, a inquietação e
rapidez de movimento de um macaco e terás feito idéia desse diabo de azeviche,
que se chama Tobias.
“Não
me foi preciso chamá-lo. Bastou um movimento de olhos para que o Tobias viesse
a mim, rindo-se desavergonhadamente. Levei-o para um canto.
“-
Tu pertences àquelas senhoras que estão no camarote, a cuja porta te
encostavas?... perguntei.
“-
Sim, senhor, me respondeu ele, e elas moram na rua de... n.º... ao lado
esquerdo de quem vai para cima.
“-
E quem são?...
“-
São duas filhas de uma senhora viúva, que também aí está, e que se chama a
Ilma. Sra. D. Luísa. O meu defunto senhor era negociante e o pai de minha senhora
é padre.
“-
Como se chama a senhora que está vestida de branco?
“-
A Sra. D. Joana... tem 17 anos e morre por casar.
“-
Quem te disse isso?...
“-
Pelos olhos se conhece quem tem lombrigas, meu senhor!...
“-
Como te chamas?
“-
Tobias, escravo de meu senhor, crioulo de qualidades, fiel como um cão e vivo
como um gato.
“O
maldito do crioulo era um clássico a falar português. Eu continuei.
“-
Hás de levar um recado à Sra. D. Joana.
“-
Pronto, lesto e agudo, respondeu-me o moleque.
“-
Pois toma sentido.
“-
Não precisa dizer duas vezes.
“-
Ouve. Das duas uma: ou poderás falar com ela hoje ou só amanhã...
“-
Hoje... agora mesmo. Nestas coisas Tobias não cochila: com licença de meu senhor,
eu cá sou doutor nisto; meus parceiros me chamam orelha de cesto, pé de coelho
e boca de taramela. Vá dizendo o que quiser que em menos de dez minutos minha
senhora sabe tudo; o recado de meu senhor é uma carambola que, batendo no meu
ouvido, vai logo bater no da senhora D. Joaninha.
“-
Pois dize-lhe que o moço que se sentar na última cadeira da 4.ª coluna da
superior, que assoar-se com um lenço de seda verde, quando ela para ele olhar,
se acha loucamente apaixonado de sua beleza, etc.; etc.; etc.; etc.
“-
Sim, senhor, eu já sei o que se diz nessas ocasiões: o discurso fica por minha
conta.
“-
E amanhã, ao anoitecer, espera-me na porta de tua casa.
“-
Pronto, lesto e agudo, repetiu de novo o crioulo.
“-
Eu recompensar-te-ei, se fores fiel.
“-
Mais pronto, mais lesto e mais agudo!
“-
Por agora toma estes cobres.
“-
Ó, meu senhor! prontíssimo, lestíssimo e agudíssimo.
“Ignoro
de que meios se serviu o Tobias para executar a sua comissão. O que sei é que
antes de começar o 2.º ato já eu havia feito o sinal, e então comecei a pôr em
ação toda a mímica amantética que me lembrou: o namoro estava entabulado;
embora a moça não correspondesse aos sinais do meu telégrafo, concedendo-me
apenas amiudados e curiosos olhares, isso era já muito para quem a via pela
primeira vez.
“Finalmente,
Sr. Augusto dos meus pecados, o negócio adiantou-se, e hoje, tarde me arrependo
e não sei como me livre de semelhante entaladela, pois o Tobias não me sai da
porta. Já não tenho tempo de exercer o meu classismo; há três meses que não
como empadas e, apesar de minhas economias, ando sempre com as algibeiras a
tocar matinas. Para maior martírio a minha querida é a Sra. D. Joana, prima de
Filipe.
“Para
compreenderes bem o quanto sofro, aqui te escrevo alguma das principais exigências
da minha amada romântica.
“1.º
Devo passar por defronte de sua casa duas vezes de manhã e duas de tarde. Aqui
vês bem, principia a minha vergonha, pois não há pela vizinhança gordurento
caixeirinho que se não ria nas minhas barbas quatro vezes por dia.
“2.º
Devo escrever-lhe, pelo menos, quatro cartas por semana, em papel bordado, de
custo de 400rs. a folha. Ora, isto é detestável, porque eu não sei onde vá
buscar mais cruzados para comprar papel, nem mais asneiras para lhe escrever.
“3.º
Devo tratá-la por “minha linda prima” e ela a mim por “querido primo”. Daqui
concluo que a Sra. D. Joana leu o Faublas. Boa recomendação!...
“4.º
Devo ir ao teatro sempre que ela for, o que sucede quatro vezes no mês, o mesmo
a respeito de bailes. Esta despesa arrasa-me a mesada terrivelmente.
“5.º
Ao teatro e bailes devo levar no pescoço um lenço ou manta da cor da fita que
ela porá em seu vestido ou no cabelo, o que, com antecedência, me é
participado. Isto é um despotismo detestável!...
“Finalmente,
ela quer governar os meus cabelos, as minhas barbas, e cor dos meus lenços, a
minha casaca, a minha bengala, os botins que calço, e, por último, ordenou-me
que não fumasse charutos de Havana nem de Manilha, porque era isto falta de
patriotismo.
“Para
bem rematar o quadro das desgraças que me sobrevieram com a tal paixão
romântica que me aconselhaste, D. Joana, dir-te-ei, mostra amar-me com extremo,
e no meio de seus caprichos de menina dá-me provas do mais constante e
desvelado amor; mas que importa isso, se eu não posso pagar-lhe com
gratidão?... Vocês, com seu romantismo a que me não posso acomodar, a chamariam
“pálida”. Eu, que sou clássico em corpo e alma e que, portanto, dou às coisas o
seu verdadeiro nome, a chamarei sempre “amarela”.
“Malditos
românticos, que têm crismado tudo e trocado em seu crismar os nomes que melhor
exprimem as idéias”!... O que outrora se chamava em bom português, moça feia,
os reformadores dizem: menina simpática!... O que numa moça era, antigamente,
desenxabimento, hoje é ao contrário: sublime languidez!... Já não há mais
meninas importunas e vaidosas... As que o foram chamam-se agora
espirituosas!... A escola dos românticos reformou tudo isso, em consideração ao
belo sexo.
“E
eu, apesar dos tratos que dou à minha imaginação, não posso deixar de
convencer-me que a minha “linda prima” é, aqui para nós, amarela e feia como
uma convalescente de febres perniciosas.
“O
que, porém, se torna sobretudo insofrível é o despotismo que exerce sobre mim o
brejeiro do Tobias...
“Entende
que todos os dias lhe devo dar dinheiro e persegue-me de maneira tal que, para
ver-me livre dele, escorrego-lhe, cum quibus, a despeito da minha má
vontade.
“O
Tobias está no caso de muitos que, grandes e excelentes parladores, são
péssimos financeiros na prática. Como eles fazem ao país, faz Tobias comigo, que sempre depois de longo discurso
me apresenta um déficit e pede-me um crédito suplementar.
“Eis
aqui, meu Augusto, o lamentável estado em que me acho. Lembra-te que foram os teus conselhos que me obrigaram a
experimentar uma paixão romântica; portanto, não só por amizade, como por
dever, conto que me ajudarás no que te vou propor.
“Eu
preciso de um pretexto mais ou menos razoável para descartar-me da tal
“pálida”.
“Ela
vai passar conosco dois dias na ilha de... Aí podemos levar a efeito, e com
facilidade, o meu plano: ele é de simples compreensão e de fácil execução.
“Tu
deverás reqüestar, principalmente, à minha vista, a tal minha querida. Ainda
que ela não te corresponda, persegue-a. Não te custará muito isso, pois que é o
teu costume. Nisto se limita o teu trabalho, e começará então o meu, que é mais
importante.
“Ver-me-ás
enfadado, talvez que te trate com rispidez e que te dirija alguma graça pesada,
não farás caso e continuarás com a reqüesta para diante.
“Eu
então irei às nuvens... Desesperado, ciumento e delirante, aproveitarei o
primeiro instante em que estiver a sós com D. Joaninha, farei um discurso forte
e eloqüente contra a inconstância e volubilidade das mulheres. E no meio de meus
transportes dou-me por despeitado de meus amores com ela e, pulando fora da tal
paixão romântica, correrei a apertar-te contra meu peito, como teu amigo e
colega de coração - Fabrício.”
-
E esta!... exclamou Augusto, depondo a carta sobre a mesa e sorvendo uma boa
pitada de rapé de Lisboa. E esta!...
Acabando
de sorver a pitada, o nosso estudante desatou a rir como um doido. Rir-se-ia a
noite inteira, talvez, se não fosse interrompido pelo Rafael, que o vinha
chamar para tomar chá.
3
Manhã de Sábado
Seriam
pouco mais ou menos onze horas da manhã, quando o batelão de Augusto abordou à
ilha de... Embarcando às dez horas, ele designou ao seu palinuro o lugar a que
se destinava, e deitou-se para ler mais à vontade o Jornal do Commercio.
Soprava vento fresco e, muito antes do que supunha, Augusto ergueu-se, ouvindo
a voz de Leopoldo que o esperava na praia.
-
Bem-vindo sejas, Augusto. Não sabes o que tens perdido...
- Então... muita
gente, Leopoldo?...
- Não: pouca, mas
escolhida.
No entanto, Augusto pagou,
despediu o seu bateleiro, que se foi remando e cantando com os seus
companheiros. Leopoldo deu-lhe o braço, e, enquanto por uma bela avenida,
orlada de coqueiros, se dirigiam à elegante casa, que lhes ficava a trinta
braças do mar, o curioso estudante recém-chegado examinava o lindo quadro que a
seus olhos tinha e de que, para não ser prolixo, daremos idéia em duas
palavras. A ilha de... é tão pitoresca como pequena. A casa da avó de Filipe
ocupa exatamente o centro dela. A avenida por onde iam os estudantes a divide
em duas metades, das quais a que fica à esquerda de quem desembarca está
simetricamente coberta de belos arvoredos, estimáveis, ou pelos frutos de que
se carregam, ou pelo aspecto curioso que oferecem. A que fica à mão direita é
mais notável ainda fechada do lado do mar por uma longa fila de rochedos e no
interior da ilha por negras grades de ferro está adornada de mil flores, sempre
brilhantes e viçosas, graças à eterna primavera desta nossa boa terra de Santa
Cruz. De tudo isto se conclui que a avó de Filipe tem no lado direito de sua
casa um pomar e do esquerdo um jardim.
E fizemos muito bem
em concluir depressa, porque Filipe acaba de receber Augusto com todas as
demonstrações de sincero prazer e o faz entrar imediatamente para a sala.
Agora, outras duas palavras sobre a
casa: imagine-se uma elegante sala de cinqüenta palmos em quadro; aos lados
dela dois gabinetes proporcionalmente espaçosos, dos quais um, o do lado
esquerdo, pelos aromas que exala, espelhos que brilham, e um não sei quê, que
insinua, está dizendo que é gabinete de moças. Imagine-se mais, fazendo frente
para o mar e em toda a extensão da sala e dos gabinetes, uma varanda terminada
em arcos; no interior meia dúzia de quartos, depois uma alegre e longa sala de
jantar, com janelas e portas para o pomar e jardim, e ter-se-á feito da casa a
idéia que precisamos dar.
Pois
bem. Augusto apresentou-se. A sala estava ornada com boa dúzia de jovens
interessantes: pareceu ao estudante um jardim cheio de flores ou o céu semeado
de estrelas. Verdade seja que, entre esses orgulhos da idade presente, havia
também algumas rugosas representantes do tempo passado; porém isso ainda mais
lhe sanciona a propriedade da comparação, porque há muitas rosas murchas nos
jardins e estrelas quase obscuras no firmamento.
Filipe
apresentou o seu amigo a sua digna avó e a todas as outras pessoas que aí se
achavam. Não há remédio senão dizer alguma coisa sobre elas.
A
Sra. D. Ana, este o nome da avó de Filipe, é uma senhora de espírito e alguma instrução. Em consideração a seus
sessenta anos, ela dispensa tudo quanto se poderia dizer sobre seu físico. Em
suma, cheia de bondade e de agrado, ela recebe a todos com o sorriso nos
lábios; seu coração se pode talvez dizer o templo da amizade cujo mais nobre altar
é exclusivamente consagrado à querida neta, irmã de Filipe; e ainda mais: seu
afeto para com essa menina não se limita à doçura da amizade, vai ao ardor da
paixão. Perdendo seus pais, quando apenas contava oito anos, a inocente criança
tinha, assim como Filipe, achado no seio da melhor das avós toda a ternura de
sua extremosa mãe.
Ao
lado da Sra. D. Ana estavam duas jovens, cujos nomes se adivinharão facilmente:
uma é a pálida, a outra a loura. São as primas de Filipe.
Ambas
são bonitinhas, mas, para Augusto, D. Quinquina tem as feições mais regulares;
achou-lhe mesmo muita harmonia nos cabelos louros, olhos azuis e faces coradas,
confessando, todavia, que as negras madeixas e rosto romântico de D. Joaninha
fizeram-lhe uma brecha terrível no coração.
Além
destas, algumas outras senhoras aí estavam, valendo bem a pena de se olhar para
elas meia hora sem pestanejar. Toda a dificuldade, porém, está em pintar aquela
mocinha que acaba de sentar-se pela sexta vez, depois que Augusto entrou na
sala: é a irmã de Filipe. Que beija-flor! Há cinco minutos que Augusto entrou e
em tão curto espaço já ela sentou-se em diferentes cadeiras, desfolhou um lindo
pendão de rosas, derramou no chapéu de Leopoldo mais de duas onças
d’água-de-colônia de um vidro que estava sobre um dos aparadores, fez chorar
uma criança, deu um beliscão em Filipe e Augusto a surpreendeu fazendo-lhe
caretas: travessa, inconseqüente e às vezes engraçada; viva, curiosa e em
algumas ocasiões impertinente. O nosso estudante não pode dizer com precisão
nem o que ela é, nem o que não é: acha-a estouvada, caprichosa e mesmo feia; e
pretende tratá-la com seriedade e estudo, para nem desgostar a dona da casa,
nem se sujeitar a sofrer as impertinências e travessuras que a todo momento a
vê praticar com os outros. Enfim, para acabar de uma vez esta já longa conta
das senhoras que se achavam na sala, diremos que aí se notavam também duas
velhas amigas da dona da casa: uma, que só se entreteve, se entretém e se há de
entreter em admirar a graça e encantos
de duas filhas que consigo trouxera; e outra, que pertence ao gênero daquelas
que nas sociedades agarram num pobre homem, sentam-no ao pé de si, e, maçando-o
duas e três horas com enfadonhas e intermináveis dissertações, finalmente o
largam, supondo que lhe têm feito grande honra e dado maior prazer.
Quanto
aos homens... Não vale a pena!... vamos adiante.
Estas
observações que aqui vamos oferecendo fez também Augusto consigo mesmo, durante
o tempo que gastou em endereçar seus cumprimentos e dizer todas essas coisas
muito banais e já muito sediças, mas que se dizem sempre de parte a parte, com
obrigado sorrir nos lábios e indiferença no coração. Concluída essa verdadeira
maçada e reparando que todos tratavam de conversar, para melhor passar as horas
e esperar as do jantar, ele voltou o rosto com vistas de achar uma cadeira
desocupada junto de alguma daquelas moças; porém, ó monfina do pobre
estudante!... Ó itempestivo castigo dos seus maiores pecados!... a segunda das
duas velhas, de quem há pouco se tratou, estendeu a mão e chamou-o, mostrando
com o dedo carregado de anéis um lugar livre junto dela.
Não
havia remédio: era preciso sofrer, com olhos enxutos e o prazer na face, o
martírio que se lhe oferecia. Augusto sentou-se ao pé da Sra. D. Violante.
Ela
lançou-lhe um olhar de bondade e proteção e ele abaixou os olhos, porque os de
D. Violante são terrivelmente feios e os do estudante não se podem demorar por
muito tempo sobre espelho de tal qualidade.
- Adivinho, disse ela,
com certo ar de ironia, que lhe está pesando demais o sacrifício de perder
alguns momentos conversando com uma velha.
- Ó minha senhora!
respondeu o moço, as palavras de V. S. fazem grande injustiça a si própria e a
mim também: a mim, porque me faz bem cheio de rudeza e mau gosto; e a si,
porque, se um cego as ouvisse, certo que não faria idéia do vigor e da...
- Olhem como ele é
lisonjeiro!... exclamou a velha, batendo levemente com o leque no ombro do
estudante, e acompanhando esta ação com uma terrível olhadura, rindo-se com tão
particular estudo, que mostrava dois únicos dentes que lhe restavam.
Augusto olhou fixamente para ela
e conheceu que na verdade se havia adiantado muito. D. Violante era
horrivelmente horrenda, e com sessenta anos de idade apresentava um carão capaz
de desmamar a mais emperreada criança.
A
conversação continuou por uma boa hora; o tédio do estudante chegou a ponto de
fazê-lo arrepender-se de ter vindo à ilha de... Três vezes tentou levantar-se,
mas D. Violante sempre tinha novas coisas a dizer. Falou-lhe sobre a sua
mocidade... seus pais, seus amores, seu tempo, seu finado marido, sua
esterilidade, seus rendimentos, seu papagaio e até suas galinhas. Ah!... falou
mais que um deputado da oposição, quando se discute o voto de graças.
Finalmente parau um instante, talvez para respirar, começar novo ataque de
maçada. Augusto quis aproveitar-se da intermitência: estava desesperado e pela
quarta vez ergueu-se.
- Com licença de V.
S.
- Nada! disse a
velha, detendo-o e apertando-lhe a mão, eu ainda tenho muito que dizer-lhe.
- Muito que
dizer?... balbuciou o estudante automaticamente, deixando-se cair sobre a
cadeira, como fulminado por um raio.
- O senhor está
incomodado?... perguntou D. Violante, com toda a ingenuidade.
- Eu... eu estou às
ordens de V. S.
- Ah! vê-se que a
sua delicadeza iguala à sua bondade, continuou ela com um acento meio açucarado
e terno.
- Oh, castigo de
meus pecados!... pensou Augusto consigo; querem ver que a velha está namorada
de mim?!! e recuou sua cadeira meio palmo para longe dela.
- Não fuja...
prosseguiu D. Violante, arrastando por sua vez a cadeira até encostá-la à do
estudante, não fuja... eu quero dizer-lhe coisas que não é preciso que os
outros ouçam.
- E então? pensou de
novo Augusto, fiz ou não uma galante conquista?... E suava suores frios.
- O senhor está no
quinto ano de Medicina?...
- Sim, minha senhora.
- Já cura?
- Não, minha
senhora.
- Pois eu desejava
referir-lhe certos incômodos que sofro, para que o senhor me dissesse que
moléstia padeço e que tratamento me convém.
- Mas... minha
senhora... eu ainda não sou médico e só no caso de urgente necessidade me
atreveria...
- Eu tenho inteira
confiança no senhor; me parece que é o único capaz de acertar com a minha
enfermidade.
- Mas ali está um estudante
do sexto ano...
- Eu quero o senhor
mesmo.
- Pois, minha
senhora, eu estou pronto para ouvi-la: porém julgo que o tempo e o lugar são
poucos oportunos.
- Nada... há de ser agora mesmo.
Ah!... A boa da
velha falou e tornou a falar. Eram duas horas da tarde e ela ainda dava conta
de todos os seus costumes, de sua vida inteira; enfim, foi uma relação de
comemorativos como nunca mais ouvirá o nosso estudante. Às vezes Augusto olhava
para seus companheiros e os via alegremente praticando com as belas senhoras
que abrilhantavam a sala, enquanto ele se via obrigado a ouvir a mais
insuportável de todas as histórias. Daqui e de certos fenômenos que acusava a
macista, nasceu-lhe o desejo de tomar uma vingançazinha. Firme neste propósito,
esperou com paciência que D. Violante fizesse ponto final bem determinado a
esmagá-la com o peso do seu diagnóstico e ainda mais com o tratamento que
tencionava prescrever-lhe.
Às duas horas e meia
a oradora terminou o seu discurso, dizendo:
- Agora quero que, com
toda a sinceridade, me diga se conhece a minha enfermidade e o que devo fazer.
- Então V. S. dá-me
licença para falar com toda a sinceridade?
- Eu o exijo.
- Pois, minha
senhora, atendendo tudo quanto ouvi e principalmente a estes últimos incômodos,
que tão a miúdo sofre, e de que mais se queixa, como tonteiras, dores no
ventre, calafrios, certas dificuldades, esse peso dos lombos, etc., concluo
e todo o mundo médico concluirá comigo, que V. S. padece de...
- Diga... não tenha
medo.
- Hemorróidas
D. Violante fez-se
vermelha como um pimentão, horrível como a mais horrível das fúrias, encarou o
estudante com despeito, e, fixando nele seus tristíssimos olhos furta-cores,
perguntou:
- O que foi que
disse, senhor?...
- Hemorróidas, minha
senhora.
Ela soltou uma risada sarcástica.
- V. S. quer que lhe
prescreva o tratamento conveniente?
- Menino, respondeu
com mau humor, tome o meu conselho: outro ofício; o senhor não nasceu para
médico.
- Sinto ter
desmerecido o agrado de V. S. por tão insignificante motivo. Rogo-lhe que me
desculpe, mas eu julguei dever dizer o que entendia.
Isto dizendo, o
estudante ergueu-se; a velha já não fez o menor movimento para o demorar, e
vendo-o deixá-la, disse em tom profético:
- Este não nasceu
para Medicina!
Mas Augusto, afastando-se
de D. Violante, dava graças ao poder do seu diagnóstico e augurava muito bem de
seu futuro médico, pela grande vitória que acabava de alcançar.
- Agora, sim, disse
ele com os seus botões, vou recuperar o tempo perdido. E procurava uma cadeira,
cuja vizinhança lhe conviesse.
A digna hóspede
compreendeu perfeitamente os desejos do estudante, pois, mostrando-lhe um lugar
junto de sua neta, disse:
- Aquela menina lhe
poderá divertir alguns instantes.
- Mas, minha avó, exclamou a menina com prontidão,
até o dia de hoje ainda não me supus boneca.
- Menina!...
- Contudo, eu serei
bem feliz se puder fazer com que o senhor... senhor...
- Augusto, minha
senhora.
- ... o Sr. Augusto
passe junto a mim momentos tão agradáveis, como lhe foram as horas que gozou ao
pé da Sra. D. Violante.
Augusto gostou da
ironia, e já se dispunha a travar conversação com a menina travessa, quando
Fabrício se chegou a eles e disse a Augusto:
- Tu me deves dar
uma palavra.
- Creio que não é
preciso que seja imediatamente.
- Se a Sra. D.
Carolina o permitisse, eu estimaria falar-te já. Por mim não seja... disse a
menina erguendo-se.
- Não, minha
senhora, eu o ouvirei mais tarde, acudiu Augusto, querendo retê-la.
- Nada... não quero
que o Sr. Fabrício me olhe com maus olhos... Além de que, eu devo ir apressar o
jantar, pois leu no seu rosto que a conversação que teve com a Sra. D.
Violante, quando mais não desse, ao menos produziu-lhe muito apetite... mesmo
um apetite de... de...
- Acabe.
- De estudante.
E mal o disse, a
travessa moreninha correu para fora da sala.
4
Falta de Condescendência
Fabrício
acaba de cometer um grave erro e que para ele será de más conseqüências. Quem pede e quer ser servido, deve medir bem
o tempo, o lugar e as circunstâncias, e Fabrício não soube conhecer que o
tempo, o lugar e as circunstâncias lhe eram completamente desfavoráveis. Vai
exigir que Augusto o ajude a forjar cruel cilada contra uma jovem de dezessete
anos, cujo único delito é ter sabido amar o ingrato com exagerado extremo. Ora,
para conseguir semelhante torpeza, preciso seria que Fabrício aproveitasse um
momento de loucura, um desses instantes de capricho e de delírio em que Augusto
pensasse que ferir a fibra mais sensível e vibrante do coração da mulher, a
fibra do amor, não é um crime, não é pelo menos louca e repreensível
leviandade; é apenas perdoável e interessante divertimento de rapazes; e nessa
hora não podia Augusto raciocinar tão indignamente. Ainda quando não houvesse
nele muita generosidade, estava para desarmá-lo o poder indizível da inocência,
o poderoso magnetismo de vinte olhos belos como o planeta do dia, a influência
cativadora da formosura em botão, de beleza virgem ainda, de uma anjo, enfim,
porque é símbolo de um anjo a virgindade de uma jovem bela.
Mas
Fabrício olvidou tudo, e mal, sem dúvida, terá de sair de seu empenho com
tantas contrariedades; o tempo não lhe é propício, porque Augusto começa a
sentir todos os sintomas de apetite devorador. Ora, um rapaz, e principalmente
um estudante com fome, se aborrece de tudo, principalmente do que lhe cheira a
maçada. O lugar não menos lhe era desfavorável, porque, diante de um ranchinho
de belas moças, quem poderá tramar contra o sossego delas?... Então Augusto,
dos tais que por semelhante povo são como formiga por açúcar, macaco por
banana, criança por campainha... e ele tem razão! Por último, as circunstâncias
também contrariavam Fabrício, pois a Sra. D. Violante havia tido o poder de
esgotar toda a elástica paciência do pobre estudante, que não acharia nem mais
uma só dose homeopática desse tão necessário confortativo para despender com o
novo macista.
Fabrício
tomou, pois, o braço de Augusto e ambos saíram da sala: este com vivos sinais
de impaciência, e o primeiro com ares de quem ia tratar importante negócio.
A
inocente D. Joaninha os acompanhou com os olhos e riu-se brandamente,
encontrando os de Fabrício, que teve ainda bastante audácia para fingir um
sorriso de gratidão.
Eles
se dirigiram ao gabinete do lado direito da sala, o qual fora destinado para os
homens; e entrando, fechou Fabrício a porta sobre si, para se achar em toda a
liberdade. Enfim, estavam sós. Voltados um para o outro, guardaram alguns
momentos de silêncio. Foi Augusto quem teve de rompê-lo.
-
Então, ficamos a jogar o siso?
-
Espero a tua resposta, disse Fabrício.
-
Ainda me não perguntaste nada, respondeu o outro.
-
A minha carta?...
-
Eu a li, sim... tive a paciência de lê-la toda.
-
E então?...
-
Então o quê, homem?...
-
A resposta?...
-
Aquilo não tem resposta.
- Ora, deixa-te
disso; vamos mangar com a moça.
- Tu estás doido,
Fabrício?
- Por tua culpa,
Augusto.
- Pois então cuidas
que o amor de uma senhora deve ser peteca com que se divirtam dois
estudantes?...
- Quem é que te fala
em peteca?... Pelo contrário, o que eu quero é desgrudar-me do fatal
contrabando.
- Não; a pesar teu,
deves respeitar e cultivar nobre sentimento que te liga a D. Joaninha. Que se
diria do teu procedimento, se depois de trazeres uma moça toda cheia de amor e
fé na tua constância, por espaço de três meses, a desprezasses sem a menor
aparência de razão, sem a mais pequena desculpa?...
- Então tu, com o
teu sistema de...
- Eu desengano:
previno a todas que minhas paixões têm apenas horas de vida, e tu, como os
outros, juras amor eterno.
- Estou
desconhecendo-te, Augusto. Sempre te achei com juízo e bom conceito e agora
temo muito que estejas com princípios de alienação mental. Explica-me, por quem
és, que súbito acesso de moralidade é esse que tanto te perturba.
- Isso, Fabrício,
chama-se inspiração de bons costumes.
- Bravo! bravo! foi
muito bem respondido, mas, palavra de honra, que tenho dó te ti! Vejo que em
matéria da natureza de que tratamos estás tão atrasado como eu em fazer
sonetos. Apesar de todo o teu romantismo ou, talvez, principalmente por causa
dele, não vês o que se passa a duas polegadas do nariz. Pois meu amigo, quero
te dizer: a teoria do amor do nosso tempo aplaude e aconselha o meu
procedimento; tu verás que eu estou na regra, porque as moças têm ultimamente
tomado por mote de todos os seus apaixonados extremos ternos afetos e gratos
requebros, estes três infinitos de verbos: - iscar, pescar e casar. Ora, bem
vês que, para contrabalançar tão parlamentares e viciosas disposições, nós, os
rapazes, não podíamos deixar de inscrever por divisa em nossos escudos os
infinitos destes três outros verbos: fingir, rir e fugir. Portanto, segue-se
que estou encadernado nos axiomas da ciência.
- Com efeito!... Não
te supunha tão adiantado!
- Pois que dúvida?
Para viver-se vida boa e livre é preciso andar com o olho aberto e pé ligeiro. Então as tais sujeitinhas que,
com a facilidade e indústria com que a aranha prende a mosca na teia, são
capazes de tecer de repente, com os olhares, sorrisos, palavrinhas doces,
suspiros a tempo, medeixes aproximando-se, zelos afetados e arrufos com sal e
pimenta, uma armadilha tão emaranhada que, se o papagaio é tolo e não voa logo,
mete por força o pé no laço e adeus minhas encomendas, fica de gaiola para todo
o resto de seus dias... E, portanto, meu Augusto, deixa-te de insípidos
escrúpulos e ajuda-me a sair dos apuros em que me vejo.
- Torno a dizer-te
que estás doido, Fabrício, pois que me acreditas capaz de servir de instrumento
para um enredo... uma verdadeira traição. Então, que pensas?... Eu reqüestaria
D. Joaninha, não é assim?... Tu a deixavas, fingindo ciúmes, e depois quem me
livraria dos apertos em que necessariamente tinha de ficar?...
- Ora, isso não te
custava cinco minutos de trabalho. Tu... inconstante por índole e por sistema.
- Fabrício, deixa-te
de asneiras; já que te meteste nisso, avante! Além de que, D. Joaninha é um
peixão.
- Oh! oh! oh!... uma desenxabida...
- Que blasfêmia!
- Além disso é
impossível... não posso suportar o peso: escrever quatro cartas por semana...
Isto só! o talento que é preciso para inventar asneiras e mentiras dezesseis
vezes por mês! e depois, o Tobias...
- Puxa-lhe as
orelhas.
- Como?... se ele é
a cria de D. Joaninha, o alfenim da casa, o S. Benedito da família!...
- Não sei, meu
amigo, arranja-te como puderes.
- Lembra-te que
foste a causa principal de tudo isso.
- Quem, eu?... eu
apenas te disse que não sabias o gosto que tinha o amor à moderna.
- Pois bem, saí do
meu elemento, fui experimentar a paixão romântica... aí a tens!... a tal
paixãozinha me esgotou já paciência, juízo e dinheiro. Não a quero mais.
- Tu sempre foste um
papa-empadas.
- Sim, e há dois
meses que não sei o que é o cheiro delas. Anda, meu Augustozinho, ajuda-me!
- Não posso e não
devo.
- Vê lá o que dizes!
- Tenho dito.
- Augusto!
- Agora digo mais
que não quero.
- Olha que te hás de
arrepender!
- Esta é melhor!...
pretendes meter-me medo?...
- Eu sou capaz de
vingar-me.
- Desafio-te a isso.
- Desacredito-te na
opinião das moças.
- É um meio de
tornar-me objeto de suas atenções. Peço-te que o faças.
- Descubro e analiso
o teu sistema de iludir a todas.
- Tornar-me-ás
interessante a seus olhos.
- Direi que és um
bandoleiro.
- Melhor, elas farão
por tornar-me constante.
- Mostrarei que a
tua moral a respeito de amor é a pior possível.
- Ótimo!... elas se
esforçarão por fazê-la boa.
- Hei de, nestes
dois dias, atrapalhar-te continuamente.
- Bravo!... não
contava divertir-me tanto!
- Então tu teimas no
teu propósito?...
- Pois, se é
precisamente agora que estou vendo os bons resultados que ele me promete!
- Portanto, estes
dois dias, guerra!
- Bravíssimo, meu
Fabrício; guerra!
- Antecipo-te que
meu primeiro ataque terá lugar durante o jantar.
- Oh! por milhares
de razões, tomara eu que chegasse a hora dele!...
- Augusto, até o
jantar!
- Fabrício, até o
jantar!
Neste momento Filipe
abriu a porta do gabinete e, dirigindo-se aos dois, disse:
- Vamos jantar.
5
Jantar Conversado
Ao
escutar-se aquele aviso animador que, repetido pela boca de Filipe, tinha chegado
até ao gabinete onde conversavam Augusto e Fabrício, raios de alegria brilharam
em todos os semblantes. Cada cavalheiro deu o braço a uma senhora e, par a par,
se dirigiram para a sala de jantar. Eram, entre senhoras e homens, vinte e seis
pessoas.
Coube
a Augusto a glória de ficar entre D. Quinquina, que lhe dera a honra de aceitar
seu braço direito, e uma jovem de quinze anos, cuja cintura se podia abarcar
completamente com as mãos. Um velho alemão ficava à esquerda dela e, sem
vaidade, podia Augusto afirmar que D. Clementina prestava mais atenção a ele
que aos jagodes, que, também, a falar a verdade, por seu turno mais se
importava com o copo do que com a moça.
D.
Quinquina (como a chamam suas amigas) conversa sofrível e sentimentalmente: é
meiga, terna, pudibunda, e mostra ser muito modesta. Seu moral é belo e
lânguido como seu rosto; um apurado observador, por mais que contra ela se
dispusesse, não exitaria de classificá-la entre as sonsas. D. Clementina
pertencia, decididamente, a outro gênero: o que ela é lhe estão dizendo dois
olhos vivos e perspicazes e um sorriso que lhe está tão assíduo nos lábios,
como o copo de vinho nos do alemão. D. Clementina é um epigrama interminável;
não poupa a melhor de suas camaradas; sua vivacidade e espírito se empregam
sempre em descobrir e patentear nas outras as melhores brechas, para abatê-las
na opinião dos homens com quem pratica.
Durante
as primeiras cobertas ela dissertou maravilhosamente acerca de suas
companheiras. Maliciosa e picante, lançou sobre elas o ridículo, que manejava,
e os sorrisos de Augusto, que com destreza desafiava. As únicas que lhe haviam
escapado eram D. Quinquina, provavelmente por ficar-lhe muito vizinha, e a irmã
de Filipe, que estava defronte ou, como é moda dizer - vis-à-vis.
Augusto
quis provocar os tiros de D. Clementina contra aquela menina impertinente que
tão pouco lhe agradava.
-
E que pensa V. S. desta jovem senhora que está defronte de nós? perguntou ele
com voz baixa.
-
Quem?... a Moreninha?... respondeu ela no mesmo tom.
-
Falo da irmã de Filipe, minha senhora.
-
Sim... todas nós gostamos de chamá-la Moreninha. Essa...
-
Acabe D. Clementina, disse a irmã de Filipe, que, fingindo antes não prestar
atenção ao que conversavam os dois, acabava de fixar de repente na terrível
cronista dois olhares penetrantes e irresistíveis.
Parecia
que uma luta interessante ia ter lugar; as duas adversárias mostravam-se ambas
fortes e decididas, porém D. Clementina para logo recuou; e, como querendo não
passar por vencida, sorriu-se maliciosamente e, apontando para a Moreninha,
disse, afetando um acento gracejador:
-
Ela é travessa como o beija-flor, inocente como uma boneca, faceira como o
pavão, e curiosa como... uma mulher.
-
Sim, tornou-lhe D. Carolina. Preciso é que os ouvidos estejam bem abertos e a
atenção bem apurada, quando se está defronte de uma moça como D. Clementina,
que sempre tem coisas tão engraçadas e tão inocentes para dizer!... Oh! minha
camarada, juro-lhe que ninguém lhe iguala na habilidade de compor um mapa!
-
Mas... D. Carolina... você deu o cavaco?...
-
Oh! não, não... continuou a menina, com picante ironia; porém, é fato que
nenhuma de nós gosta de ser ofuscada com o esplendor de outra. Já basta de
brilhar, D. Clementina; o Sr. Augusto deve estar tão enfeitiçado com o seu
espírito e talento, que decerto não poderá toda esta tarde e noite olhar para
nós outras, sem compaixão ou desgosto; portanto, já basta... se não por si, ao
menos por nós.
A
cronista fez-se cor de nácar e a sua adversária, imitando-a na malícia do
sorriso e no acento gracejador, prosseguiu ainda:
-
Mas ninguém conclua daqui que, por ofuscada, perco eu o amor que tinha ao astro
que me ofuscou. Bela rosa do jardim! teus espinhos feriram a borboleta, mas nem
por isso deixarás de ser beijada por ela!...
E
assim dizendo, a Moreninha estendeu e apinhou os dedos de sua mão direita, fez
estalar um beijo no centro do belo grupo que eles formaram e, enfim, executou
com o braço um movimento, como se atirasse o beijo sobre D. Clementina.
-
Oh! disse Augusto consigo mesmo: a tal menina travessa não é tão tola como me
pareceu ainda há pouco. E desde então começou o nosso estudante a demorar seus
olhares naquele rosto que, com tanta injustiça, tachara de irregular e feio.
Prevenido contra D. Carolina, por havê-la surpreendido fazendo-lhe uma careta,
o tal Sr. Augusto, com toda a empáfia de um semidoutor, decidiu magistralmente
que a moça tinha todos os defeitos possíveis. Coitadinho... espichou-se tão
completamente, que agora mesmo já está pensando com os seus botões: ela não
será bonita!... porém feia... isso é demais!
-
Chegou muito tarde à ilha... balbuciou D. Quinquina, como quem desejava travar
conversação com Augusto.
-
Pensa deveras isso, minha senhora?!... respondeu este, pregando nela um olhar
de quem está pedindo um sim.
-
Penso... disse a moça enrubescendo.
-
Pois é precisamente agora que eu reconheço ter chegado muito tarde ou, pelo
contrário, talvez cedo demais.
-
Cedo demais?...
-
Certamente... não se chegará sempre cedo demais onde se corre algum risco?
-
Aqui, portanto...
-
Neste lugar, portanto, continuou o estudante, voltando os olhos por todas as
senhoras, e apontando depois para D. Quinquina, e aqui principalmente, floresce
e brilha o prazer, mas perde-se também a liberdade de um mancebo!
Os
dois foram interrompidos para corresponder a uma longa e interminável coleção
de brindes que o alemão principiou a desenrolar, e com tanta freqüência e tão
pouca fertilidade que só a Sra. D. Ana teve, por sua saúde, de vê-lo beber seis
vezes.
Enfim,
cedeu um pouco a tormenta, e D. Quinquina, que havia gostado do que lhe dissera
o estudante, continuou:
-
Não quis vir com seus colegas?
-
Eu gosto de andar só, minha senhora.
-
Sempre é má e triste a solidão.
-
Mas às vezes também a sociedade se torna insuportável... por exemplo, depois de
amanhã...
-
Depois de amanhã? repetiu ela, sorrindo-se; depois de amanhã o quê?
-
Minha senhora, ouvidos que escutaram acordes, sons de harpa sonora, vibrada por
ligeira mão de formosa donzela, doem-se de ouvir o toque inqualificável da
viola desafinada da rude saloia.
-
Eu não o compreendo bem...
-
Quem respirou o ar embalsamado dos jardins, o aroma das rosas, os eflúvios da
angélica, se incomoda, se exaspera ao respirar logo depois a atmosfera grave e
carregada de miasmas de um hospital.
-
Ainda o não entendi.
-
Pois juro, minha senhora, que desta vez me há de compreender perfeitamente.
Digo que, vendo eu hoje dois olhos que por sua cor e brilho se assemelham a
dois belos astros de luz, cintilando em céus do mais puro azul; que, escutando
uma voz tão doce como serão as melodias dos anjos; que, enfim, respirando junto
de alguém, cujo bafo é um perfume de delícias, depois de amanhã preferirei não
ver, não ouvir e não cheirar coisa alguma, a ver os olhos pardos e escovados
ali do meu amigo Leopoldo, a ouvir a voz de taboca rachada do meu colega Filipe
e a respirar a fumaça dos charutos de meu companheiro Fabrício.
-
Ah!... exclamou outra vez inesperadamente D. Carolina, eu creio que D.
Quinquina terá finalmente compreendido o que o Sr. Augusto tanto se empenha em
lhe explicar.
-
Minha prima, atreveu-se a dizer a ingênua, modesta, medrosa e muito sonsa D.
Quinquina; minha prima, você o teria compreendido no primeiro instante, não é
assim?...
- Certamente,
respondeu a mocinha, sem perturbar-se; o Sr. Augusto, além de falar com
habilidade e fogo, pôs em ação três sentidos; o que poderia também suceder era
que, como algumas costumam fazer, eu fingisse não compreendê-lo logo, para dar
lugar a mais vivas finezas, até que ele, de fatigado, dissesse tudo, sem
figuras e flores de eloqüência... Ora isso quase que aconteceu, porque os
olhos, os ouvidos e o nariz do Sr. Augusto hão de estar certamente cansados de
tão excessivo trabalho!...
-
Minha senhora!...
-
Por desdita dele não houve ocasião de pôr em campo um outro sentido; o gosto
ficou em inação bem contra sua vontade, não é assim, Sr. Augusto?...
-
Minha prima, todos olham para nós...
-
A respeito de tato, não direi palavra, continuou a terrível Moreninha; porque,
se as mãos do Sr. Augusto conservaram-se em justa posição, quem sabe os transes
por que passariam os pés de minha prima?... Os Srs. estão juntinhos, que com
facilidade e sem risco se podem tocar por baixo da mesa.
-
Menina! exclamou a Sra. D. Ana, com acento de repreensão.
- Minha senhora,
consinta que ela continue a gracejar, disse Augusto, meio aturdido. Além de me dar
a honra de tomar-me por objeto de seus gracejos, dá-me também o prazer de
apreciar e admirar seu espírito e agudeza.
-
Agradecida! muito agradecida! tornou o diabinho da menina, rindo-se com a
melhor vontade. Eu cá não custo tanto a compreendê-lo como minha prima; já sei
o que querem de mim os seus elogios... estou comprada, não falo mais.
Uma
risada geral aplaudiu as últimas palavras de D. Carolina; não há nada mais
natural; ela era neta da dona da casa, e, além de ser moça, é rica.
Começava
então a servir-se a sobremesa.
-
E eu, apesar de amigo e colega de Augusto, disse por fim Fabrício,
endireitando-se, não posso deixar de lastimar a Sra. D. Joaquina, pela triste
conquista que acaba de fazer.
Augusto
conheceu que lhe era dado o sinal de combate. Fabrício queria tomar vingança de
sua nenhuma condescendência, e, pois, preparou-se para sustentar a luta com
todo o esforço. E vendo que todos tinham os olhos nele, como que esperando uma
resposta, não hesitou:
-
Obrigado, disse; nem eu mesmo posso de mim formar outro conceito. Devo,
todavia, declarar que, se me fosse dado conhecer a ditosa mortal que conseguiu
ganhar os pensamentos e o coração do meu colega, certo que lhe eu daria meus
parabéns em prosa e verso, porque Fabrício é, sem contradição, a mais alegre e
apreciável conquista!
A
ironia o feriu. A interessante Moreninha lançou sobre Augusto um olhar de
aprovação e sorriu-se brandamente; gostou de o ver manejar a sua arma favorita.
Sem se explicar o porquê, também o nosso estudante teve em muita conta aquele
sorriso da menina travessa. Fabrício continuou:
-
Venha embora o ridículo, que nem por isso poder-se-á negar que para o nosso
Augusto não houve, não há, nem pode haver amor que dure mais de três dias.
Todas
as senhoras olharam para o réu daquele horrendo crime de lesa-formosura.
Augusto respondeu:
-
E o que há aí de mais engraçado é que Fabrício tem culpa disso, porque, enfim,
manda o meu destino que eu sempre tenha andado, ande, e haja de andar em
companhia dele, que, com a maior crueldade do mundo, tira-me todos os lances,
antes de três dias de amor.
Novo
olhar, novo sorriso de aprovação de D. Carolina, novo prazer de Augusto por
merecê-los.
Fabrício
torceu-se sobre a cadeira e prosseguiu:
-
Nada de fugir da questão. Poder-se-ia julgar fraqueza querer de algum modo
ocultar que, tanto em prática como em teoria, o meu colega é e se preza de ser
o protótipo da inconstância.
-
Eis o que ele não pode negar, acudiram Leopoldo e Filipe, rindo-se.
-
E para que negar, se já o nosso colega afirmou que eu me prezava de ter essa
qualidade?...
-
Misericórdia! exclamou uma das moças.
-
É possível?!... perguntou a avó de Filipe, com seriedade.
-
É absolutamente verdade, respondeu o estudante.
Lançou
depois um olhar ao derredor da mesa e todas as senhoras lhe voltaram o rosto.
D. Quinquina tinha nos lábios um triste sorriso. A Moreninha olhou-o com
espanto, durante um curto momento, mas logo depois soltou uma sofrível risada e
pareceu ocupar-se exclusivamente de uma fatia de pudim.
Reinou
silêncio por alguns instantes: Fabrício parecia vitorioso; Augusto estava como
em isolamento, as senhoras olhavam para ele com receio, mostravam temer
encontrar seus olhos; dir-se-ia que receavam que de uma troca de olhares
nascesse para logo o sentimento que as devesse tornar desgraçadas. Desde as
fatais palavras de Fabrício, Augusto era naquela mesa o que costumava ser um
leproso na Idade Média: - o homem perigoso, cujo contato podia fazer a desgraça
de outro.
Fabrício
compreendeu em quão triste situação estava o seu adversário, e, inexperiente,
se havia deixá-lo debatendo-se em sua má posição, quis ainda mais piorá-la, e
foi, talvez, arrancá-lo dela. Fabrício, pois, fala; as senhoras embebem nele
seus olhos e o aplaudem, enquanto Augusto, servindo-se de um prato de grosso
melado, afeta prestar pouca atenção ao seu acusador.
- Sim, minhas
senhoras, é um jovem inconstante, acessível a toda as belezas, repudiando-as ao
mesmo tempo para correr atrás de outra, que será logo deixada pela vista de uma
nova, como se ele fosse a inércia da matéria, que conserva uma impressão, mas
que não a guarda senão o tempo que é gasto para um novo agente modificá-la!
-
Muito bem! muito bem! disseram algumas vozes.
-
Seu coração é pétrica abóbada de teatro, que não entende o dizer de Auber,
quando soluça à flauta ternos sons de músico discurso, pois aquela muda
superfície reflete a todos e a todos esquece com estúpida indiferença!...
-
Bravo!... Fabrício está hoje romântico! exclamou Leopoldo, apontando
maliciosamente para uma garrafa que se achava defronte do orador, e quase de
todo esgotada.
- Apoiadíssimo!...
murmurou Augusto, apontando também para a garrafa.
- Mas ele deverá
viver de lágrimas, suspiros e ânsias de condenado... concluiu Fabrício.
-
Bravo!... muito bem!... bravo!...
-
Peço a palavra para responder! exclamou Augusto.
-
Tem a palavra, mas nada de maçada!
-
Duas palavras, minhas senhoras, só duas palavras.
-
Sim, defenda-se, defenda-se.
-
Defender-me?... certo que o não farei; poderia, ao contrário, acusar, mas também
não quero; julgo apenas oportuno dar algumas explicações. Minhas senhoras,
debaixo de certo ponto de vista o meu colega Fabrício disse a verdade, porque
eu sou, com efeito, o mais inconstante dos homens em negócio de amor.
-
Ainda repete?!
- Mas também quem me
conhece bastante conclui que, por fim de contas, não há amante algum mais firme
do que eu.
-
O senhor está compondo enigmas.
-
Não o interrompam, deixem-no apresentar o seu programa amoroso.
-
Sim, minhas senhoras, continuou Augusto; vamos ao desenvolvimento da primeira
proposição.
-
Ouçam! ouçam!
-
A minha
inconstância é natural, justa e, sem dúvida, estimável. Eu vejo uma senhora
bela, amo-a não porque ela é senhora... mas porque é bela; logo, eu amo a
beleza. Ora, este atributo não foi exclusivamente dado a uma só senhora, e
quando o encontro em outra, fora injustiça que eu desprezasse nesta aquilo
mesmo que tanto amei na primeira.
-
Bravo!... viva o raciocínio!
-
Mais ainda. Todo o mundo sabe que não há quem nasça perfeito. Suponhamos que eu
estou na agradável companhia de três jovens; todas são lindas; mas a primeira
vence a segunda na delicadeza do talhe, esta supera aquela na ternura do olhar
e na graça dos sorrisos, e a terceira, enfim, ganha as duas na sublime harmonia
de umas bastas madeixas negras, coroando um rosto romanticamente pálido; ora,
bem se vê que seria cometer a mais detestável injustiça se eu, por amar a
delicadeza do talhe da primeira, me esquecesse das ternuras dos olhares e da
graça dos sorrisos da segunda, assim como das bastas madeixas negras e do rosto
romanticamente pálido da última.
-
Muito bem, Augusto,
exclamou Filipe. Estou achando um não sei quê tão aproveitável no teu sistema,
que me vejo em termos de segui-lo.
- Eis aqui, pois, por que sou
inconstante, minhas senhoras; é o respeito que tributo ao merecimento de todas,
é talvez o excesso a que levo as considerações que julgo devidas ao sexo
amável, que me faz ser volúvel. Agora eu entro na segunda parte da minha
explicação.
-
Atenção!... ele vai provar que é constante!...
- Antes que ninguém,
minhas senhoras, eu repreendi o meu coração pela sua volubilidade; mas vendo
que era vão trabalho querer extinguir por tal meio uma disposição que a
natureza nele plantara, pretendi primeiro achar na mesma natureza um corretivo
que o fizesse; procurei uma jovem bem encantadora para me lançar em cativeiro
eterno, mas debalde o fiz, porque eu sou tão sensível ao poder da formosura,
que sempre me sucedia esquecer a bela de ontem pela que via hoje, a qual, pela
mesma razão, era esquecida depois. Quantas vezes, minhas senhoras, nos meus
passeios da tarde, eu olvidei o amor da manhã desse mesmo dia por outro amor,
que se extinguiu no baile dessa mesma noite!...
-
É exageração! disse uma senhora.
-
É exatamente assim, acudiu Fabrício.
-
Que folha d’alho!... exclamou D. Quinquina.
-
Então, minhas senhoras, prosseguiu Augusto, eu entendi que devia recorrer a mim
próprio para tornar-me constante. Consegui-o. Sou firme amante de um objeto...
mas de um só objeto que não tem existência real, que não vive.
-
Como é isto!... então a quem ama?
-
A sua sombra, como Narciso?...
-
A boneca que se vê na vidraça do Desmarais?...
- Ao cupido de
Praxiteles, como Aquídias de Rodes?
- Alguma estátua da Academia das
Belas-Artes?...
- Nada disso.
- Então a quem?
- A todas as
senhoras, resumidas num só ente ideal. À custa dos belos olhos de uma, das
lindas madeixas de outra, do colo de alabastro desta, do talhe elegante
daquela, eu formei o meu belo ideal, a quem tributo o amor mais constante.
Reúno o que de melhor está repartido e faço mais ainda: aperfeiçôo a minha obra
todos os dias. Por exemplo, retirando-me desta ilha, eu creio que vestirei o
meu belo ideal de novas formas!
- Viva o
cumprimento!...
- Foi assim, minhas
senhoras, que eu me pude tornar constante e, graças a meu proveitoso sistema,
posso amar a todas as senhoras a um tempo sem ser infiel a nenhuma. Disse.
- Muito bem!...
muito bem!...
- Augusto
desempenhou-se.
O
champagne estourava naquele momento. Leopoldo tomou a palavra pela
ordem.
-
Eu vou, exclamou, propor um belo meio de terminar esta discussão, convidando a
todos os senhores para um brinde, no qual Augusto, por castigo de sua
inconstância, nos não poderá acompanhar. Não é novo que mancebos bebam, no meio
dos prazeres de um festim, um copo de vinho depois de pronunciar o nome daquela
que é dama de seus pensamentos: aqui não estamos só mancebos e, pois, não faremos
tanto; pronunciaremos, contudo, a inicial do primeiro nome.
-
Sim! sim! disse Filipe, Augusto não beberá conosco...
- Não, maninho,
acudiu a interessante Moreninha, ele há de beber também.
- Ah, minha senhora!
no beber um copo de champagne não está a dúvida; a dificuldade toda é
poder, entre tantos nomes, escolher o mais amado. Acode-me tal número dos que
têm tocado o superlativo do amor...
- M... disse
Leopoldo, esvaziando seu copo.
- C... pronunciou
Filipe, olhando para D. Clementina.
- J... balbuciou Fabrício,
exasperado com um acesso de tosse que atacara Augusto.
Os outros mancebos
pronunciaram suas letras; só o inconstante faltava.
- Eis! ânimo, Sr.
Augusto, disse D. Carolina.
- Mas que letra,
minha senhora?... se eles me dessem licença, eu faria o enorme sacrifício de
reduzir as que me lembram ao diminuto número de vinte e três.
- Nada! nada! nesta
saúde não entra o número plural.
- Pois bem, Sr.
Augusto, continuou a menina, uma coleção não deixa de ser singular; beba o seu
copo de champagne ao alfabeto inteiro!
- Sim, minha
senhora, ao alfabeto inteiro!
Meia hora depois levantaram-se da
mesa. Leopoldo aproximou-se de Augusto.
- Então que dizes,
Augusto?...
- Que passaremos a
mais agradável noite.
- E quem ganhará a
aposta?
- Eu.
- De quais destas
meninas estás mais apaixonado,...
- Estou na minha
regra, mas hoje tenho-me apaixonado só de três, principalmente.
- E o que pensas da
irmã de Filipe?
- A melhor resposta
que te posso dar, é... não sei... porque, ao meio-dia, a julgava travessa,
importuna e feia, mas era-me completamente indiferente...
- À uma hora?...
- Eu a supus
estouvada e desagradável.
- Às duas horas?...
- Má, e desejava
vê-la longe de mim.
- Durante o
jantar?...
- Fui achando-lhe
algum espírito e acusei-me por havê-la julgado feia.
- E agora?
- Parece que me
sinto muito inclinado a declará-la engraçada e bonitinha.
- E daqui a pouco?
- Eu te direi...
6
Augusto com seus Amores
Poucos momentos depois da cena
antecedente, a sala de jantar ficou entregue unicamente ao insaciável Keblerc,
que entendeu, não sabemos se mal ou bem, que era muito mais proveitoso ficar
fazendo honras a meia dúzia de garrafas de belo vinho do que acompanhar as
moças, que se foram deslizar pelo jardim. Outro tanto não fizeram os rapazes,
que de perto as acompanharam, assim como pais, maridos e irmãos, todos animados
e cheios de prazer e harmonia, dispostos a acabar o dia e entrar pela noite com
gosto.
Mas
dissemos que não sabíamos se Keblerc havia feito bem ou mal em não imitar os
outros. Sem dúvida já fomos condenados por homem de mau gosto, cumpre-nos dar
algumas razões. Entendemos, cá para nós, que por diversos caminhos vão, tanto o
alemão como os rapazes, a um mesmo fim. Em resultado, esgotadas as garrafas e
terminado o passeio, haverá mona, não só na sala do jantar, mas também no
jardim; a diferença é que uma será mona de vinho e a outra de amor. Esta última
costuma sempre ser mais perigosa. Pela nossa parte confessamos que não há
cachaça que embebede mais depressa do que uma que se bebe nos olhos travessos
de certas pessoas.
Passeava-se.
Cada cavalheiro dava o braço a uma senhora, e, divagando-se assim pelo jardim,
o dicionário das flores era lembrado a todo o momento. Menina havia que, apenas
algum lhe dizia, apontando para a flor:
-
Acácia!
-
Sonhei com você! respondia logo.
-
Amor-perfeito!
-
Existo para ti só! tornava imediatamente.
E
o mesmo fazia a respeito de todas as flores que lhe mostravam. Era uma doutora
de borla e capelo em todas as ciências amatórias; e esta menina era, nem mais
nem menos, aquela lânguida e sonsinha D. Quinquina. Fiai-vos nas sonsas!
Um
moço e uma moça, porém, andavam, como se costuma dizer, solteiros; cem vezes
dela se aproximava o sujeito, mas a bela, quando mais perto o via, saltava,
corria, voava como um beija-flor, como uma abelha ou, melhor, como uma
doudinha. Eram eles D. Carolina e Augusto.
Augusto
passeava só, contra a vontade; D. Carolina, por assim o querer.
Augusto
viu de repente todos os braços engajados. Duas senhoras, a quem se
dirigiu, fingiram não ouvi-lo, ou se desculparam. O inconstante não lhes fazia
conta, ou, antes, queriam, tornando-se difíceis, vê-lo reqüestando-as; porque,
desde o programa de Augusto, cada uma delas entendeu lá consigo que seria
grande glória para qualquer, o prender com inquebráveis cadeias aquele capoeira
do amor, e que o melhor meio de o conseguir era fingir desprezá-lo e mostrar
não fazer conta com ele. Exatamente intentavam batê-lo por meio dessa tática poderosa,
com que quase sempre se triunfa da mulher, isto é , pouco a pouco.
D.
Carolina, pelo contrário, havia rejeitado dez braços. Queria passear só. Um
braço era uma prisão e a engraçada Moreninha gosta, sobretudo, da liberdade.
Ela quer correr, saltar e entender com as outras; agora adiante de todos, e
daqui a pouco ser a última no passeio: viva, com seus olhos sempre brilhantes,
ágil, com seu pezinho sempre pronto para a carreira; inocente para não se
envergonhar de suas travessuras e criada com mimo demais para prestar atenção
aos conselhos de seu irmão, ela está em toda a parte, vê, observa tudo e de
tudo tira partido para rir-se: em contínua hostilidade com todas aquelas que
passeavam com moços, de cada vista d’olhos, de cada suspiro, de cada palavra,
de cada ação que percebia tirava motivo para seus epigramas; e, inimigo
invencível, porque não tinha travo por onde fosse atacado, era por isso temido
e acariciado. Deixemo-la, pois, correr e saltar, aparecer e desaparecer ao
mesmo tempo; nem à nossa pena é dado o poder acompanhá-la, que ela é tão rápida
como o pensamento.
Finalmente,
o pobre Augusto encontrou uma senhora que teve piedade dele. Estão afastados do
resto da companhia; conversa. Vamos ouvi-los:
- Com efeito, disse
a Sra. D. Ana, devo confessar que me espantei ouvindo-o sustentar com tão vivo
fogo a inconstância no amor.
-
Mas, minha senhora, não sei por que se quer espantar!... é uma opinião.
- Um erro,
senhor!... ou, melhor ainda, um sistema perigoso e capaz de produzir grandes
males.
- Eis o que também
me espanta!
- Não senhor, nada
há aqui que exagerado seja; rogo-lhe que por um instante pense comigo: se o seu
sistema é bom, deve ser seguido por todos; e se assim acontecesse, onde iríamos
assentar o sossego das famílias, a paz dos esposos, se lhes faltava a sua base
- a constância?...
Augusto guardou
silêncio e ela continuou:
- Eu devo crer que o
Sr. Augusto pensa de maneira absolutamente diversa daquela pela qual se
explicou; consinta que lhe diga: no seu pretendido sistema, o que há é muita
velhacaria; finge não se curvar por muito tempo diante de beleza alguma, para
plantar no amor-próprio das moças o desejo de triunfar de sua inconstância.
- Não, minha
senhora, o único partido que eu procuro e tenho conseguido tirar é o sossego
que há algum tempo gozo.
- Como?
- É uma história
muito longa, mas que eu resumirei em poucas palavras. Com efeito, não sou tal
qual me pintei durante o jantar. Não tenho a louca mania de amar um belo ideal,
como pretendi fazer crer; porém, o certo é que eu sou e quero ser inconstante
com todas e conservar-me firme no amor de uma só.
- Então o senhor já
ama?
- Julgo que sim.
- A uma moça?
- Pois então a quem?
- Sem dúvida
bela!...
- Creio que deve
ser.
- Pois o senhor não
sabe?...
- Juro que não.
- O seu semblante?
- Não me lembro
dele.
- Mora na Corte?...
- Ignoro-o.
- Vê-a muitas vezes?
- Nunca.
- Como se chama?...
- Desejo muito
sabê-lo.
- Que mistério!...
- Eu devo mostrar-me
grato à bondade com que tenho sido tratado, satisfazendo a curiosidade que vejo
muito avivada no seu rosto; e pois, a senhora vai ouvir o que ainda não ouviu
nenhum dos meus amigos, o que eu não lhes diria, porque eles provavelmente
rir-se-iam de mim. Se deseja saber o mais interessante episódio da minha vida,
entremos nesta gruta, onde praticaremos livres de testemunhas e mais em
liberdade.
Eles entraram.
Era uma gruta pouco espaçosa e
cavada na base de um rochedo que dominava o mar. Entrava-se por uma abertura
alta e larga, como qualquer porta ordinária. Ao lado direito havia um banco de
relva, em que poderiam sentar-se a gosto três pessoas; no fundo via-se uma
pequena bacia de pedra, onde caía, gota a gota, límpida e fresca água que do
alto do rochedo se destilava; preso por uma corrente à bacia de pedra estava um
copo de prata, para servir a quem quisesse provar da boa água do rochedo.
Foi este lugar
escolhido por Augusto para fazer suas revelações à digna hóspeda.
O estudante, depois
de certificar-se de que toda a companhia estava longe, veio sentar-se junto da
Sra. D. Ana, no banco de relva, e começou a história dos seus amores.
7
Os Dois Breves, Branco e Verde
Negócios
importantes, minha senhora, tinham obrigado meu pai a deixar sua fazenda e a
vir passar alguns meses na Corte; eu o acompanhei, assim como toda a nossa
família. Isto foi há sete anos, e nessa época houve um dia... mas que importa o
dia?... eu o poderia dizer já; o dia, o lugar, a hora, tudo está presente à
minha alma, como se fora sucedido ontem o acontecimento que vou ter a honra de
relatar; é uma loucura a minha mania... embora... Foi, pois, há sete anos, e
tinha eu então treze de idade que, brincando em uma das belas praias do Rio de
Janeiro, vi uma menina que não poderia ter ainda oito.
Figure-se
a mais bonita criança do mundo, com um vivo, agradável e alegre semblante, com
cabelos negros e anelados voando ao derredor de seu pescoço, com o fogo do céu
nos olhos, com o sorrir dos anjos nos lábios, com a graça divina em toda ela, e
far-se-á ainda uma idéia incompleta dessa menina.
Ela
estava à borda do mar e seu rosto voltado para ele; aproximei-me devagarinho.
Uma criança viva e espirituosa, quando está quieta, é porque imagina novas
travessuras ou combina os meios para executar alguma a que se põe obstáculos;
eu sabia isto por experiência própria, e cheguei-me, pois, para saber em que
pensava a menina; a pequena distância dela parei, porque já tinha adivinhado
seu pensamento.
Na
praia estava deposta uma concha, mas tão perto do mar, que quem a quisesse tomar
e não fosse ligeiro e experiente, se expunha a ser apanhado pelas ondas, que
rebentavam com força, então.
Eu
vi a travessa menina hesitar longo tempo entre o desejo de possuir a concha e o
receio de ser molhada pelas vagas; depois pareceu haver tomado uma resolução: o
capricho de criança tinha vencido. Com suas lindas mãozinhas arregaçou o
vestido até aos joelhos, e quando a onda recuou, ela fez um movimento, mas
ficou ainda no mesmo lugar, inclinada para diante e na ponta dos pés; segunda,
terceira, quarta, quinta onda, e sempre a mesma cena de ataque e receio do
inimigo. Finalmente, ao refluxo da sexta, ela precipitou-se sobre a concha, mas
a areia escorregou debaixo de seus pés; e a interessante menina caiu na praia,
sem risco e com graça; erguendo-se logo e espantada ao ver perto de si a nova
onda, que dessa vez vinha mansa e fraca como respeitosa, correu para trás e sem
pensar atirou-se nos meus braços, exclamando:
-
Ah!... eu ia morrer afogada!...
Depois,
vendo-se com o vestido cheio de areia, começou a rir-se muito, sacudindo-o e
dizendo ao mesmo tempo:
-
Eu caí! eu caí!...
E
como se não bastasse esta passagem rápida do susto para o prazer, ela olhou de
novo para o mar, e tornando-se levemente melancólica, balbuciou com voz
pesarosa, apontando para a concha.
-
Mas... a minha concha!...
Ouvindo a sua voz
harmoniosa e vibrante, eu não quis saber de fluxos nem refluxos de ondas; corri
para elas com entusiasmo e, radiante de prazer e felicidade, apresentei-me à
linda menina, embora um pouco molhado mas trazendo a concha desejada.
Este
acontecimento fez-nos logo camaradas. Corremos a brincar juntos com toda essa
confiança infantil que só pode nascer da inocência, e que ainda em parte se
dava em mim, posto que já a esse tempo fosse eu um pouco velhaquete e sonso,
como um estudante de latim que era, e que por tal já procurava minhas
blasfêmias no dicionário.
É
sempre digno de observar-se esta tendência que têm as calças para o vestido...
Desde a mais nova idade e no mais inocente brinquedo aparece o tal mútuo pendor
dos sexos... e de mistura umas vergonhas muito engraçadas...
Eu
cá sempre fui assim; quando brincava o tempo-será, por exemplo, sempre
preferia esconder-me atrás das portas com a menos bonita de minhas primas, do
que com o mais formoso de meus amigos da infância.
Mas,
como ia dizendo, nós brincamos juntos, corríamos e caíamos na areia, e depois
ríamos ambos de nós mesmos. Tínhamos esquecido todo o mundo, e pensávamos
somente em nos divertir, como os melhores amigos.
Depois
de uma agradável hora passada em mil diversas travessuras, que nossa imaginação
e inconstância de meninos modificava e inventava a cada momento, a minha
interessante camarada voltou-se de repente para mim, e perguntou:
-
Sou bonita, ou feia?...
Eu
quis responder-lhe mil coisas... corei... e finalmente murmurei tremendo:
-
Tão bonita!...
-
Pois então, tornou-me ela, quando formos grandes, havemos de nos casar, sim?
-
Oh!... pois bem!...
-
Havemos, continuou o lindo anjinho de sete anos, eu o quero... Olhe, o meu primo
Juca me queria também, mas ainda ontem me quebrou a minha mais bonita boneca...
Ora, o marido não deve quebrar as bonecas de sua mulher!... Eu quero, pois, me
casar com o senhor, que há de apanhar bonitas conchinhas para mim... Além disso
ele não tem como o senhor os cabelos louros nem a cor rosada...
-
Porém, eu gosto mais dos cabelos pretos...
-
Melhor!... melhor!... exclamou a menina, saltando de prazer. Olhe: os meus são
pretos!
E
nisto ela puxou com a sua pequena mãozinha um de seus belos anéis de madeixa,
para mostrar-mo, e largando-o depois, eu vi cair outra vez em seu pescoço, de
novo torcido como um caracol.
Ainda
corremos mais e continuamos a brincar juntos; e, sem o pensar, nós nos
esquecemos de procurar saber os nossos verdadeiros nomes, porque nos bastavam
esses com que já nos tratávamos, de: meu marido, minha mulher!
A
viveza, a graça e o espírito da encantadora menina tinham feito desaparecer meu
natural acanhamento, nós estávamos como dois antigos camaradas, quando fomos
interrompidos em nossas travessuras por um outro menino que para nós corria
chorando.
-
O que tem?... perguntamos ambos.
-
É meu pai que morre! exclamou ele, apontando para uma velha casinha que
avistamos algumas braças distante de nós.
Ficamos
um momento tristemente surpreendidos; depois, como dominados pelo mesmo
pensamento, ela e eu dissemos a um tempo:
-
Vamos lá.
E
corremos para a pequena casa.
Entramos.
Era um quadro de dor e luto que tínhamos ido ver. Uma pobre velha e três meninos
mal vestidos e magros cercavam o leito em que jazia moribundo um ancião de
cinqüenta anos, pouco mais ou menos. Pelo que agora posso concluir, uma síncope
havia causado todo o movimento, pranto e desolação que observamos. Quando
chegamos ao pé de seu leito, ele tornava a si.
-
Ainda não morri, balbuciou, olhando com ternura para seus filhos, e deixando
cair dos olhos grossas lágrimas. Depois, deparando conosco, continuou:
-
Quem são estes dois meninos?...
Ninguém
lhe respondeu, porque todos choravam, sem excetuar a minha bela camarada e eu.
-
Não chorem ao pé de mim, exclamou o velho, sufocado em pranto, e escondendo o
rosto entre as mãos, enquanto seus três filhos e o quarto, que tínhamos há
pouco visto fora, se atiravam sobre ele, no excesso da maior, da mais nobre e
da mais sublime das dores.
A
minha camarada dirigiu-se então à velha.
-
O que tem então ele?... perguntou com viva demonstração de interesse.
-
Ó, meus meninos, respondeu a aflita velha, ele sofre uma enfermidade cruel, mas
que poderia não ser mortal... porém é pobre!... e morre mais depressa pelo
pesar de deixar seus filhos expostos à fome!... morre de miséria!... morre de
fome!...
-
Fome! exclamamos com espanto; fome! pois também morre-se de fome?...
E
instintivamente a minha interessante companheira tirou do bolso do seu avental
uma moeda de ouro e, dando-a à velha, disse:
-
Foi meu padrinho que ma deu hoje de manhã... eu não preciso dela... não tenho
fome.
E
eu tirei de meu bolso uma nota, não me lembro de que valor e por minha vez a
entreguei, dizendo:
-
Foi minha mãe que ma deu e ela me dá também um abraço, sempre que faço esmola
aos pobres.
Não
é possível descrever o que se passou então naquela miserável choupana. Minha
linda mulher e eu tivemos de ser abraçados mil vezes, de ver de joelhos a
nossos pés a velha e os meninos... O ancião forcejava por falar há muito
tempo... Dava com as mãos, chamando-nos... Finalmente nós nos aproximamos dele,
que nos apertou com entusiasmo contra o coração.
-
Quem sois? pôde, enfim, dizer; quem sois?
-
Duas crianças, foi a menina que respondeu.
-
Dois anjos, tornou o velho. E quem é este menino?...
-
É o meu camarada, disse ainda ela.
-
Vosso irmão?...
-
Não senhor, meu... marido.
-
Marido?
-
Sim, eu quero que ele seja meu marido.
-
Deus realize vossos desejos!..
Acabando
de pronunciar estas palavras, o ancião guardou silêncio por alguns instantes...
bebeu com sofreguidão um púcaro cheio d’água e, olhando de novo para nós, e
tendo no rosto um ar de inspiração e em suas palavras um acento profético,
exclamou:
-
Seja dado ao homem agonizante lançar seus últimos pensamentos do leito da
morte, além dos anos, que já não serão para ele, e penetrar com seus olhares
através do véu do futuro!... Meus filhos! amai-vos, e amai-vos muito! A virtude
se deve ajuntar, assim como o vício se procura; sim, amai-vos. Eu não vos
iludo... vejo lá... bem longe... a promessa realizada! São dois anjos que se
unem... vede!... os meninos que entraram na casa do miserável, que enxugaram o
pranto e mataram a fome da indigência, são abençoados por Deus e unidos em nome
d’Ele!... Meus filhos, eu vos vejo casados lá no futuro!...
-
Oh!... eis aí outra vez o delírio!... disse a velha vendo a exaltação e o
semblante afogueado do enfermo.
-
Não, minha mãe, continuou ele, não! não é delírio... Pois o quê!... não pode o
Eterno abençoar a virtude pela minha boca?... Ó meus meninos! Deus paga sempre
a esmola que se dá ao pobre!... ainda uma vez... lá no futuro... vós o
sentireis.
Nós
estávamos espantados; o rosto do ancião se havia tornado rubro, seus olhos
flamejantes... Seus lábios tremiam convulsivamente, sua mão rugosa tinha três
vezes nos abençoado.
Escutando
suas palavras, eu acreditei que estávamos ouvindo uma profecia infalivelmente
realizável, pronunciada por um inspirado do Senhor.
Não
parou aí a nossa admiração. O doente, cujas forças pareciam haver reaparecido
subitamente, apoiando-se sobre um dos cotovelos, abriu a gaveta de uma mesa,
que estava junto de seu leito, e tirando de uma pequena e antiga caixa dois
breves, os deu à velha, dizendo:
-
Minha mãe, descosa esses dois breves.
A
velha, obedecendo pontualmente, os descoseu com prontidão. Os breves eram dois:
um verde e outro branco.
Depois
o ancião, voltando-se para mim, disse:
-
Menino! que trazeis convosco que possais oferecer a esta menina?...
Eu
corri com os olhos tudo que em mim havia e só achei, para entregar ao admirável
homem que me falava, um lindo alfinete de camafeu, que meu pai me tinha dado
para trazer ao peito e, maquinalmente, pus-lhe nas mãos o meu camafeu.
O
velho quebrou o pé do alfinete e dando-o a sua mãe, acrescentou:
·
Minha
mãe, cosa dentro do breve branco este camafeu.
E voltando-se para
minha bela camarada, continuou:
- Menina! que
trazeis convosco que possais oferecer a este menino?...
A menina, atilada e
viva, como que já esperando tal pergunta, entregou-lhe um botão de esmeralda
que trazia em sua camisinha.
O velho o deu à sua mãe, dizendo:
- Minha mãe, cosa
esta esmeralda dentro do breve verde.
Quando as ordens do
ancião foram completamente executadas, ele tomou os dois breves e, dando-me o
de cor branca, disse-me:
- Tomais este breve, cuja cor
exprime a candura da alma daquela menina. Ele contém o vosso camafeu: se tendes
bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho,
a fim de que ela o guarde com desvelo.
Eu mal compreendi o
que o velho queria: ainda maquinalmente entreguei o breve à linda menina, que o
prendeu no cordão de ouro que trazia ao pescoço.
Chegou a vez dela. O nosso homem
deu-lhe o outro breve, dizendo:
- Tomai este breve,
cuja cor exprime as esperanças do coração daquele menino. Ele contém a vossa
esmeralda: se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre
aquele bom anjo, dai-lho, a fim de que ele o guarde com desvelo.
Minha bela mulher executou a
insinuação do velho com prontidão, e eu prendi o breve ao meu pescoço com uma
fita que me deram.
Quando tudo isto
estava feito, o velho prosseguiu ainda:
- Ide, meus meninos;
crescei e sede felizes! vós olhastes para mim, pobre e miserável, e Deus olhará
para vós... Ah! recebei a bênção de um moribundo! recebi-a e saí para não vê-lo
expirar...
Isto dizendo,
apertou nossas mãos com força, eu senti, então, que o velho ardia; senti que
seu bafo era como vapor de água fervendo, que sua mão era uma brasa que
queimava... Sinto ainda sobre meus dedos o calor abrasador dos seus e agora
compreendo que, com efeito, ele delirava quando assim praticou com duas
crianças.
Enfim, nós deixamos
aquela morada aflitos e admirados. Sós, nós pensamos no velho e choramos
juntos; depois, nas crianças, isto não merece reparo, nossa dor se mitigou,
para cuidarmos em brincar outra vez.
De repente, a menina
olhou para mim e disse:
- E quando minha mãe
perguntar pela esmeralda?...
Eu cuidei que lhe
respondia, e fiz-lhe igual pergunta:
- E quando meu pai
perguntar pelo meu camafeu?
Ficamos olhando um
para o outro; passados alguns instantes, minha linda mulher, que me parecera
estar pensando, disse sorrindo-se:
- Eu vou pregar uma
mentira.
- E qual?...
- Eu direi à minha
mãe que perdi a minha esmeralda na praia.
- E eu responderei a
meu pai que perdi o meu camafeu nas pedras.
- Eles mandarão
procurar, sem dúvida...
- E não o achando,
esquecer-se-ão disso.
- E os breves?...
- Nós os
guardaremos?...
- O velho disse que
sim.
- Para que será
isto?...
- Diz que é para nos
casarmos quando formos grandes.
- Pois então nós os
guardaremos.
- Oh! eu o prometo.
- Eu o juro.
- Neste momento soou
ave-maria.
- Tão tarde! exclamou
a menina... minha mãe ralhará comigo!
E, dizendo isto,
correu, esquecendo-se até de despedir-se de mim. Esse fatal descuido acabava de
entristecer-me, quando ela, já de longe, voltou-se para onde eu estava e,
mostrando-me o breve branco, gritou:
- Eu o guardarei!
Pela minha parte
entendi dever dar-lhe igual resposta, e, pois, mostrei-lhe o meu breve verde e
gritei-lhe também:
·
Eu
o guardarei!...
Aqui parou Augusto
para respirar, tão cansado estava com a longa narração; porém, ergueu-se logo,
ouvindo ruído à entrada da gruta.
- Alguém nos escuta!
disse ele.
- Foi talvez uma
ilusão! respondeu a digna hóspeda.
- Não, minha
senhora; eu ouvi distintamente a bulha que faz uma pessoa que corre, tornou Augusto,
dirigindo-se à entrada da gruta e observando em derredor dela.
- Então?...
perguntou a Sra. D. Ana.
- Enganei-me, na
verdade.
- Mas vê alguma
pessoa?...
- Apenas lá vejo sua
bela neta, a Sra. D. Carolina, pensativa e recostada à efígie da Esperança.
8
Augusto Prosseguindo
A
avó de Filipe quis tomar, por sua vez, a palavra; porém, o estudante lhe fez
ver que ainda muito faltava para o fim de suas histórias, e voltando de novo ao
seu lugar, continuou:
-
O acontecimento que acabo de relatar, minha senhora, produziu vivíssima
impressão no meu espírito; ajudado por minha memória de menino de treze anos,
apenas entrei em casa escrevi, palavra por palavra, quanto me havia acontecido.
Isto me tirou o trabalho de mentir, porque, adormecendo sobre o papel que
acabava de escrever, meu pai o leu à sua vontade e soube o destino do camafeu,
sem precisar que eu lho dissesse. Ele ainda estava junto de mim quando
despertei, exclamando: - o meu breve!... o velho!... minha mulher!...
-
Anda, doidinho, disse-me meu pai com bondade; eu te perdôo tuas novas loucuras,
em louvor da ação que praticaste, socorrendo um velho enfermo; agora, guarda,
eu to peço, e mesmo to mando; guarda melhor esse breve do que guardaste o
camafeu.
E
isto dizendo, deixou-me.
Não
se falou mais nesse acontecimento; soube que o velho morrera no dia seguinte e
que no momento da agonia abençoara de novo a minha camarada e a mim.
Meu
pai fez todas as despesas do enterro do velho e socorreu sua desgraçada
família.
Eu
nunca mais vi, nem soube notícia alguma de minha interessante camarada, mas nem
por isso a esqueci, minha senhora... porque, ou seja que meu coração a tivesse
amado deveras, ou que esse breve tivesse em si alguma coisa de encantador, o
certo é que eu ainda hoje me lembro com saudade dessa criança tão travessa,
porém tão bela. Sem saber seu nome, pois nem lho perguntei, nem ela mo disse,
quando quero falar a seu respeito, digo: - minha mulher! Riem-se? não me
importa: eu não posso dizer de outro modo.
Sempre
com sua imagem na minh’alma, com seu engraçado sorriso diante de meus olhos,
com suas sonoras palavras soando a meus ouvidos, passei cinco anos pensando
nela de dia, e com ela sonhando de noite; era uma loucura, mas que havia eu de
fazer?...Cheguei assim aos meus dezoito anos.
Eu
já era, pois, mancebo. Meus pais nada poupavam para me educar convenientemente:
aprendia quanto me vinha à cabeça: diziam que minha voz era sonora, e por tal
convidavam-me para cantar em elegantes sociedades; julgavam que eu dançava com
graça e lá ia eu para os bailes; finalmente, como cheguei a fazer algumas
quadras, pediam-me para recitar sonetos em dias de anos, e assim
introduziram-me em mil reuniões, onde as belezas formigavam e os amores eram
dardejados por brilhantes olhos de todas as cores. Além disto freqüentava as
casas de meus companheiros de estudos e os ouvia contar proezas de paixões,
triunfos e derrotas amorosas. Meu amor-próprio se despertou; tive vontade de
amar e ser amado.
Julguei
esta minha determinação ainda mais justa, pois tendo ido passear certas férias
na roça, e lá falando mil vezes no meu breve e em minha mulher, ouvi a minha
mãe dizer uma vez, em que me julgava longe:
-
Temo que esse breve tire o juízo àquele menino: talvez que nos seja preciso
casá-lo cedo.
Portanto,
para não ouvir somente, mas também para contar alguma vitória de amor, para não
endoidecer por causa do breve e, finalmente, para não ser necessário à minha
mãe casar-me cedo, determinei-me a amar.
-
Esqueceu-se, por conseqüência, de sua mulher e do seu breve?! perguntou a Sra.
D. Ana, interrompendo Augusto.
-
Ao contrário, minha senhora, tornou este; foi essa minha resolução que me
tornou mais firme e mais amante de minha mulher.
-
Não sei, continuou Augusto, que teve o amor comigo, para entender que todas as
moças deviam rir-se de mim e zombar de meus afetos! Pensa que brinco, minha
senhora?... pois foi isso mesmo o que me sucedeu no decurso de minhas paixões.
Eu resumo algumas.
A
primeira moça que amei era uma bela moreninha, de dezesseis anos de idade.
Fiz-lhe a minha declaração na carta mais patética que um pateta poderia
conceber: no fim de três dias recebi uma resposta abrasadora e cheia de
protestos de gratidão e ternura; meu coração se entusiasmou com isso... Na
primeira reunião de estudantes contei a minha vitória, li a minha carta e a
resposta que havia recebido: fui vivamente aplaudido; porém, oito dias depois,
os mesmos estudantes quase que me quebraram a cabeça com cacholetas e gargalhadas,
porque oito dias, bem contadinhos, depois dessa resposta, a minha terna amada
casou-se com um velho de sessenta anos. Jurei não amar moça nenhuma que tivesse
a cor morena.
Apaixonei-me
logo e fui, desgraçadamente, correspondido por uma interessante jovem tão
coradinha, que parecia mesmo uma rosa francesa. Nós nos encontrávamos nas
noites dos sábados em certa casa, onde se dava todas as semanas uma partida;
era a mais agradável sabatina que podia ter um estudante; porém, o meu novo
amor chegava a ser tocante demais: a minha querida levava o ciúme até um ponto
que atormentava prodigiosamente: se passava algum dia em que a não visse e lhe
não mandasse uma flor, aparecia-me depois chorosa e abatida; se na tal partida
eu me atrevia a dançar com alguma outra moça bonita, era contar com um desmaio
certo, e desmaio de que não acordava sem que eu mesmo lhe chegasse ao nariz o
seu vidrinho de essência de rosas; e tudo mais por este teor e forma. Este amor
já estava um pouco velho, certamente, tinha três meses de idade. Um sábado
mandei-lhe prevenir que faltaria à partida; mas, tendo terminado cedo meus
trabalhos, não pude resistir ao desejo de vê-la e fui à reunião; eram onze
horas da noite, quando entrei na sala, procurei-a com os olhos e certo moço,
com quem me dava, que me entendeu, apontou para um gabinete vizinho. Voei para
ele.
Ela
estava sentada junto de um mancebo e com as costas voltadas para a porta:
tomavam sorvetes. Cheguei-me de manso: conversavam os dois, sem vergonha
nenhuma, em seus amores!... Fiquei espantado e tanto mais que, pelo que ouvi,
eles já se correspondiam há muito tempo; mas o meu espanto se tornou em
fúria quando ouvi o machacaz falar no
meu nome, fingindo-se zeloso, e receber em resposta as seguintes palavras: - O
Augustozinho?... Lamente-o antes, coitado! é um pobre menino com quem me
divirto nas horas vagas!... Soltei um surdo gemido; a traidora olhou para mim
e, voltando-se depois para o seu querido, disse com o maior sangue-frio: - Ora
aí tem! perdi por sua causa este divertimento.
Jurei
não amar moça nenhuma de cor rosada. Sem emendar-me, ainda tomei-me cego amante
de uma jovem pálida, e, como das outras vezes, fui correspondido com ardor; mas
deste tive eu provas de afeto mui sérias. Antes de ver-me, ela amava um primo e
até escrevia-lhe a miúdo; eu exigi que a minha terceira amada continuasse a
receber cartas dele e que as respondesse; consentiu nisso, com a condição de
lhe redigir eu as respostas. Belo! disse comigo: vou também divertir-me por
minha vez à custa de um amante infeliz!
E
o negócio ficou assentado.
Infelizmente
eu não conhecia o primo da minha amada, mas essa era a infelicidade mais
tolerável possível.
Um
dia tratamos de encontrar-nos em certa igreja, onde tinha de haver esplêndida
festa; cheguei cedo, mas, logo depois da minha chegada, rebentou uma tempestade
e choveu prodigiosamente. Pouco durou o mau tempo, porém as ruas deveriam ter
ficado alagadas e a bela esperada não podia vir; apesar disso eu olhava a todos
os momentos para a porta e, coisa notável, sempre encontrava os olhos de um
outro moço, que se dirigiam também para lá; acabada a festa, ambos nos
aproximamos.
-
Nós devemos ser amigos, disse ele.
·
Eu
penso do mesmo modo, respondi.
E apertamos as mãos.
- Sou capaz de jurar
que adivinho a razão por que o senhor olhava tanto para aquela porta, continuou
ele.
- E eu também.
- Convenho: esperávamos ambos as
nossas amadas e a chuva mangou conosco.
- Exatamente.
- Mas nós vamos, sem dúvida,
vingar-nos, indo agora vê-las à janela.
- Eu queria propor a
mesma vingança.
- Bravo!... iremos
juntos... onde mora a sua?...
- Na rua de...
- Ainda melhor... a
minha é na mesma rua.
Saímos da igreja,
embraçamo-nos e fomos. A minha amada morava perto, eu a avistei debruçada na janela,
talvez me esperando, pois olhava para o lado donde eu vinha; abri a boca para
dizer ao meu novo amigo: é aquela!... quando ele me pronunciou com indizível
prazer - é aquela!... Julgue, minha senhora, da minha exasperação! pela
terceira vez eu era a boneca de uma menina!...
Não sei por que ainda tive ânimo de
tirar o meu chapéu à tal pálida, que ao menos dessa vez se fez cor-de-rosa,
talvez por ver-me de braço com o meu novo amigo.
Passando a maldita casa, Jorge, que
assim se chamava o moço, disse-me com fogo:
- Aquela jovem
adora-me!
- Está certo disso, meu amigo?
- Tenho provas.
- Acredita muito
nelas?
- Tenho as mais
fortes; por último recebi ainda e de maior confiança... eu lhe conto. Um
estudante a reqüestou e escreveu-lhe; ela mandou-me a carta, e eu respondi em
seu lugar. A correspondência tem continuado por minha vontade e sou eu quem
sempre faço a norma das cartas que ela deve escrever; achará isto imprudência,
e eu acho um belo divertimento.
- Sim... um belo
divertimento.
- Mas que é isso?
está tão pálido!...
- Não é coisa de
cuidado... Eu... ora... o estudante...
- É por certo um
famoso pateta...
- Não é bom ir tão
longe...
- Não tem dúvida...
é tolo rematado.
- Fale-me a verdade:
eu acho aquela moça com cara de ser sua prima.
- Quem lhe disse?...
é, com efeito, minha prima!
- Pois vamos à minha
casa.
- E a sua amada?...
- Não me fale mais
nela.
Apenas chegamos à
minha casa, abri a minha gaveta, e tirando dela todas as cartas que Jorge havia
escrito à sua prima, e que ela me tinha mandado, assim como as normas que eu
redigira para as que deveriam ser enviadas ao meu amigo, acrescentei:
- Concordemos ambos
que, se o estudante foi um famoso pateta e um tolo rematado, não o foi menos o
primo daquela senhora a quem cortejamos na rua de...
Jorge devorou todas
as cartas e normas que lhe dei; depois desatou a rir e, abraçando-me, exclamou:
- Concordemos
também, caro estudante, que minha prima tem bastante habilidade para se
corresponder com meio mundo, sem se incomodar com o trabalho da redação de suas
cartas!...
O bom humor de Jorge
tornou-me alegre. Jantamos juntos, rimo-nos todo o dia, e só de noite se
retirou.
Tratei de dormir,
mas, antes de adormecer, falei ainda comigo mesmo: - juro que não hei de amar
moça nenhuma de cor pálida.
Desde então declarei
guerra ao amor, minha senhora; tornei-me ao que era dantes, isto é, ocupei-me
somente em me lembrar de minha mulher e em beijar o meu breve.
Mas eu andava triste
e abatido e às vezes pensava assim: - ora pois, jurei não amar a moça nenhuma
que fosse morena, corada ou pálida; estas são as cores; estes são os tipos da
beleza... e, portanto, minha mulher terá, a pesar meu, uma das tais cores; logo
não me caso com minha mulher e, em última conclusão, serei celibatário, vou
ser... frade... frade!...
Minha tristeza, meu
abatimento deu nos olhos da digna, jovial e espirituosa esposa de um de meus
bons amigos. Ela me pediu que lhe confiasse as minhas penas e eu não pude
deixar de relatar estes três fatos à consorte de um caro amigo.
A única consolação que
tive foi vê-la correr para o piano, e ouvi-la cantas as seguintes e outras
quadrinhas musicadas no gosto nacional:
I
Menina solteira
Que almeja casar,
Não caia em amar
A homem algum;
Nem seja notável
Por sua esquivança,
Não tire a esperança
De amante nenhum.
II
Mereçam-lhes todos
Olhares ardentes;
Suspiros ferventes
Bem pode soltar:
Não negue a nenhum
Protestos de amor;
A qualquer que for
O pode jurar.
III
Os velhos não devem
Formar exceção,
Porquanto eles são
Um grande partido;
Que, em falta de
moço
Que fortuna faça,
Nunca foi desgraça
Um velho marido.
IV
Ciúmes e zelos,
Amor e ternura,
Não será loucura
Fingida estudar;
Assim ganhar tudo
Moças se tem visto;
Serve muito isto
Antes de casar.
V
Contra os ardilosos
Oponha seu brio:
Tenha sangue-frio
Pra saber fugir;
Em todos os casos
Sempre deve estar
Pronta pra chorar,
Pronta pra rir.
VI
Pode bem a moça,
Assim praticando,
Dos homens zombando,
A vida passar;
Mas, se aparecer
Algum toleirão,
Sem mais reflexão,
É logo casar.
- Então o negócio é
assim, minha senhora? exclamei eu, ao vê-la levantar-se do piano.
- Certamente, me
respondeu ela; é este, pouco mais ou menos, o breviário por onde reza a
totalidade das moças.
- Fico-lhe
extremamente agradecido pelo desengano.
- Estimo que lhe
sirva de muito.
- Já serve, minha
senhora; já tirei grande proveito dele.
- E como?...
- Escute: abatido e
desesperado com os meus infortúnios, eu tinha jurado não amar a mais nenhuma
moça que fosse morena, corada ou pálida; estavam, pois, esgotados os belos
tipos... eu deveria morre celibatário.
- E agora?...
- Agora?... graças
ao seu lundu, juro que de hoje avante amarei a todas elas... morenas, coradas,
pálidas, magras e gordas, cortesãs ou roceiras, feias ou bonitas... tudo serve.
E, com efeito, minha senhora, continuou Augusto, dirigindo-se à Sra. D. Ana,
fiz-me absolutamente um ser novo, graças ao lundu; guardando e beijando com
desvelo o meu querido breve, que sempre comigo trago, eu conservo a lembrança mais
terna e constante de minha mulher: ela é o amor de meu coração, enquanto todas
as outras são o divertimento dos meus olhos e o passatempo de minha vida. Eis,
finalmente, a história de meus amores!... Tais foram as razões que me tornaram
borboleta de amor.
Terminando assim,
Augusto ia respirar um instante, quando pela segunda vez lhe pareceu ouvir
ruído na porta da gruta.
- Alguém nos escuta,
disse ele, como da outra vez.
- É talvez uma nova
ilusão... respondeu a digna hóspeda.
- Não, minha
senhora; eu ouvi distintamente a bulha de uma pessoa que corre, tornou Augusto,
dirigindo-se à entrada da gruta e observando ao derredor dela.
- Então?...
perguntou a Sra. D. Ana.
- Enganei-me, na
verdade.
- Mas vê alguém?...
- Apenas lá vejo a
sua bela neta, a Sra. D. Carolina, que se precipita com a maior graça do mundo
sobre uma borboleta que lhe foge e que ela procura prender.
- Uma borboleta...
9
A Sra. D. Ana com suas Histórias
Finalmente,
o bom do estudante que, quando lhe dava para falar, era mais difuso que alguns
de nossos deputados novos na discussão do art. 1.º dos orçamentos, julgou dever
fazer pausa de suspensão; mas a Sra. D. Ana, que já tinha-o por vezes
interrompido fora de tempo e debalde, não quis tomar a palavra para responder,
sem segurar-se, dirigindo-lhe estas palavras pela ordem:
-
Então concluiu, Sr. Augusto?...
-
Sim, minha senhora; e peço-lhe perdão por me haver tornado incômodo, pois fui,
sem dúvida, tão minucioso em minha narração que eu mesmo tanto me fatiguei, que
vou beber uma gota d’água.
E
isto dizendo, foi ao fundo da gruta, e enchendo o copo de prata na bacia de
pedra, o esgotou até ao fim; quando voltou os olhos, viu que a boa hóspeda
estava rindo-se maliciosamente.
-
Sabe de que estou rindo?... disse ela.
-
Certamente que não o adivinho.
-
Pois estava neste momento lembrando-me de uma tradição muito antiga,
seguramente fabulosa, mas bem apropositada dessa fonte, e que tem muita relação
com a história de seus amores e com o copo d’água que acaba de beber.
-
V. S. põe em tributo a minha curiosidade...
-
Eu o satisfaço com todo o prazer.
A
Sra. D. Ana principiou.
As
Lágrimas de Amor
-
Eu lhe vou contar a história das lágrimas de amor, tal qual a ouvi a minha avó,
que em pequena a aprendeu de um velho gentio que nesta ilha habitava.
Era
no tempo em que ainda os portugueses não haviam sido por uma tempestade
empurrados para a terra de Santa Cruz. Esta pequena ilha abundava de belas aves
e em derredor pescava-se excelente peixe. Uma jovem tamoia, cujo rosto moreno
parecia tostado pelo fogo em que ardia-lhe o coração, uma jovem tamoia linda e
sensível, tinha por habitação esta rude gruta, onde ainda então não se via a
fonte que hoje vemos. Ora, ela, que até aos quinze anos era inocente como a
flor, e por isso alegre e folgazona como uma cabritinha nova, começou a
fazer-se tímida e depois triste, como o gemido da rola; a causa estava no
agradável parecer de um mancebo da sua tribo, que diariamente vinha caçar ou
pescar na ilha, e vinte vezes já o havia feito, sem que uma só desse fé dos
olhares ardentes que lhe dardejava a moça. O nome dele era Aoitin; o nome dela
era Aí. A pobre Aí, que sempre o seguia, ora lhe apanhava as aves que ele
matava, ora lhe buscava as flechas disparadas, e nunca um só sinal de
reconhecimento obtinha; quando no fim de seus trabalhos, Aoitin ia adormecer na
gruta, ela entrava de manso e com um ramo de palmeira procurava, movendo o ar,
refrescar a fronte do guerreiro adormecido. Mas tantos extremos era tão mal
pagos, que Aí, de cansada, procurou fugir do insensível moço e fazer por
esquecê-lo: porém, como era de esperar, nem fugiu-lhe, e nem o esqueceu.
Desde
então tomou outro partido: chorou. Ou porque sua dor era tão grande que lhe
podia espremer o amor em lágrimas desde o coração até aos olhos, ou porque,
selvagem mesma, ela já tinha compreendido que a grande arma da mulher está no
pranto, Aí chorou.
E
porque também nas lágrimas de amor há, como na saudade, uma doce amargura, que
é veneno que não mata, por vir sempre temperado com o reativo da esperança, a
moça julgou dever separar da dor, que a fazia chorar amargores, a esperança que
no pranto lhe adicionava a doçura, e, tendo de exprimir a doçura, Aí cantou.
Seu
canto era triste e selvagem, mas terno canto. Dizem que um velho frade
português, ouvindo-o por tradição depois de muitos anos, o traduziu para a
nossa língua e fez dele uma balada, a qual minha neta canta.
Todos
os dias, ao romper da aurora, a pobre Aí subia ao rochedo, que serve de teto a
esta gruta, e esperava a piroga de Aoitin. Mal a avistava ao longe, chorava e
cantava horas inteiras, sem descanso, até que se partia o bárbaro que nunca
dela dava fé, nem mesmo quando, dormindo na gruta, o canto soava sobre a sua
cabeça.
Mas
Aí era tão formosa e sua voz tão sonora e terna, que o mesmo não pôde vencer do
insensível moço, pôde do bruto rochedo; com efeito, seu canto havia amolecido a
rocha e suas lágrimas a traspassaram.
E
o mancebo vinha sempre, e sempre ela cantava e chorava, e nunca ele a atendia.
Uma
vez, e já então o rochedo estava todo traspassado pelas lágrimas da virgem
selvagem, uma vez veio Aoitin e, como das outras, não olhou para Aí, nem lhe
escutou as sentidas cantigas; entregou-se a seus prazeres e, quando se sentiu
fatigado, entrou na gruta e adormeceu num leito de verde relva; mas, ao tempo
que em mais sossego dormia, duas gotas das lágrimas de amor, que tinham passado
através do rochedo, caíram-lhe sobre as pálpebras, que lhe cerravam os olhos.
Aoitin despertou; e tomando suas flechas, correu para o mar, mas, saltando
dentro de sua piroga e afastando-se da ilha, ele viu sobre o rochedo a jovem Aí
e disse bem alto:
·
Linda
moça!
- No outro dia ele voltou e já, então,
olhou para a virgem selvagem, mas não ouviu ainda o canto dela; depois de caçar
veio, como sempre, adormecer na gruta; e, dessa vez, a gota de lágrima lhe veio
cair no ouvido; na volta não só admirou a beleza da jovem, como, ouvindo a
terna cantiga, disse bem alto:
- Voz sonora!
Terceiro dia
amanheceu e Aoitin viu e ouviu Aí; caçou e cansou, veio repousar na gruta, e
dessa vez a gota de lágrima lhe caiu no lugar do coração e, quando voltava,
disse bem alto:
- Sinto amar-te!
Ora, parece que nada
mais faltava a Aí, e que a ela cumpria responder a este último grito de Aoitin,
confessando também o seu amor tão antigo; mas a natureza da mulher é a mesma,
tanto na selvagem como na civilizada: a mulher deseja ser amada, fingindo não
amar; deseja ser senhora do mesmo de quem é escrava: e pois Aí nada respondeu;
mas riu-se, suas lágrimas secaram; porém já a este tempo as muitas que havia
derramado tinham dado origem a esta fonte, que ainda hoje existe.
No dia seguinte veio
Aoitin, e viu a sua amada, que já não cantava, nem chorava: mesmo antes de
chegar à praia, foi clamando:
- Sinto amar-te!
E Aí não respondeu e
só sorriu-se.
Nada de caça... nada
de pesca... já o insensível era escravo e não vivia longe do encanto que o
prendia: correu, pois, para a gruta, deitou-se, mas não dormiu. Quem ama não
dorme; sentiu que em suas veias corria sangue ardente, que seu coração estava
em fogo: - era a febre do amor... Aoitin teve sede; a dois passos viu a fonte
que manava; correu açodado para ao pé dela e, ajuntando as suas mãos, foi
bebendo as lágrimas de amor. A cada trago que bebia, um raio de esperança lhe
brilhava; e quando a sede foi saciada, já estava feliz; a fonte era milagrosa.
As lágrimas de amor,
que haviam tido o poder de tornar amante o insensível mancebo, não puderam
esconder a sua origem e fizeram com que Aoitin conhecesse que era amado.
Então ele não mais
buscou sua piroga. Saindo da gruta, fez um rodeio e foi, de manso, trepando
pelo rochedo, até chegar junto de Aí, que, com os olhos na praia do lado
oposto, esperava ver partir o seu amante e ouvir o seu belo grito:
- Sinto amar-te!
Mas de repente ela
estremeceu, porque uma mão estava sobre seu ombro: e quando olhou viu Aoitin,
que sorrindo-se lhe disse num tom seguro e terno:
- Tu me amas!?
Aí não respondeu, mas
também não fugiu dos braços de Aoitin,
nem ficou devendo o beijo que nesse instante lhe estalou na face.
Desde então foram
felizes ambos na vida, e foi numa mesma hora que morreram ambos.
A fonte nunca mais deixou de existir
e há ainda quem acredite que por desconhecido encanto conserva duas grandes
virtudes...
Dizem, pois, que
quem bebe desta água não sai da nossa ilha sem amar alguém dela e volta, por
força, em demanda do objeto amado. E em segundo lugar, querem também alguns que
algumas gotas bastam para fazer a quem as bebe adivinhar os segredos de amor.
- Terminei aqui a
minha história, disse a Sra. D. Ana, respirando.
- E eu sou capaz de
jurar, disse Augusto, que pela terceira vez sinto ruído de alguém que se retira
correndo.
- Pois examine depressa.
Augusto correu à
porta e voltou logo depois.
- E então?...
perguntou a Sra. D. Ana.
- Ninguém, respondeu
o estudante.
- E vê alguém no
jardim?...
- Apenas a Sra. D.
Carolina, que vai apressadamente para o rochedo.
- Sempre minha
neta!...
- E eu, minha
senhora, tenho que pedir-lhe uma graça.
- Diga.
- Rogo-lhe que, por
sua intervenção, me facilite o prazer de ouvir sua linda neta cantar a balada
de Aí, que tanto me interessou com o seu amor.
- Oh!... não carece
pedir... não a ouve cantar... sobre o rochedo?... E a balada.
- Será possível?!
- Adivinhou o seu
pensamento.
10
A Balada no Rochedo
A
hóspeda e o estudante deixaram então a gruta e, tomando campo no jardim para
vencer a altura do rochedo, viram a bela Moreninha em pé e voltada para o mar,
com seus cabelos negros divididos em duas tranças que caíam pelas espáduas, e
cantando com terna voz o seguinte:
I
Eu tenho quinze anos
E sou morena e
linda!
Mas amo e não me
amam,
E tenho amor ainda,
E por tão triste
amar
Aqui venho chorar.
II
O riso de meus lábios
Há muito que
murchou;
Aquele que eu adoro
Ah! foi quem o
matou:
Ao riso, que morreu,
O pranto sucedeu.
III
O fogo de meus olhos
De todo se acabou:
Aquele que eu adoro
Foi quem o apagou:
Onde houve fogo
tanto
Agora corre o
pranto.
IV
A face cor de jambo
Enfim se descorou;
Aquele que eu adoro
Ah! foi que a
desbotou:
A face tão rosada
De pranto está
lavada!
V
O coração tão puro
Já sabe o que é
amor;
Aquele que eu adoro
Ah! só me dá rigor:
O coração no entanto
Desfaz o amor em pranto.
VI
Diurno aqui se mostra
Aquele que eu adoro;
E nunca ele me vê,
E sempre o vejo e
choro:
Por paga a tal
paixão
Só lágrimas me dão!
VII
Aquele que eu adoro
É qual rio que
corre,
Sem ver a flor
pendente
Que à margem murcha
e morre:
Eu sou a pobre flor
Que vou murchar de
amor.
VIII
São horas de raiar
O sol dos olhos
meus;
Mau sol! queima a
florzinha
Que adora os raios
seus:
Tempo é do sol raiar
E é tempo de chorar.
IX
Lá vem sua piroga
Cortando leve os
mares:
Lá vem uma esperança,
Que sempre dá
pesares:
Lá vem o meu
encanto,
Que sempre causa
pranto.
X
Enfim abica à praia;
Enfim salta
apressado,
Garboso como o cervo
Que salta alto
valado:
Quando há de ele cá
vir
Só pra me ver
sorrir?...
XI
Lá corre em busca de aves
A selva que lhe é
cara,
Ligeiro como a seta
Que do arco seu
dispara:
Quando há de ele
correr
Somente pra me ver?
XII
Lá vem do feliz bosque
Cansado de caçar;
Qual beija-flor, que
cansa
De mil flores
beijar:
Quando há de ele
cansado
Descansar a meu
lado?...
XIII
Lá entra para a
gruta,
E cai na rude cama,
Qual flor de belas
cores,
Que cai do pé na
grama:
Quando há de nesse
leito
Dormir junto a meu
peito?
XIV
Lá súbito desperta,
E na piroga embarca,
Qual sol que, se
ocultando,
O fim do dia marca:
Quando hei de este
sol ver
Não mais
desaparecer?
XV
Lá voa na piroga,
Que o rasto deixa aos mares,
Qual sonho que se esvai
E deixa após pesares:
Quando há de ele cá vir
Pra nunca mais fugir?...
XVI
Ó bárbaro! tu partes
E nem sequer me
olhaste?
Amor tão delicado
Em outra já achaste?
Ó bárbaro! responde
Amor como este,
aonde?
XVII
Somente pra teus beijos
Te guardo a boca pura;
Em que lábios tu podes
Achar maior doçura?...
Meus lábios murchareis,
Seus beijos não tereis!
XVIII
Meu colo alevantado
Não vale teus
braços?...
Que colo há mais
formoso,
Mais digno de teus
braços?
Ingrato! morrerei...
E não te abraçarei.
XIX
Meus seios entonados
Não podem ter vala?
Desprezas as
delícias
Que neles te
oferecia?
Pois hão de os seios
puros
Murcharem prematuros?
XX
Não sabes que me chamam
A bela do
deserto?...
Empurras para longe
O bem que te está
perto!
Só pagas com rigor
As lágrimas de
amor?...
XXI
Ingrato! ingrato!
foge...
E aqui não tornes
mais:
Que, sempre que
tornares,
Terás de ouvir meus ais:
E ouvir queixas de
amor,
E ver pranto de
dor!...
XXII
E, se amanhã vieres,
Em pé na rocha dura
‘Starei cantando aos
ares
A mal paga
ternura...
Cantando me ouvirás.
Chorando me
acharás!...
11
Travessuras de D. Carolina
Mas
ela não pára: o movimento é a sua vida; esteve no jardim e em toda a parte;
cantou de sobre o rochedo e ei-la outra vez no jardim! Infatigável, apenas suas
faces se coraram com o rubor da agitação. Travessa menina!... Porém, ela
tempera todas as travessuras com tanta viveza, graça e espírito, que menos
valera se não fizera o que faz. Não há
um só, entre todos, der cuja alma se não tenham esvaído as idéias desfavoráveis
que, à primeira vista, produziu o gênio inquieto de D. Carolina. O mesmo
Augusto não pôde resistir à vivacidade da menina. Encontrando Leopoldo,
disseram duas palavras sobre ela.
-
Então, como a achas agora?... disse Leopoldo, apontando para a irmã de Filipe.
-
Interessante, espirituosa e capaz de levar a glória ao mais destro casuísta.
Olha, Fabrício vê-se doido com ela.
-
Só isso?...
-
Acho-a bonita.
-
Nada mais?...
-
Tem voz muito agradável.
-
É tudo o que pensas?...
-
Tem a boca mais engraçada que se pode imaginar.
-
Só?...
-
Muito esbelta.
-
Que mais?
-
É tão ligeira como um juramento de mulher.
-
Dize tudo de uma vez.
-
Pois que queres que eu diga?
-
Que a amas!... que dás o cavaco por ela.
-
Amá-la? não faltava mais nada! amo-a como amo as outras... isso sim.
-
Pois meu amigo, todos nós estamos derrotados; o diabinho da menina nos tem posto o coração em retalhos. Se, de novo, se
fizer a saúde que hoje fizemos, todos, à exceção de Filipe, pronunciarão a
letra C...
-
Também Fabrício?
-
Ora! esse está doente... perdido... doido, enfim!
-
E ela?
-
Zomba de todos nós; cada cumprimento que lhe endereçamos paga ela com uma
resposta que não tem troco e que nos racha de meio a meio. Tu ainda não lhe
disseste nada?
-
Cousas vãs... e palavras da tarifa.
-
E ela?
-
Palavras da tarifa... e cousas vãs.
-
Pois é opinião geral que ela te prefere a todos nós.
-
Tanto melhor para mim.
-
E pior para ela, mas... adeus! o meu lindo par se levanta do banco de relva em
que descansava; vou tomar-lhe o braço; tenho-me singularmente divertido: a bela
senhora é filósofa!... faze idéia! Já leu Mary de Wollstonecraft e, como esta
defende os direitos das mulheres, agastou-se comigo, porque lhe pedi uma
comenda para quando fosse Ministra de Estado, e a patente de cirurgião do
exército, no caso de chegar a ser general; mas, enfim, fez as pazes, pois lhe
prometi que, apenas me formasse, trabalharia para encartar-me na Assembléia
Provincial e lá, em lugar das maçadas de pontes, estradas e canais, promoveria
a discussão de uma mensagem ao governo-geral, em prol dos tais direitos das
mulheres: além de que... Mas... tu bem vês que ela me está chamando: adeus!...
adeus!...
No
entanto D. Carolina continuava a cativar todos os olhares e atenções; tinham
notado, é verdade, que ela estivera alguns momentos recostada à efígie da Esperança,
triste e pensativa. Fabrício jurava mesmo que a vira enxugar uma lágrima, mas
logo depois desapareceu completamente a menor aparência de tristeza, tornou a
brilhar-lhe o prazer em ebulição.
Todos
tinham tido seu quinhão, maior ou menor, segundo os merecimentos de cada um,
nas graças maliciosas da menina. Ninguém havia escapado: Fabrício era a vítima
predileta, porque também foi ele o único que se atreveu a travar luta com ela.
Finalmente
D. Carolina acabava de entrar outra vez no jardim, depois de ter cantado sua
balada. De todos os lados soavam-lhe os parabéns, mas ela escapou a eles,
correndo para junto de uma roseira toda coroada por suas belas e rubras flores.
Fabrício,
que ainda não estava suficientemente castigado e que, além disto, começava a
gostar seu tantum da Moreninha, se dirigiu com D. Joaninha para o lado
em que ela se achava.
- É decididamente o
que eu pensava, disse Fabrício, quando se viu ao pé de D. Carolina; e
dirigindo-se a D. Joaninha: sim... sua bela prima ama as rosas, exclusivamente.
-
Conforme as ocasiões e circunstâncias, respondeu a menina.
-
Poderia eu merecer a honra de uma explicação? perguntou Fabrício.
-
Com toda a justiça e, continuou D. Carolina rindo-se, tanto mais que foi a V.
S.ª que me dirigi. Eu queria dizer que, entre um beijo-de-frade ou um
cravo-de-defunto e uma rosa, não hesito em preferir a última.
Fabrício
fingiu não entender a alusão e continuou;
-
Todavia não é sempre bem pensada semelhante preferência; a rosa é como a
beleza: encanta mais espinha; V. S.ª o sabe, não é assim?
-
Perfeitamente, mas também não ignoro que a rosa só espinha quando se defende de
alguma mão impertinente que vem perturbar a paz de que goza; V. S.ª o sabe, não
é assim?
-
Oh! então a Sra. D. Carolina foi bem imprudente em quebrar o pé dessa rosa com
que brinca, expondo assim seus delicados dedos; e bem cruel também em fazê-la
murchar de inveja, tendo-a defronte de seu formoso semblante.
-
Pela minha vida, meu caro senhor! nunca vi pedir uma rosa com tanta graça: quer
servir-se dela?
-
Seria a mais apetecível glória...
-
Pois aqui a tem... Querida prima, nada de ciúmes.
E
Fabrício, recebendo o belo presente, em vez de olhar para a mão que o dava,
atentava em êxtase o rosto moreno e o sorrir malicioso de D. Carolina. Ao
momento de se encontrar a mão que dava e a que recebia, Fabrício sentiu que lhe
apertavam os dedos; seu primeiro pensamento foi crer que era amado; mas logo se
lhe apagou esse raio de vaidade, pois que ele retirou vivamente a mão,
exclamando involuntariamente:
-
Ai! feri-me!...
Era
que a travessa lhe havia apertado os dedos contra os espinhos da rosa. Mas a
flor tinha caído na relva: Fabrício, já menos desconcertado, a levantou com
presteza, e, encarando a irmã de Filipe, disse-lhe, em tom meio vingativo:
-
Foi um combate sanguinolento, ma ganhei o prêmio da vitória.
-
Pois feriu-se?... perguntou D. Carolina, chegando-se com fingido cuidado para
ele.
-
Nada foi, minha senhora: comprei uma rosa por algumas gotas de sangue... valeu
a pena.
-
Maldita rosa! exclamou a Moreninha, teatralmente... maldita rosa! eu te
amaldiçôo!...
E
dando um piparote na inocente flor, a desfolhou completamente; não ficou na mão
de Fabrício mais que o verde cálice. D. Carolina correu para junto de sua digna
avó; o pobre estudante ficou desconcertado.
-
E esta! murmurou ele, enfim.
-
Foi muito bem feito! disse D. Joaninha, cheia de zelos e dando-lhe um beliscão,
que o fez ir às nuvens.
-
Perdão, minha senhora... seja pelo amor de Deus! exclamou Fabrício, que se via batido
por todos os lados.
No
entanto começava a declinar a tarde; uma voz reuniu todas as senhoras e
senhores em um só ponto: serviu-se o café num belo caramanchão; mas, como fosse
ele pouco espaçoso para conter tão numerosa sociedade, aí só se abrigaram as
senhoras, enquanto os homens se conservavam na parte de fora.
Escravas
decentemente vestidas ofereciam chávenas de café fora do caramanchão, e, apesar
disse, D. Carolina se dirigiu com uma para Fabrício, que praticava com Augusto.
-
Eu quero fazer as pazes, Sr. Fabrício; vejo que deve estar muito agastado
comigo e venho trazer-lhe uma chávena de café temperado pela minha mão.
Fabrício
recuou um passo e colocou-se à ilharga de Augusto: ele desconfiava das tenções
da menina; sua primeira idéia foi esta: o café não tem açúcar.
Então,
começou entre os dois um duelo de cerimônias, que durou alguns instantes;
finalmente, o homem teve de ceder à mulher. Fabrício ia receber a chávena,
quando esta estremeceu no pires... D. Carolina, temendo que sobre ela se entornasse
o café, recuou um pouco. Fabrício fez outro tanto: a chávena, inda mal tomada,
tombou: o café derramou-se inopinadamente. Fabrício recuou ainda mais com
vivacidade, mas, encontrando a raiz de um chorão que sombreava o caramanchão,
perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na relva.
Uma
gargalhada geral aplaudiu o sucesso.
-
Fabrício espichou-se completamente! exclamou Filipe.
O
pobre estudante ergueu-se com ligeireza, mas, na verdade, corrido do que
acabava de sobrevir-lhe: as risadas continuavam, as terríveis consolações o
atormentavam; todas as senhoras tinham saído do caramanchão e riam-se, por sua
vez, desapiedadamente. Fabrício muito daria para ser livrar dos apuros em que
se achava, quando de repente soltou também a sua risada e exclamou:
-
Viva as calças de Augusto!
Todos
olharam. Com efeito, Fabrício tinha encontrado um companheiro na desgraça:
Augusto estava de calças brancas, e a maior porção de café entornado havia
caído nelas.
Continuaram
as risadas, redobraram os motejos. Duas eram as vítimas.
12
Meia Hora Embaixo da Cama
Não
tardou que Filipe, como bom amigo e hóspede, viesse em auxílio de Augusto. Em
verdade que era impossível passar o resto da tarde e a noite inteira com aquela
calça, manchada pelo café; e, portanto, os dois estudantes voaram à casa.
Augusto, entrando no gabinete destinado aos homens, ia tratar de despir-se,
quando foi por Filipe interrompido.
-
Augusto, uma idéia feliz! vai vestir-te no gabinete das moças.
-
Mas que espécie de felicidade achas tu nisso?
-
Ora! pois tu deixas passar uma tão bela ocasião de te mirares no mesmo espelho
em que elas se miram!... de te aproveitares das mil comodidades e das mil
superfluidades que formigam no toucador de uma moça?... Vai!... sou eu que to
digo; ali acharás banhas e pomadas naturais de todos os países; óleos
aromáticos, essências de formosura e de todas as qualidades; águas cheirosas,
pós vermelhos para as faces e para os lábios, baeta fina para esfregar o rosto
e enrubescer as pálidas, escovas e escovinhas, flores murchas e outras viçosas.
-
Basta, basta; eu vou, mas lembra-te que és tu quem me fazes ir e que o meu
coração adivinha...
-
Anda, que o teu coração sempre foi um pedaço d’asno.
E,
isto dizendo, Filipe empurrou Augusto para o gabinete das moças e se foi reunir
ao rancho delas.
Ai
do pobre Augusto!... mal tinha acabado de tirar as calças e a camisa, que
também se achava manchada, sentiu rumor que faziam algumas pessoas que entravam
na sala.
Augusto
conheceu logo que eram moças, porque estes anjinhos, quando se juntam fazem,
conversando, matinada tal, que a um quarto de légua se deixam adivinhar; se é
sediço e mesmo insólito compará-las a um bando de lindas maitacas, não há
remédio senão dizer que muito se assemelham a uma orquestra de peritos
instrumentais, na hora da afinação.
Ora,
o nosso estudante estava, por sua esdrúxula figura, incapaz de aparecer a
pessoa alguma; em ceroulas e nu da cintura para cima, faria recuar de espanto,
horror, vergonha e não sei que mais, ao belo povinho que acabava de entrar em
casa e que, certamente, se assim o encontrasse, teria de cobrir o rosto com as
mãos; e, portanto, o pobre rapaz seguiu o primeiro pensamento que lhe veio à
mente: ajuntou toda a sua roupa, enrolou-a, e com ela embaixo do braço
escondeu-se atrás de uma linda cama que se achava no fundo do gabinete,
cuidando que cedo se veria livre de tão intempestiva visita; mas, ainda outra
vez, pobre estudante! teve logo de agachar-se e espremer-se para baixo da cama,
pois quatro moças entraram no quarto. E eram elas D. Joaninha, D. Quinquina, D.
Clementina e uma outra por nome Gabriela, muito adocicada, muito espartilhada,
muito estufada, e que seria tudo quanto tivesse vontade de ser, menos o que
mais acreditava que era, isto é, bonita.
Depois que todas
quatro se miraram, compuseram cabelos, enfeites e mil outros objetos que
estavam todos muito em ordem, mas que as mãozinhas destas quatro demoiselles
não puderam resistir ao prazer,
muito habitual nas moças, de desarranjar para outra vez arranjar, foram por mal
dos pecados de Augusto, sentar-se da maneira seguinte: D. Clementina e D.
Joaninha na cama, embaixo da qual estava ele; D. Quinquina de um lado, em uma
cadeira, e D. Gabriela exatamente defronte do espelho, do qual não tirava os
olhos, em outra cadeira que, apesar de ser de braços e larga, pequena era para
lhe caber sem incômodo toda a coleção de saias, saiotes, vestidos de baixo e
enorme variedade de enchimentos que lhe faziam de suplemento à natureza, que com
D. Gabriela, segundo suas próprias camaradas, tinha sido um pouco mesquinha a
certos respeitos.
Depois
de respirar um momento, as meninas, julgando-se sós, começaram a conversar
livremente, enquanto Augusto, com sua roupa embaixo do braço, coberto de teias
de aranha e suores frios, comprimia a respiração e conservava-se mudo e quedo,
medroso de que o mais pequeno ruído o pudesse descobrir; para meu mor
infortúnio, a barra da cama era incompleta e havia seguramente dois palmos e
meio de altura descobertos, por onde, se alguma das moças olhasse, seria ele
impreterivelmente visto. A posição do estudante era penosa, certamente; por
último, saltou-lhe uma pulga à ponta do nariz, e por mais que o infeliz a
soprasse, a teimosa continuou a chuchá-lo com a mais descarada impunidade.
-
Antes mil vezes cinco batinas seguidas, em tempo de barracas no Campo!... dizia
ele consigo.
Mas
as moças falam já há cinco minutos; façamos por colher algumas belezas, o que
é, na verdade, um pouco difícil, pois, segundo o antigo costume, falam todas
quatro ao mesmo tempo. Todavia, alguma coisa se aproveitará.
-
Que calor!... exclamou D. Gabriela, afetando no abanar de seu leque todo o
donaire de uma espanhola; oh! não parece que estamos no mês de julho; mas, por
minha vida, vale bem o incômodo que sofremos, o regalo que têm tido nossos
olhos.
-
Bravo, D. Gabriela!... então seus olhos...
-
Têm visto muita coisa boa. Olhe, não é por falar, mas, por exemplo, há objeto
mais interessante do que D. Luísa mostrar-se gorda, esbelta, bem feita?...
-
É um saco!
-
E como é feia!...
-
É horrenda!
-
É um bicho!
-
E não vimos a filha do capitão com sua dentadura postiça?... Agora não faz
senão rir!...
-
Coitadinha! aperta tanto os olhos!
-
Se ela pudesse arranjar também um postiço para o queixo!
-
Ora, D. Clementina, não me obrigue a rir!...
-
D. Joaninha, você reparou no vestido de chalim de D. Carlota?... Quanto a mim,
está absolutamente fora da moda.
-
Ainda que estivesse na moda, não há nada que nela assente bem.
-
Ora... é um pau vestido!... tem uma testa maior que a rampa do Largo do
Paço!...
-
Um nariz com tal cavalete, que parece o morro do Corcovado!...
-
E a boca?... ah! ah! ah!
- Parece que anda sempre pedindo
boquinhas.
-
E que língua que ela tem!
-
É uma víbora!
-
Eu não sei por que as outras não hão de ser como nós, que não dizemos mal de
nenhuma delas.
-
É verdade, porque se eu quisesse falar...
-
Diga sempre, D. Quinquina.
-
Não... não quero. Mas, passando a outra coisa... D. Josefina aplaude com prazer
a moda dos vestidos compridos!
-
Por quê?
-
Ora... porque tem pernas de caniço de sacristão.
-
Pernas finas também é moda presentemente.
- Deus me livre!...
acudiu D. Clementina; pelo menos para mim nunca deve ser, pois não posso
emendar a natureza, que me deu pernas grossas.
-
Não lhe fico atrás, juro-lhe eu! exclamou D. Quinquina.
-
Nem eu! Nem eu! disseram as outras duas.
-
Isso é bom de se dizer, tornou a primeira; mas, felizmente, podemos tirar as
dúvidas.
-
Como?
-
Facilmente: vamos medir nossas pernas.
Ouvindo
tal proposição, o nosso estudante, apesar de se ver em apuros embaixo da cama,
arregalou os olhos de maneira que lhe pareciam querer saltar das órbitas, porém,
D. Gabriela, que não parecia estar muito consigo e que só por honra da firma
dissera o seu “nem eu!”, veio deixá-lo com água na boca.
-
Havia de ser engraçado, disse ela, arregaçarmos aqui nossos vestidos!...
-
Que tinha isso?... acudiu D. Quinquina; não somos todas moças?... dir-se-ia que
não temos dormido juntas.
- É verdade,
acrescentou D. Clementina e, além de que, não se veria demais senão quatro ou
cinco saias por baixo do segundo vestido.
-
E talvez algum saiote... vamos a isto!
-
Não... não... disse, por sua vez, D. Joaninha.
- Pois por mim não
era a dúvida, tornou D. Clementina, com ar de triunfo, recostando-se mole e
voluptuosamente nas almofadas, e deixando
escorregar de propósito uma das pernas para fora do leito, até tocar com
o pé no chão, de modo que ficou à mostra até o joelho.
-
Quem me dera já casar... suspirou ela.
Pobre
Augusto!... não te chamarei eu feliz!... ele vê a um palmo dos seus olhos a
perna mais bem torneada que é possível imaginar!... através da finíssima meia
aprecia uma mistura de cor de leite com a cor-de-rosa e, rematando este
interessante painel róseo, um pezinho que só se poderia medir a polegadas,
apertado em um sapatinho de cetim, e que estava mesmo pedindo um... dez...
cem... mil beijos; mas, quem o pensaria? não foram beijos o que desejou o
estudante outorgar àquele precioso objeto; veio-lhe ao pensamento o prazer que
sentiria dando-lhe uma dentada... Quase que já se não podia suster... já estava
de boca aberta e para saltar... Porém, lembrando-se da exótica figura em que se
via, meteu a roupa que tinha enrolada entre os dentes e, apertando-os com
força, procurava iludir sua imaginação.
-
Quem me dera já casar!... repetiu D. Clementina.
-
Isto é fácil, disse D. Gabriela; principalmente se devemos dar crédito aos que
tanto nos perseguem com finezas. Olhem, eu vejo-me doida!... mais de vinte me
atormentam! Querem saber o que me sucedeu ultimamente?... Eu confesso que me
correspondo com cinco... isto é só para ver qual dos cinco quer casar primeiro;
pois bem, ontem, uma preta que vende empadas e que se encarrega das minhas
cartas, recebeu da minha mão duas...
-
Logo duas?...
-
Ora pois, apesar de todas as minhas explicações, a maldita estava de mona.
Mesmo dizendo-lhe eu dez vezes: a de lacre azul é do Sr. Joãozinho e a de verde
é do Sr. Juca, sabem o que fez?... Trocou as cartas!
-
E o resultado?...
- Ei-lo aqui,
respondeu D. Gabriela, tirando um papel do seio; ao vir embarcar, e quando
descia a escada, a tal preta, com a destreza precisa, entregou-me este escrito
do Sr. Joãozinho: “Ingrata! Ainda tremem minhas mãos, pegando no corpo de
delito da tua perfídia! Escreves a outro? Compareces por tão horrível crime perante o júri do meu coração; e, bem que
tenhas nesse tribunal a tua beleza por advogada, o meu ciúme e justo
ressentimento, que são os juízes, te condenam às perpétuas galés do desprezo; e
só te poderás livrar delas se apelares dessa sentença para o poder moderador de
minha cega paixão.”
-
Bravo, D. Gabriela! o Sr. Joãozinho é sem dúvida estudante de jurisprudência?
-
Não, é doutor.
-
Bem mostra pelo bem que escreve.
-
Mas eu sou bem tola! conto tudo o que me sucede e ninguém me confia nada!
-
Isso é razoável, disse D. Clementina; nós devemos pagar com gratidão a confiança
de D. Gabriela. Eu começo declarando que estou comprometida com o Sr. Filipe a
deixar esta noite, embaixo da quarta roseira da rua do jardim, que vai direita
ao caramanchão, um embrulhozinho com uma trança de meus cabelos.
-
Que asneira?... por que lhe não entrega ou não lho manda entregar?...
-
Ora... eu tenho muita vergonha... antes quero assim; até parece romântico.
-
São caprichos de namorados! falou D. Quinquina; havia tanto tempo para isso!
mas, enfim, de futilidades é que amor se alimenta. Querem ver uma dessas? O meu
predileto está de luto e por isso exige que eu vá à festa de... com uma fita
preta no cabelo, em sinal de sentimento; exige ainda que eu não valse mais, que
não tome sorvetes, para não constipar, que não dê dominus tecum a moço
nenhum que espirrar ao pé de mim, e que jamais me ria quando ele estiver sério;
e a tudo isso julga ele ter muito direito por ser tenente da Guarda Nacional!
Pois, por isso mesmo, ando agora de fita branca no cabelo, valso todas as vezes
que posso, tomo sorvetes até não poder mais, dou dominus tecum aos moços
mesmo quando eles não espirram e não posso ver o Sr. Tenente Gusmão sério sem
soltar uma gargalhada.
-
Olhem lá o diabinho da sonsa! murmurou consigo mesmo Augusto, embaixo da cama.
-
E você, mana, não diz nada?... perguntou ainda ela a D. Joaninha.
-
Eu?... o que hei de dizer? respondeu esta; digo que ainda não amo.
-
É a única que ama deveras! pensou o estudante, a quem já doíam as cadeiras de
tanto agachar-se.
-
E o Sr. Fabrício?... e o Sr. Fabrício?... exclamaram as três.
-
Pois bem, tornou D. Joaninha, é o único de quem gosto.
-
Mas que temos nós feito nesta ilha?... que triunfos havemos conseguido?...
Vaidade para o lado: moças bonitas, como somos, devemos ter conquistado alguns
corações!
-
Juro que estou completamente aturdida com os protestos de eterna paixão do Sr.
Leopoldo, disse D. Quinquina; mas é uma verdadeira desgraça ser hoje moda ouvir
com paciência quanta frivolidade vem à cabeça - não direi à cabeça, porque
parece que os tolos como que não a têm, porém, aos lábios de um desenxabido
namorado. O tal Sr. Leopoldo... não é graça, eu ainda não vi estudante mais
desestudável!...
-
Você, D. Joaninha, acudiu D. Clementina, tem-se regalado hoje com o
incomparável Fabrício. Não lhe gabo o gosto... só as perninhas que ele tem!...
-
Ora, respondeu aquela; ainda não tive tempo de olhar para as pernas... mas
também você parece que não se arrepia muito com a corcova do nariz de meu
primo; confessemos, minha amiga, todas nós gostamos de ser conquistadoras.
-
Pois confessemos... isso é verdade.
-
Pela minha parte não digo nada, assobiou D. Gabriela mirando-se no espelho; mas
enfim... eu não sei se sou bonita, mas, onde quer que esteja, vejo-me sempre
cercada de adoradores; hoje, por exemplo, tenho-me visto doida...
perseguiram-me constantemente seis... era impossível ter tempo de mangar com
todos a preceito.
-
Mas, D. Gabriela, onde está o seu talento?...
-
Pois bem, que se ponha outra no meu lugar.
-
Alguns homens zombariam de doze de nós outras a um tempo... Houve já um que não
teve vergonha de escrever isto em um papel:
Num dia, numa hora,
No mesmo lugar
Eu gosto de amar
Quarenta
Cinqüenta
Sessenta:
Se mil forem belas,
Amo a todas elas.
-
Que pateta!...
-
Que tolo!...
-
Que vaidoso!
-
Essa opinião segue também o Augusto!
-
Oh!... e esse paspalhão!...
-
Ei-las comigo... murmurou entre dentes o nosso estudante, estendendo o pescoço
a modo de cágado.
-
Como lhe fica mal aquela cabeleira!... assemelha-se muito a uma preguiça.
-
Tem as pernas tortas.
-
Eu creio que ele é corcunda.
-
Não, aquilo é magreza.
-
Forte impertinente! falando é um Lucas...
-
Há de ser interessante dançando!
-
Vamos nós tomá-lo à nossa conta?
-
Vamos: pensemos nos meios de zombar dele cruelmente...
-
Pois pensemos...
Mas
elas não tiveram tempo de pensar, porque, neste momento, ouviu-se um grito de
dor, ao qual seguiu-se viva agitação no interior daquela casa, onde inda há
pouco só se respirava prazer e delícias. As quatro moças levantaram-se
espantadas.
-
Pareceu-me a voz de minha prima Carolina, exclamou D. Joaninha.
-
Coitada! que lhe sucederia?...
-
Vamos ver.
As
quatro moças correram precipitadamente para fora do quarto.
Augusto,
que não estava menos assustado, saiu de seu esconderijo, vestiu-se
apressadamente e ia, por sua vez, deixar aquele lugar, em que se vira em tantos
apuros, quando deu com os olhos na carta do Sr. Joãozinho, que, com a pressa e
agitação, havia D. Gabriela deixado cair.
O
estudante apanhou e guardou aquele interessante papel, e com prontidão e
cuidado pôde, sem ser visto, escapar-se do gabinete.
Um instante depois
foi cuidadoso procurar saber a causa do rumor que ouvira.
O
grito de dor tinha sido, com efeito, soltado por D. Carolina.
13
Os Quatro em Conferência
Ninguém
se arreceie pela nossa travessa. O grito de dor foi, na verdade, seu; mas, se
alguém corre perigo, não é certamente ela. O caso é simples.
Morava
com a Sra. D. Ana uma pobre mulher, por nome Paula, muito estimada de todos,
porque o era da despotazinha daquela ilha, de D. Carolina, a quem tinha servido
de ama. Os desvelos e incômodos que tivera na criação da menina lhe eram
sobejamente pagos pela gratidão e ternura da moça.
Ora,
todos se tinham ido para o jardim logo depois do jantar, mas o nosso amigo
Keblerc achara justo e prudente deixar-se ficar fazendo honras à meia dúzia de
lindas garrafas, das quais se achava ternamente enamorado; contudo, ele pensava
que seria mais feliz se deparasse com um companheiro que o ajudasse a reqüestar
aquelas belezas: era um amante sem zelos. Por infelicidade de Paula, o alemão a
lobrigou ao entrar num quarto. Chamou-a, obrigou-a a sentar-se junto de si,
mostrou por ela o mais vivo interesse e depois convidou-a a beber à saúde de
seu pai, sua mãe e sua família.
Não
havia remédio senão corresponder a brindes tão obrigativos. Depois não houve
ninguém no mundo a quem Keblerc não julgasse dever com a sua meia língua
dirigir uma saúde, e, como já estivesse um pouco impertinente, forçava Paula a
virar copos cheios. Passado algum
tempo, e muito naturalmente, Paula se foi tornando alegrezinha e por sua vez
desafiava Keblerc a fazer novos brindes; em resultado as seis garrafas
foram-se. Paula deixou-se ficar sentada, risonha e imóvel, junto à mesa,
enquanto o alemão, rubicundo e reluzente, se dirigiu para a sala.
Quando
daí a pouco a ama de D. Carolina quis levantar-se, pareceu-lhe que estava uma
nuvem diante de seus olhos, que os copos dançavam, que havia duas mesas, duas
salas e tudo em dobro; ergueu-se e sentiu que as paredes andavam-lhe à roda,
que o assoalho abaixava e levantava-se debaixo dos pés; depois... não pôde dar
mais que dois passos, cambaleou e, acreditando sentar-se numa cadeira, caiu com
estrondo contra uma porta. Logo confusão e movimento... Ninguém ousou pensar
que Paula, sempre sóbria e inimiga de espíritos, se tivesse deixado embriagar,
e, por isso, correram alguns escravos para o jardim, gritando que Paula acabava
de ter um ataque.
A
primeira pessoa que entrou em casa foi D. Carolina que, vendo a infeliz mulher
estirada no assoalho, caiu sobre ela, exclamando com força:
-
Oh! minha mãe!... - Foi este o seu grito de dor.
Momentos
depois Paula se achava deitada numa boa cama e rodeada por toda a família;
porém, havia algazarra tal, que mal se entendia uma palavra.
-
Isto foi o jantar que lhe deu na fraqueza, gritou uma avelhantada matrona, que
se supunha com muito jeito para a Medicina; é fraqueza complicada com o tempo
frio... não vale nada... venha um copo de vinho!
E
dizendo isto, foi despejando meia garrafa de vinho na boca da pobre Paula que,
por mais que lépida e risonha o fosse engolindo a largos tragos, não pôde
livrar-se de que a interessante Esculápia lhe entornasse boa porção pelos
vestidos.
-
São maleitas! exclamava D. Violante, com toda a força de seus pulmões... são
maleitas!... Quem lhe olha para o nariz diz logo que são maleitas! Eu já vi
curar-se uma mulher, que teve o mesmo mal, com cauda de cobra moída, torrada e
depois desfeita num copo d’água tirada do pote velho com um coco novo e com a
mão esquerda, pelo lado da parede. É fazer isso já.
-
São lombrigas! gritava uma terceira.
-
É ataque de estupor! bradava a quarta senhora.
-
É espírito maligno! acudiu outra, que foi mais ouvida que as primeiras... é espírito
maligno que lhe entrou no corpo! venha quanto antes um padre com água benta e
seu breviário.
-
Ora, para que estão com tal azáfama?... disse uma senhora, que acabava de
entrar no quarto; não se vê logo que isto não passa de uma mona, que a boa da
Paula tomou? Olhem: até tem o vestido cheio de vinho.
-
Mona, não senhora! acudiu D. Carolina; a minha Paula nunca teve tão feio
costume, e, se está molhada com vinho, a culpa é desta senhora, que há pouco
lhe despejou meia garrafa por cima. Oh! é bem cruel que, mesmo vendo-se a minha
dor, digam semelhantes coisas!...
No
meio de toda esta balbúrdia era de ver-se o zelo e a solicitude da menina
travessa!... Observava-se aquela Moreninha de quinze anos, que parecera somente
capaz de brincar e ser estouvada, correndo de uma para outra parte, prevenindo
tudo e aparecendo sempre onde se precisava apressar um serviço ou acudir a um
reclamo. Só cuidava de si quando devia enxugar as lágrimas.
Junto
do leito apareceram os quatro estudantes.
Curto
foi o exame. O rosto e o bafo da doente bastaram para denunciar-lhes com
evidência a natureza da moléstia.
-
Isto não vale a pena, disse Filipe em tom baixo a seus colegas; é uma mona de
primeira ordem.
-
Está claro, vamos sossegar estas senhoras.
- Não, tornou Filipe,
sempre em voz baixa; aturdidas pelo caso repentino e preocupadas pela
sobriedade desta mulher, nenhuma delas quer ver o que está diante de seus
olhos, nem sentir o cheiro que lhes está entrando pelo nariz; minha irmã
ficaria inconsolável, brigaria conosco e não nos acreditaria, se lhe
disséssemos que sua ama se embebedou; e, portanto, podemos aproveitar as
circunstâncias, zombar de todas elas e divertir-nos fazendo uma conferência.
-
Oh diabo!... isso é do catecismo dos charlatães!
-
Ora, não sejas tolo... não pareces estudante; devemos lançar mão de tudo o que
nos possa dar prazer e não ofenda os outros.
-
Mas que iremos dizer nesta conferência, senão que ela está espirituosa demais?
perguntou Augusto.
-
Diremos tudo o que nos vier à cabeça, ficando entendido que as honras
pertencerão ao que maior número de asneiras produzir; o caso é que nos não
entendam, ainda que também nós não entendamos.
-
Há de ser bonito, tornou Augusto, à vista de tanta gente que, por força,
conhecerá esta patacoada.
-
Qual conhecer?... aqui ninguém nos entende, tornou Filipe, que, voltando-se
para os circunstantes, disse com voz teatralmente solene: - Meus senhores,
rogamos breves momentos de atenção; queremos conferenciar.
Movimento
de curiosidade.
Seguiu-se
novo exame da enferma, no qual os quatro estudantes fingiram observar o pulso,
a língua, o rosto e os olhos da enferma auscultaram e percutiram-lhe o peito e
fizeram todas as outras pesquisas do costume.
Depois
eles se colocaram em um dos ângulos do quarto. Filipe teve a palavra. Profundo
silêncio.
-
Acabastes, senhores, de fazer-me observar uma enfermidade que não nos deixa de
pedir sérias atenções e sobre a qual eu vou respeitosamente submeter o meu
juízo. Poucas palavras bastam. A moléstia de que nos vamos ocupar não é nova
para nós; creio, mesmo, senhores, que qualquer de vós já a tem padecido muitas
vezes...
-
Está enganado.
-
Não respondo aos apartes. Eu diagnostico uma baquites. Concebe-se perfeitamente
que as etesias desenvolvidas pela decomposição dos éteres espasmódicos e
engendrados no alambique intestinal, uma vez que a compresão do diafragma lhes
cause vibrações simpáticas que os façam caminhar pelo canal colédoco até o
periósteo dos pulmões...
- C’est trop fort!...
- Daí, passando à garganta, perturbam a
quimificação da hematose, que por isso se tornando em linfa hemostática, vá de
um jacto causar um tricocéfalo no esfenóide, podendo mesmo produzir uma
protorragia nas glândulas de Meyer, até que, penetrando pelas câmaras ópticas,
no esfíneter do cerebelo, cause um retrocesso prostático, como pensam os
modernos autores, e promovam uma rebelião entre os indivíduos cerebrais: por
conseqüência isto é nervoso.
-
Muito bem concluído.
-
O tratamento que proponho é concludente: algumas gotas de éter sulfúrico numa
taça do líquido fontâneo açucarado; o cozimento dos frutos do coffea arabica
torrados, ou mesmo o thea sinensis; e quando isto não baste, o que julgo
impossível, as nossas lancetas estão bem afiadas e duas libras de sangue de
menos não farão falta à doente. Disse:
-
Como ele fala bem! murmurou uma das moças.
Fabrício
tomou a palavra.
-
Sangue! sempre sangue! eis a Medicina romântica do insignificante Broussais!
mas eu detesto tanto a Medicina sanguinária, como a estercorária, herbária,
sudorária e todas as que acabam em ária. Desde Hipócrates, que foi o maior
charlatão do seu tempo, até os nossos dias, tem triunfado a ignorância, mas já,
enfim, brilhou o sol da sabedoria... Hahnemann... ah!... quebrai vossas
lancetas, senhores! para curar o mundo inteiro basta-vos uma botica
homeopática, com o Amazonas ao pé!... queimai todos os vossos livros, porque a
verdade está só, exclusivamente, no alcorão de nosso Mafoma, no Organon do
grande homem! Ah! se depois do divino sistema morre por acaso alguém, é por se
não ter ainda descoberto o meio de dividir em um milhão de partes cada simples
átomo da matéria! Senhores, eu concordo com o diagnóstico de meu colega, mas
devo combater o tratamento por ele oferecido. Uma taça de líquido fontâneo
açucarado, e acidulado com algumas gotas de éter sulfúrico, é, em minha
opinião, capaz de envenenar a todos os habitantes da China! O mesmo direi do
cozimento do coffea arabica...
-
Mas por que não têm morrido envenenados os que por vezes o têm já tomado?...
-
Eis aí a consideração que os leva ao erro!... Senhor meu colega, é porque a
ação maléfica desses medicamentos não se faz sentir logo... às vezes só aparece
depois de cem, duzentos e mais anos... eis a grande verdade!... Mas eu tenho
observações de moléstias de natureza da que nos ocupa e que vão mostrar a
superioridade do meu sistema. Ouçam-me. Uma mulher padecia este mesmo mal; já
tinha sofrido trinta sangrias; haviam-lhe mandado aplicar mais de trezentas
bichas, purgantes sem conta, vomitórios às dúzias e tisanas aos milheiros; quis
o seu bom gênio que ela recorresse a um homeopata, que, com três doses, das
quais cada uma continha apenas a trimilionésima parte de um quarto de grão de nihilitas
nihilitatis, a pôs completamente restabelecida; e quem quiser pode ir vê-la
na rua... É certo que não me lembro agora onde, mas posso afirmar que ela mora
em uma casa e que hoje está nédia, gorda, com boas cores e até remoçou e ficou
bonita... Outro fato.
-
Basta! basta!...
-
Pois bem, basta; e propondo a aplicação da nihilitas nihilitatis na dose
da trimilionésima parte de um quarto de grão, dou por terminado o meu discurso.
-
O Sr. Leopoldo tem a palavra.
-
Senhores, eu devo confessar que restam-me muitas dúvidas a respeito do diagnóstico
e, portanto, julgo útil recorrermos ao magnetismo animal, para vermos se a
enferma, levada ao sonambulismo, nos aclara sua enfermidade. Além disto, eu
tenho fé de que não há moléstia alguma que possa resistir à maravilhosa
aplicação dos passes, que tanto abismaram Paracelso e Kisker. Ainda mais: se o
diagnóstico do colega que falou em primeiro lugar é exato, dobrada razão acho
para sustentar o meu parecer porque, enfim, se similia similibus curantur, necessariamente
o magnetismo tem de curar a baquites. Voto, pois, para que comecemos já a
aplicar-lhe os passes.
Seguiu-se
o discurso de Augusto que, por longo demais, parece prudente omitir. Em resumo
basta dizer que ele combateu as raras teorias de Filipe, mas concordou com o
tratamento por ele proposto e falou com arte tal que D. Carolina o escolheu
para assistente de sua ama.
Augusto
determinou as aplicações convenientes ao caso, mas, não tendo entrado no número
delas a essencial lembrança de um escalda-pés, caiu a tropa das mezinheiras
sobre o desgraçado estudante, que se viu quase doido com a balbúrdia de novo
alevantada no quarto.
-
Menos ruído, minhas senhoras, dizia o rapaz; isto pode ser fatal à doente!
-
Ora... eu nunca vi negar-se um escalda-pés!
-
Ainda em cima de não lhe mandar aplicar uma ajuda, esquece-se também do
escalda-pés!...
-
Se não lhe derem um escalda-pés, eu não respondo pelo resultado!...
-
Olhem como a doente está risonha, só por ouvir falar em escalda-pés!...
-
Aquilo é pressentimento!
-
Sr. Doutor, um escalda-pés!...
-
Pois bem, minhas senhoras, disse Augusto para se ver livre delas, dêem-lhe o
preconizado escalda-pés!
E
fugindo logo do quarto, foi pensando consigo mesmo que as coisas que mais
contrariam o médico são: primeiro, a saúde alheia, segundo, um mau enfermeiro
e, por último, enfim, as senhoras mezinheiras.
14
Pedilúvio Sentimental
Ria-se,
jogava-se, brincava-se. Todos se haviam já esquecido da pobre Paula. Na verdade
também que, por ter a ama de D. Carolina tomado seu copo de vinho de mais, não
era justo que tantas moças e moços, em boa disposição de brincar, e umas poucas
de velhas determinadas a maçar meio mundo, ficassem a noite inteira pensando na
carraspana da rapariga. E além disso, quatro semidoutores já haviam pronunciado
favorável diagnóstico; como, pois, se arrojaria Paula a morrer, contra a ordem
expressa dos quatro hipocratíssimos senhores?...
Era
por isso que todos brincavam alegremente, menos o Sr. Keblerc que, diante de
meia dúzia de garrafas vazias, roncava prodigiosamente; grande alemão para
roncar!... era uma escala inteira que ele solfejava com bemóis, bequadros e
sustenidos!... dir-se-ia que entoava um hino... a Baco.
Os
rapazes estavam nos seus gerais; a princípio, como é seu velho costume, haviam
festejado, cumprimentado e aplaudido as senhoras idosas que se achavam na sala,
principalmente aquelas que tinham trazido consigo moças; mas, passada meia
hora, adeus etiquetas e cerimônias!... Estabeleceu-se um cordão sanitário entre
a velhice e a mocidade; a Sra. D. Ana achou a ocasião oportuna para ir dar
ordens ao chá, D. Violante ocupou-se em desenvolver a um velho roceiro os meios
mais adequados para se preencher o defict provável do Brasil para o ano
financeiro de 44 a 45, sem aumentar os direitos de importação, nem criar
impostos, abolindo-se, pelo contrário, a décima urbana. Já se vê que D.
Violante tinha casas na cidade. Restavam quatro senhoras, que julgaram a
propósito jogar o embarque, que na verdade as divertia muito, como o episódio
do ás galar o sete; havia, enfim, outra mesa em que alguns senhores, viúvos,
casados e velhos pais perdiam ou ganhavam dinheiro no écarté, jugo muito
bonito e muito variado, que nos vieram ensinar os senhores franceses, grandes
inventores, sem dúvida!...
A
rapazia empregava melhor o seu tempo: também jogava, mas na sua roda não havia
nem mesa, nem cartas, nem dados. O seu jogo tinha diretor que, exceção de regra
entre os mais, não podia ter menos de cinqüenta anos. Era um homem de estatura
muito menos que ordinária, tinha o rosto muito vermelho, cabelos e barbas
ruivas, gordo, de pernas arqueadas, ajuntava ao ridículo de sua figura muito
espírito; não estava bem senão entre rapazes, por felicidade deles sempre se
encontra desses. Tal o diretor da roda dos moços. O Sr. Batista (este é o seu
nome) era fértil em jogos; quando um aborrecia, vinha logo outro melhor. Já se
havia jogado o do toucador e o do enfermo. O terceiro agradou tanto, que se
repetia pela duodécima vez, com aplauso geral, principalmente das moças: era,
sem mais nem menos, o jogo da palhinha.
Caso
célebre!... já se viu que coincidência!... ora expliquem, se são capazes...
Tem-se jogado a palhinha doze vezes e em todas as doze tem a sorte feito com
que Filipe abrace D. Clementina e Fabrício D. Joaninha! E sempre, no fim de
cada jogo, qualquer das duas recua um passo, como se pouca vontade houvesse
nelas de dar o abraço, e fazendo-se coradinha, exclama:
-
Quantos abraços!... pois outra vez?...
-
Eu já não dei inda agora?... ora isto!...
Entre
os rapazes, porém, há um que não está absolutamente satisfeito: é Augusto. Será
por que no tal jogo da palhinha tem por vezes ficado viúvo?... não! ele
esperava isso como castigo de sua inconstância. A causa é outra: a alma
da ilha de... não está na sala! Augusto vê o jogo ir indo o seu caminho muito
em ordem; não se rasgou ainda nenhum lenço, Filipe ainda não gritou com a dor
de nenhum beliscão, tudo se faz em regra e muito direito; a travessa, a
inquieta, a buliçosa, a tentaçãozinha não está aí; D. Carolina está ausente!...
Com
efeito, Augusto, sem amar D. Carolina (ele assim o pensa), já faz dela idéia
absolutamente diversa da que fazia ainda há poucas horas. Agora, segundo ele, a
interessante Moreninha é, na verdade, travessa, mas a cada travessura ajunta
tanta graça, que tudo se lhe perdoa. D. Carolina é o prazer em ebulição; se é
inquieta e buliçosa, está em sê-lo a sua maior graça; aquele rosto moreno, vivo
e delicado, aquele corpinho, ligeiro como abelha, perderia metade de que vale,
se não estivesse em contínua agitação. O beija-flor nunca se mostra tão belo
como quando se pendura na mais tênue flor e voeja nos ares; D. Carolina é um
beija-flor completo.
Neste
momento a Sra. D. Ana entrou na sala, e depois, dirigindo-se à grande varanda da
frente, sentou-se defronte do jardim. Batista acabava de dar fim ao jogo da
palhinha e começava novo; Augusto pediu que o dispensassem e foi ter com a dona
da casa.
-
Não joga mais, Sr. Augusto? disse ela.
-
Por ora não, minha senhora.
-
Parece-me pouco alegre.
-
Ao contrário... estou satisfeitíssimo.
-
Oh! seu rosto mostra não sentir o que me dizem seus lábios; se aqui lhe falta
alguma coisa.
-
Na verdade que aqui não está tudo, minha senhora.
-
Então que falta?
-
A Sra. D. Carolina.
A
boa senhora riu-se com satisfação. Seu orgulho de avó acabava de ser incensado;
era tocar-lhe no fraco.
- Gosta de minha
neta, Sr. Augusto?
-
É a delicada borboleta deste jardim, respondeu ele, mostrando as flores.
-
Vá buscá-la, disse a Sra. D. Ana, apontando para dentro.
-
Minha senhora, tanta honra!...
-
O amigo de meu neto deve merecer minha confiança; esta casa é dos meus amigos e
também dos dele. Carolina está sem dúvida no quarto de Paula; vá vê-la e
consiga arrancá-la de junto de sua ama.
A
Sra. D. Ana levou Augusto pela mão até ao corredor e depois o empurrou
brandamente.
-
Vá, disse ela, e receba isso como a mais franca prova de minha estima para com
o amigo de meu neto.
Augusto
não esperou ouvir nova ordem: e endireitou para o quarto de Paula, com presteza
e alegria. A porta estava cerrada; abriu sem ruído e parou no limiar.
Três
pessoas havia nesse quarto: Paula, deitada e abatida sob o peso de sua sofrível
mona, era um objeto triste e talvez ridículo, se não padecesse; a segunda era
uma escrava que acabava de depor, junto do leito, a bacia em que Paula deveria
tomar o pedilúvio recomendado, objeto indiferente; a terceira era uma menina de
quinze anos, que desprezava a sala, em que borbulhava o prazer, pelo quarto em
que padecia uma pobre mulher; este objeto era nobre...
D.
Carolina e a escrava tinham as costas voltadas para a porta e por isso não viam
Augusto: Paula olhava, mas não via, ou antes não sabia o que via.
-
Anda, Tomásia, dá-lhe o escalda-pés! disse D. Carolina.
Pela
sua voz conhecia-se que tinha chorado.
A
escrava abaixou-se; puxou os pés da pobre Paula; depois, pondo a mão n’água,
tirou-a de repente, e sacudindo-a:
-
Está fervendo!... disse.
- Não está fervendo,
respondeu a menina; deve ser bem quente, assim disseram os moços.
A
escrava tornou a pôr a mão e de novo retirou-a com presteza tal, que bateu com
os pés de Paula contra a bacia.
-
Estonteada!... sai... afasta-te, exclamou D. Carolina, arregaçando as mangas de
seu lindo vestido.
A
escrava não obedeceu.
-
Afasta-te daí, disse a menina com tom imperioso; e depois abaixou-se no lugar
da escrava, tomou os pés de sua ama, apertou-os contra o peito, chorando, e
começou a banhá-los.
Belo
espetáculo era o ver essa menina delicada, curvada aos pés de uma rude mulher,
banhando-os com sossego, mergulhando suas mãos, tão finas, tão lindas, nessa
mesma água que fizera lançar um grito de dor à escrava, quando aí tocara de
leve com as suas, tão grosseiras e calejadas!... Os últimos vislumbres das
impressões desagradáveis que ela causara a Augusto, de todo se esvaíram.
Acabou-se a criança estouvada... ficou em seu lugar o anjo de candura.
Mas
o sensível estudante viu as mãozinhas tão delicadas da piedosa menina já roxas,
e adivinhou que ela estava engolindo suas dores para não gemer; por isso não
pôde suster-se e, adiantando-se, disse:
-
Perdoe, minha senhora.
-
Oh!... o senhor estava aí?
-
E tenho testemunhado tudo!
A
menina abaixou os olhos, confusa e apontando para a doente, disse:
-
Ela me deu de mamar...
-
Mas nem por isso deve a senhora condenar suas lindas mãos a serem queimadas,
quando algum dos muitos escravos que a cercam poderia encarregar-se do trabalho
em que a vi tão piedosamente ocupada.
-
Nenhum o fará com jeito.
-
Experimente.
-
Mas a quem encarregarei?
-
A mim, minha senhora.
-
O senhor falava de meus escravos...
-
Pois nem para escravo eu presto?
-
Senhor!...
-
Veja se eu sei dar um pedilúvio!
E
nisto o estudante abaixou-se e tomou os pés de Paula, enquanto D. Carolina,
junto dele, o olhava com ternura.
Quando
Augusto julgou que era tempo de terminar, a jovenzinha recebeu os pés de sua
ama e os envolveu na toalha que tinha nos braços.
Agora
deixemo-la descansar, disse o moço.
-
Ela corre algum risco?... perguntou a menina.
-
Afirmo que acordará amanhã perfeitamente boa.
-
Obrigada!
-
Quer dar-me a honra de acompanhá-la até à sala? disse Augusto, oferecendo a mão
direita à bela Moreninha.
Ela
não respondeu, mas olhou-o com gratidão, e aceitando o braço do mancebo deixou
o quarto de Paula.
15
Um Dia em Quatro Palavras
Ao romper do dia de Sant’Ana
estavam todos na ilha de... descansando nos braços do sono; era isso muito
natural, depois de uma noite como a da véspera, em que tanto se havia brincado.
Com efeito, os jogos de prendas
tinham-se prolongado excessivamente. A chegada de D. Carolina e Augusto lhes
deu ainda dobrada viveza e fogo. A bonita Moreninha tornou-se mais travessa do
que nunca; mil vezes bulhenta, perturbava a ordem dos jogos, de modo que era
preciso começar de novo o que já estava no fim; outras tantas rebelde, não
cumpria certos castigos que lhe impunham, não deu um só beijo e aquele que
atreveu-se a abraçá-la teve em recompensa um beliscão.
Finalmente,
ouviu-se a voz de: - vamos dormir, e cada qual tratou de fazer por consegui-lo.
O
último que se deitou foi Augusto e ignora-se por que saiu de luz na mão, a
passear pelo jardim, quando todos se achavam acomodados; de volta do seu
passeio noturno, atirou-se entre Fabrício e Leopoldo e imediatamente adormeceu.
Os estudantes dormiram juntos.
São
seis horas da manhã e todos dormem ainda o sono solto.
Um
autor pode entrar em toda parte e, pois... Não, não, alto lá! no gabinete das
moças... não senhor, no dos rapazes, ainda bem. A porta está aberta. Eis os
quatro estudantes estirados numa larga esteira; e como roncam!... Mas que faz o
nosso Augusto? Ri-se, murmura frases imperceptíveis, suspira... Então que é
isso lá?... dá um beijo em Fabrício, acorda espantado e ainda em cima empurra
cruelmente o mesmo a quem acaba de beijar...
Oh!
beleza! oh! inexplicável poder de um rosto bonito que, não contente com as
zombarias que faz ao homem que vela, o ilude e ainda zomba dele dormindo!
Estava
o nosso estudante sonhando que certa pessoa, de quem ele teve até aborrecimento
e que agora começa com os olhos travessos a fazer-lhe cócegas no coração, vinha
terna e amorosamente despertá-lo; que ele fingira continuar a dormir e ela se
sentara à sua cabeceira; que traquinas como sempre, em vez de chamá-lo, queria
rir-se, acordando-o pouco a pouco; que, para isso, aproximava seu rosto do
dele, e, assoprando-lhe os lábios, ria-se ao ver as contrações que produzia a
titilação causada pelo sopro; que ele, ao sentir tão perto dos seus os lindos
lábios dela, estava ardentemente desejoso de furtar-lhe um beijo, mas que temia
vê-la fugir ao menor movimento; que, finalmente, não podendo mais resistir aos
seus férvidos desejos, assentara de, quando se aproximasse o belo rosto, ir de
um salto colher o voluptuoso beijo naquela boquinha de botão de rosa; que o
rosto chegou à distância de meio palmo e... (aqui parou o sonho e principiou a
realidade) e ele deu um salto e, em lugar de pregar um terno beijo nos lábios
de D. Carolina, foi, com toda a força e estouvamento, bater com os beiços e
nariz contra a testa de Fabrício; e como se o colega tivesse culpa de tal
infelicidade, deu-lhe dois empurrões, dizendo:
-
Sai-te daí, peste!... ora, quando eu sonhava com um anjo, acordo-me nos braços
de Satanás!...
Corra-se,
porém, um véu sobre quanto se passou até que se levantaram do almoço. A
sociedade se dividiu logo depois em grupos. Uns conversavam, outros jogavam,
dois velhos ferraram-se no gamão, as moças espalharam-se pelo jardim e os
quatro estudantes tiveram a péssima lembrança de formar uma mesa de voltarete.
E
apesar do poder todo da cachaça do jogo, de cada vez quer qualquer deles dava
cartas, ficava na mesa um lugar vazio e junto do arco da varanda, que olhava
para o jardim, colocava-se uma sentinela.
Já
se vê que o voltarete não podia seguir marcha muito regular. Augusto, por
exemplo, distraía-se com freqüência tal, que às vezes passava com basto e
espadilha e era codilhado todas as mãos que jogava de feito.
A
Moreninha já fazia travessuras muito especiais no coração do estudante; e ele,
que se acusava de haver sido injusto para com ela, agora a observava com
cuidado e prazer, para, em compensação, render-lhe toda a justiça.
D.
Carolina brilhava no jardim e, mais que as outras, por graças e encantos que
todos sentiam e que ninguém poderia bem descrever, confessava-se que não era
bela, mas jurava-se que era encantadora; alguém queria que ela tivesse maiores
olhos, porém não havia quem resistisse à viveza de seus olhares; as que mais
apaixonados fossem da doce melancolia de certos semblantes em que a languidez
dos olhos e brandura de custosos risos estão exprimindo amor ardente e
sentimentalismo, concordariam por força que no lindo rosto moreno de D.
Carolina nada iria melhor do que o prazer que nele transluz e o sorriso
engraçado e picante que de ordinário enfeita seus lábios; além disto, sempre em
brincadora guerra com todos e em interessante contradição consigo mesma, ela a
um tempo solta um ai e uma risada, graceja, fazendo-se de grave, fala, jurando
não dizer palavra, apresenta-se, escondendo-se, sempre quer, jamais querendo.
Nunca
também se havia mostrado a Moreninha tão jovial e feiticeira, mas para isso
boas razões havia: esse era o dia dos anos de sua querida avó e a pobre Paula,
sua estimada ama, estava completamente restabelecida.
Eis
uma deliciosa invasão!... dez moças entram de repente na varanda e num momento
dado tudo se confunde e amotina; D. Carolina atira no meio da mesa do voltarete
uma mão cheia de flores; enquanto Filipe faz tenção de dirigir-lhe um discurso
admoestador, ela furta-lhe a espadilha e voa, para tornar a aparecer logo
depois. É impossível continuar assim!... dá-se por acabado o jogo e a
Moreninha, à custa de um único sorriso, faz as pazes com o irmão.
-
Parabéns, Sra. D. Joaquina, disse Augusto; já triunfou de uma de suas rivais!
-
Como?... perguntou ela.
-
Ora, que esta minha prima nunca entende as figuras do Sr. Augusto, acudiu D.
Carolina; explique-se, Sr. Doutor!
-
Sua prima, minha senhora, a aurora e a rosa disputam sobre qual primará na
viveza da cor, e eu vejo que ela já tem presa no cabelo uma das duas rivais.
-
Eu o encarrego com prazer da guarda fiel desta minha competidora... seja o seu
carcereiro! disse D. Quinquina, querendo tirar uma linda rosa do cabelo, para
oferecê-la a Augusto.
-
Ó minha senhora! seria um cruel castigo para ela, que se mostra tão vaidosa!
-
Pois rejeita?...
-
Certo que não; aceito mas rogo um outro obséquio.
-
Qual?...
-
Que por ora lhe conceda seus cabelos por homenagem.
-
Pois bem, será satisfeito; eu guardarei a sua rosa.
-
Mas cuidado, não haja quem liberte a bela cativa! disse Leopoldo.
-
Protesto que a hei de furtar, acrescentou D. Carolina.
-
Desafio-lhe a isso! respondeu-lhe a prima.
Então
começou uma luta de ardis e cuidados entre a Moreninha e D. Quinquina. Aquela já
tinha debalde esgotado quantos estratagemas lhe pôde sugerir seu fértil
espírito, e enfim, fingindo-se fatigada, veio sossegadamente conversar junto de
D. Quinquina, que, não menos viva, conservava-se na defensiva.
Depois
de uma meia hora de hábil afetação, a menina travessa, com um rápido movimento,
fez cair o leque de sua adversária; Leopoldo abaixou-se para levantá-lo e D.
Quinquina, um instante despercebida, curvou-se também e soltou logo um grito,
sentindo a mão da prima sobre a rosa, e com a sua foi acudir a esta; houve um
conflito entre duas finas mãozinhas, que mutuamente se beliscaram, e em
resultado desfolhou-se completamente a rosa.
-
Morreu a bela cativa!... morreu a pobre cativa!... gritaram as moças.
-
D. Carolina está criminosa! disse D. Clementina.
-
Vai ao júri, minha senhora!
-
É verdade, vamos levá-la ao júri.
A
idéia foi recebida com aplauso geral, só Filipe se opôs.
-
Não, não, disse ele. Carolina é muito rebelde, e se fosse condenada não
cumpriria a sentença.
-
Ó maninho! não diga isso.
-
Você jura obedecer?...
-
Eu juro por você.
-
Tanto pior... era mais um motivo para se tornar perjura.
-
Pois bem, dou a minha palavra, não é suficiente?
-
Basta! basta!
Organizou-se
o júri; Fabrício foi encarregado da presidência, um outro moço serviu de
escrivão, e cinco moças saíram por sorte para juradas; D. Clementina terá de
ser a relatora da sentença. Augusto foi declarado suspeito na causa, e Filipe
foi escolhido para advogado da ré e Leopoldo da autora.
A
sessão começou.
Longo
fora enumerar tudo o que se passou em duas horas muito agradáveis e por isso
muito breves, também.
Toda
a companhia veio tomar parte naquele divertimento improvisado e até, quem o
diria?!, os dois velhos deixaram o tabuleiro do gamão! Resuma-se alguma coisa.
As
testemunhas foram D. Gabriela e uma outra, que deram provas de bastante
espírito. O interrogatório de D. Carolina fez rir a quantos o ouviram. O debate
dos advogados esteve curioso.
Leopoldo
acusou a ré, demonstrando que tinha havido a circunstância agravante da
premeditação e que o crime se tornava ainda mais feio, por ser causado pelo
ciúme; procurou provar que D. Carolina, cônscia de seus encantos e beleza,
queria ser senhora absoluta de todos os corações e até de todos os seres, que
ela se enchera de zelos supondo, com razão, que Augusto desse subido valor à
rosa, por lhe ser dada por uma moça bela como a autora e, enfim, que o ciúme da
ré era tão excessivo, que já na tarde antecedente jurara a perda daquela flor,
por desconfiar que o zéfiro brincava mais com ela do que com seus olhos.
Filipe
não se deixou ficar atrás. Argumentou dizendo que era impossível decidir que
mão tinha dado a morte à bela cativa, que não houvera premeditação, porque a ré
não quisera matar mas, sim libertar; que, se havia crime, só o cometera a
autora, por prender uma inocente flor; e que, por último, ainda quando fosse a
ré que desfolhara a rosa e mesmo dando-se o propósito de o fazer, dever-se-ia
atribuir tal ação à piedade, pois que D. Quinquina a estava matando pouco a pouco
com o veneno da inveja, colocando-a tão perto de suas faces, que tanto a
venciam em rubor e viço.
As
juradas recolheram-se à toilette e cinco minutos depois voltaram com a
sentença, que foi lida por D. Clementina.
O
júri declarou D. Carolina criminosa e a condenou a indenizar o dono da rosa com
um beijo.
-
Para fazer tal, disse a ré, não carecia eu de sentença do júri; tome um beijo,
minha prima...
-
Não é a mim que o deve dar, respondeu a autora; o dono da rosa é o Sr. Augusto.
De
rosa fez-se então o rosto de D. Carolina.
-
O beijo! o beijo! gritaram as juradas. Você deu sua palavra!
Ela
hesitou alguns momentos... depois, aproximou-se de Augusto e, com seu sorriso
feiticeiro e irresistível nos lábios, disse:
-
O senhor me perdoa?...
-
Não! Não! Não! - clamaram de todos os lados.
Mas
a menina parecia contar com o poder de seus lábios, porque, sorrindo-se ainda
do mesmo modo, tornou a perguntar com meiguice e ternura:
-
Me perdoa?...
-
Não! não!
-
Porém, como resistir ao seu sorriso?... como dizer que não a quem pede como
ela?... exclamou Augusto, entusiasmado.
D.
Carolina estava, pois, perdoada.
- Agradecida! disse
ela com vivo acento de gratidão e estendeu sua destra para Augusto que, não
podendo ceder tudo com tão criminoso desinteresse, tomou entre as suas aquela
mãozinha de querubim e fez estalar sobre ela o beijo mais gostoso que tinham
até então dado seus lábios.
A
manhã deste dia foi assim passada; e á tarde voltou-se aos preparativos do
sarau.
16
O Sarau
Um sarau é o bocado
mais delicioso que temos, de telhados abaixo. Em um sarau todo o mundo
tem que fazer. O diplomata ajusta, com um copo de champanha na mão, os mais
intrincados negócios; todos murmuram e não há quem deixe de ser murmurado. O
velho lembra-se dos minuetes e das cantigas do seu tempo, e o moço goza todos
os regalos da sua época; as moças são no sarau como as estrelas no céu; estão
no seu elemento: aqui uma, cantando suave cavatina, eleva-se vaidosa nas asas
dos aplausos, por entre os quais surde, às vezes, um bravíssimo inopinado, que
solta de lá da sala do jogo o parceiro que acaba de ganhar sua partida no écarté,
mesmo na ocasião em que a moça se espicha completamente, desafinando um
sustenido; daí a pouco vão outras, pelos braços de seus pares, se deslizando
pela sala e marchando em seu passeio, mais a compasso que qualquer de nossos
batalhões da Guarda Nacional, ao mesmo tempo que conversam sempre sobre objetos
inocentes que movem olhaduras e risadinhas apreciáveis. Outras criticam de uma
gorducha vovó, que ensaca nos bolsos meia bandeja de doces que veio para o chá,
e que ela leva aos pequenos que, diz, lhe ficaram em casa. Ali vê-se um
ataviado dandy que dirige mil finezas a uma senhora idosa, tendo os
olhos pregados na sinhá, que senta-se ao lado. Finalmente, no sarau não é
essencial ter cabeça nem boca, porque, para alguns é regra, durante ele, pensar
pelos pés e falar pelos olhos.
E
o mais é que nós estamos num sarau. Inúmeros batéis conduziram da Corte para a
ilha de... senhoras e senhores, recomendáveis por caráter e qualidades; alegre,
numerosa e escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em toda
a parte borbulhar o prazer e o bom gosto.
Entre
todas essas elegantes e agradáveis moças, que com aturado empenho se esforçam
por ver qual delas vence em graça, encantos e donaires, certo que sobrepuja a
travessa Moreninha, princesa daquela festa.
Hábil
menina é ela! nunca seu amor-próprio produziu com tanto estudo seu toucador e,
contudo, dir-se-ia que o gênio da simplicidade a penteara e vestira. Enquanto
as outras moças haviam esgotado a paciência de seus cabeleireiros, posto em
tributo toda a habilidade das modistas da Rua do Ouvidor e coberto seus colos
com as mais ricas e preciosas jóias, D. Carolina dividiu seus cabelos em duas
tranças, que deixou cair pelas costas: não quis adornar o pescoço com seu
adereço de brilhantes, nem com seu lindo colar de esmeraldas; vestiu um
finíssimo, mas simples vestido de garça, que até pecava contra a moda reinante,
por não ser sobejamente comprido. E vindo assim aparecer na sala, arrebatou
todas as vistas e atenções.
Porém,
se um atento observador a estudasse, descobriria que ela adrede se mostrava
assim, para ostentar as longas e ondeadas madeixas negras, em belo contraste
com a alvura de seu vestido branco, para mostrar, todo nu, o elevado colo de
alabastro, que tanto a formoseia, e que seu pecado contra a moda reinante não
era senão um meio sutil de que se aproveitara para deixar ver o pezinho mais
bem-feito e mais pequeno que se pode imaginar.
Sobre
ela estão conversando agora mesmo Fabrício e Leopoldo. Terminam sem dúvida a
sua prática. Não importa; vamos ouvi-los.
-
Está na verdade encantadora!... repetiu pela quarta vez aquele.
-
Danças com ela? perguntou Leopoldo.
-
Não, já estava engajada para doze quadrilhas.
- Oh! lá vai ter com
ela o nosso Augusto. Vamos apreciá-lo.
Os dois estudantes
aproximaram-se de Augusto, que acabava de rogar à linda Moreninha a mercê da
terceira quadrilha.
- Leva de tábua,
disse Fabrício ao ouvido de Leopoldo... é a mesma que eu lhe havia pedido.
Mas a jovenzinha
pensou um momento antes de responder ao pretendente; olhou para Fabrício e com
particular mover de lábios pareceu mostrar-se descontente; depois riu-se e
respondeu a Augusto:
- Com muito prazer.
- Mas, minha
senhora, disse Fabrício, vermelho de despeito e aturdido com um beliscão que
lhe dera Leopoldo; há cinco minutos que já estava engajada até a duodécima.
- É verdade, tornou
D. Carolina; e agora só acabo de ratificar uma promessa: o Sr. Augusto poderá
dizer se ontem pediu-me ou não a terceira contradança?
- Juro... balbuciou
Augusto.
- Basta! acudiu
Fabrício interrompendo-o; é inútil qualquer juramento de homem, depois das
palavras de uma senhora.
Fabrício e Leopoldo
retiraram-se; D. Carolina, que tinha iludido o primeiro, vendo brilhar o prazer
na face de Augusto, e temendo que daquela ocorrência tirasse este alguma
explicação lisonjeira demais, quis aplicar um corretivo e, erguendo-se, tomou o
braço de Augusto. Aproveitando o passeio, disse:
- Agradeço-lhe a
condescendência com que ia tomar parte na minha mentira... foi necessário que
eu praticasse assim; quero antes dançar com qualquer, do que com aquele seu
amigo.
- Ofendeu-lhe, minha
senhora?
- Certo que não,
mas... diz-me coisas que não quero saber.
- Então... que diz
ele?...
- Fala tantas vezes
em amor...
- Meu Deus! é um
crime que eu tenho estado bem perto de cometer!
- Pois bem, foi esta
a única razão.
- Mas eu temo perder
a minha contradança... alguns momentos mais e serei réu como Fabrício.
- A culpa será de
seus lábios.
- Antes dos seus
olhos, minha senhora.
- Cuidado, Sr.
Augusto! lembre-se da contradança!
- Pois será preciso
dizer que a detesto?...
- Basta não dizer
que me ama.
- É não dizer o que sinto,
eu... não sei mentir.
- Ainda há pouco ia
jurar falso...
- Nas palavras de um
anjo ou de uma...
- Acabe.
- Tentaçãozinha.
- Perdeu a terceira
contradança.
- Misericórdia! eu
não falei em amor!...
Neste momento a
orquestra assinalou o começo do sarau. É preciso antecipar que nós não vamos
dar ao trabalho de descrever este, é um sarau, como todos os outros, basta
dizer o seguinte:
Os velhos
lembraram-se do passado, os moços aproveitaram o presente, ninguém cuidou do
futuro. Os solteiros fizeram por lembrar-se do casamento, os casados
trabalharam por esquecer-se dele. Os homens jogaram, falaram em política e
reqüestaram as moças; as senhoras ouviram finezas, trataram de modas e
criticaram desapiedadamente umas das outras. As filhas deram carreirinhas ao
som da música, as mães, já idosas, receberam cumprimentos por amor daquelas, e,
as avós, por não ter que fazer nem que ouvir, levaram todo o tempo a endireitar
as toucas e comer doce. Tudo esteve debaixo destas regras gerais, só resta dar
conta das seguintes particularidades:
D. Carolina sempre
dançou a terceira contradança com Augusto, mas, para isso, foi preciso que a
Sra. D. Ana empenhasse todo o seu valimento; a tirana princesinha da festa
esteve realmente desapiedada; não quis passear com o estudante.
A interessante D.
Violante fez o diabo a quatro: tomou doze sorvetes, comeu pão-de-ló, como
nenhuma, tocou em todos os doces, obrigou alguns moços a tomá-la por par e até
dançou uma valsa de corrupio.
Augusto apaixonou-se
por seis senhoras com quem dançou; o rapaz é incorrigível. E assim tudo mais.
Agora são quatro
horas da manhã; o sarau está terminado, os convidados vão retirando-se e nós,
entrando no toilette, vamos ouvir quatro belas conhecidas nossas, que
conversam com ardor e fogo.
- É possível?!...
exclamou D. Quinquina, dirigindo-se à sua mana; pois é verdade que esse Sr.
Augusto lhe fez uma declaração de amor?...
- Como quer que lhe
diga, maninha?... Asseverou que meus olhos pretos davam à sua alma mais luz do
que a seus olhos todos os candelabros da sala nesta noite, e mesmo do que o
sol, nos dias mais brilhantes... palavras dele.
-
Que insolente!... tornou D. Quinquina; ele mesmo, que me jurou ser a mais bela
a seus olhos e a mais cara a seu coração, porque meus cabelos eram fios d’ouro
e a cor das minhas faces o rubor de um belo amanhecer!... palavras dele.
-
Que atrevido!... bradou D. Clementina; o próprio que afirmou ser-lhe impossível
viver sem alentar-se com a esperança de possuir-me, porque eu sabia ferir
corações com minhas vistas e curar profundas mágoas com meus sorrisos!...
palavras dele.
-
Oh! que moço abominável!... disse, por sua vez, D. Gabriela; e ousou dizer-me
que me amava com tão subida paixão que, se fora por mim amado e pudesse desejar
e pedir algum extremo, não me pediria como as outras, para beijar-me a face,
porque das virgens do céu somente se beija os pés, e de joelhos!... palavras
dele.
- Mais isto é um
insulto feito a todas nós!
- Como se estará ele
rindo!...
- Qual! se ele está
apaixonado!...
- Apaixonado?!... E
por quem?
- Por nós quatro...
talvez por outras mais... ele pensa assim.
- Que maldito
brasileiro com alma de mouro!...
- E havemos de ficar
assim?...
- Não, acudiu D.
Joaninha, vamos ter com ele, desmascaremo-lo.
- Isto é nada para quem
não tem vergonha!...
- Pois troquemos os
papéis: finjamos que estávamos tratadas para desafiar-lhe os requebros...
ridicularizemo-lo como for possível.
- Sim...
obriguemo-lo a dizer qual de nós é a mais bonita. Cada uma lhe pedirá um anel
de seus cabelos... uma prenda... uma lembrança... ponhamo-lo doido...
- Muito bem pensado!
vamos!
- Deus nos livre! à
vista de tanta gente!...
- Então, quando e
onde?
- Uma idéia!... seja
a zombaria completa: escreva-se uma carta anônima, convidando-o para estar ao
romper do dia na gruta.
- Bravo! então
escreva...
- Eu não, escreva
você...
- Deus me
defenda!... escreva, D. Gabriela, que tem boa letra...
- Então, nenhuma
escreve.
- Pois tiremos por
sorte!
A
idéia foi recebida com aprovação e a sorte destinou para secretária D.
Clementina que, tirando de seu álbum um lápis e uma tira de papel, escreveu sem
hesitar:
“Senhor:
- Uma jovem que vos ama e que de vós escutou palavras de ternura, tem um
segredo a confiar-vos. Ao raiar da aurora a encontrareis no banco de relva da
gruta; sede circunspecto e vereis a quem, por meia hora ainda, quer ser apenas
- Uma incógnita.”
-
Bem... disse D. Quinquina, eu me encarrego de fazer-lhe receber a carta.
Saiamos.
As
quatro moças iam sair, quando um suspiro as suspendeu; mais alguém estava no toilette.
D. Joaninha, medrosa de que uma testemunha tivesse presenciado a cena que se
acabava de passar, voltou-se para o fundo do gabinete e o susto para logo se
dissipou.
-
Vejam como ela dorme!... disse.
Com
efeito, recostada em uma cadeira de braços, D. Carolina estava profundamente
adormecida.
A
Moreninha se mostrava, na verdade, encantadora no mole descuido de seu dormir:
à mercê de um doce resfolegar, os desejos se agitavam entre seus seios; seu
pezinho bem à mostra, suas tranças dobradas no colo, seus lábios entreabertos e
como por costume amoldados àquele sorrir cheio de malícia e de encanto que já
lhe conhecemos e, finalmente, suas pálpebras cerradas e coroadas por bastos e
negros supercílios, a tornavam mais feiticeira que nunca.
D.
Clementina não pôde resistir a tantas graças; correu para ela... dois rostos
angélicos se aproximaram... quatro lábios cor-de-rosa se tocaram e este toque
fez acordar D. Carolina.
Um
beijo tinha despertado um anjo, se é que o anjo realmente dormia.
17
Foram Buscar Lã e Saíram
Tosquiadas
Se
houve alguém que quisesse servir a D. Quinquina ou se foi ela mesma quem pôs a
carta anônima no bolso da jaqueta de Augusto, é coisa que pouco interesse dá; o
certo é que o estudante, indo tirar o lenço para assoar-se, achou o
interessante escritinho; então correu logo para um lugar solitário, e só depois
de devorar o convite sem assinatura foi que lembrou-se que ainda não se havia
assoado e que o pingo estava cai não cai na ponta do nariz; enfim, ainda com o
lenço acudiu a tempo, e depois entendeu que, para melhor decidir o que lhe
cumpria fazer naquela conjuntura, deveria avivar o cérebro, sorvendo uma boa
pitada de rapé. Portanto, lançou a mão ao segundo bolso de sua jaqueta, e eis
que lhe sai com a caixa do bom Princesa um outro escritinho como o
primeiro.
-
Bravo! exclamou o nosso estudante; temíveis mãozinhas seriam estas, se se
dessem ao exercício não de encher, mas de vazar as algibeiras da gente.
E
sem mais dizer, abriu e leu o escrito.
“Senhor:
- Uma moça, que nem é bonita nem namorada, mas que quer interessar-se por vós,
entende dever prevenir-vos que no banco de relva da gruta não achareis ao
amanhecer uma incógnita, porém sim conhecidas, que pretendem zombar de vós,
porque esta mesma noite jurastes amar a cada uma delas em particular. Não
procureis adivinhar quem vos escreve, porque, apesar de ser vossa amiga, serei
por agora - Uma incógnita”
-
Muito bonito! muito bonito!... disse Augusto beijando o bilhete; estou
exatamente representando um papel de romance! mas quem sabe se ainda acharei
mais cartas?...
E
nisto pensando, foi correndo um por um todos os bolsos dos seus vestidos, sem
esquecer o do relógio, e até passou os dedos por sua basta cabeleira,
presumindo que talvez introduzissem algum no enorme canudo de cabelo que lhe
escondia as orelhas.
Porém,
nada mais havia; também duas cartas tão curiosas já eram de sobra em uma só
noite.
O
estudante pensou no conteúdo de ambas e ainda reflexionava se lhe cumpria fugir
ou aceitar um certame com quatro moças, que ele adivinha quais eram, quando a
primeira rosa da aurora se desabriu no horizonte. Augusto correu para a gruta
encantada.
Chegando
ao pé, foi de mansinho se aproximando, sentiu o rumor e ouviu que alguém dizia
em tom baixo:
-
Oh! se ele vier!
-
Ei-lo aqui, minhas belas senhoras, exclamou o estudante, que entendeu não lhes
dever nunca dar tempo a tomar a ofensiva; eis-me aqui!...
As
moças, que estavam todas sentadinhas no banco de relva, como quatro
pombas-rolas enfiladas no mesmo galho, ergueram-se sobressaltadas ao ver entrar
inopinadamente o estudante; era isso mesmo o que ele queria, pois continuou:
- As senhoras vêem
que acudi de pronto ao honroso convite e que me entusiasmo vendo quatro
auroras, em lugar de uma só! Belo amanhecer é este, sem dúvida... mas, exposto
ao fogo abrasador de oito olhos brilhantes... eu me sinto arder... juro que
tenho sede... Eis ali uma fonte... Mas, meu Deus, é a fonte encantada que
descobre os segredos de quem está conosco!... Bem! bem! melhor... uma gota
desta linfa de fadas!...
-
O que é que ele está dizendo, mana? exclamou D. Quinquina, apontando para
Augusto, que tinha entre os lábios o copo de prata.
-
É preciso decidir-nos a começar, disse D. Gabriela.
-
Principie você, disse D. Joaninha.
-
Eu não, comece você...
-
Eu não, que sou a mais moça...
Então
o estudante, que tinha acabado de esgotar o seu copo d’água, voltou-se para
elas, e dando a seu rosto uma expressão animada e às suas palavras estudado
acento:
-
Começo eu, minhas senhoras, disse, e começo por dizer-vos que aquela fonte é
realmente encantada; sim, eu tenho, à mercê de sua água, adivinhado belos
segredos: escutai vós... Perdoai e consenti que vos trate assim, enquanto vos
falar inspirado por um poder sobrenatural. Vós viestes aqui para maltratar-me e
zombar de mim, por haver amado a todas vós numa só noite; que ingratidão!... eu
vos poderia perguntar como o poeta:
Assim
se paga a um coração amante?!
-
Mas, desgraçadamente, a fada que preside àquela fonte, quer mais alguma coisa
ainda e me dá uma cruel missão! ordena-me que eu diga a cada uma de vós, em
particular, algum segredo do fundo de vossos corações, para melhor provar os
seus encantamentos. Pois bem, é preciso obedecer; qual de vós quer ser a
primeira?... Eu não ouso falar alto, porque pelo jardim talvez estejam
passeando alguns profanos. Qual de vós quer ser a primeira?...
Nenhuma
se moveu.
-
Será preciso que eu escolha? continuou o tagarela. Escolherei... Iluminai-me,
boa fada! Quem será?... Será... a... Sra. D. Gabriela.
-
Eu?! respondeu a menina, recuando.
-
A senhora mesma, disse Augusto, trazendo-a pela mão para junto da fonte; vinde,
senhora, para bem perto do lugar encantado; agora silêncio... ouvi.
-
Ele está mangando conosco, murmurou D. Clementina.
Augusto
já estava falando em voz baixa a D. Gabriela.
-
Vós, senhora, ainda não amastes a pessoa alguma; para vós amor não existe: é um
sonho apenas; só olhais como real a galanteria; vós quereis zombar de mim,
porque vos protestei os mesmos sentimentos que havia protestado a mais três
companheiras vossas e, todavia, estais incursa em igual delito, pois só por
cartas vos correspondeis com cinco mancebos.
-
Senhor!...
-
Oh! não vos impacienteis; quereis provas?... Há quatro dias, uma vendedeira de
empadas, que se encarrega de vossas cartas, enganou-se na entrega de duas;
trocou-as e deu, se bem me lembra a fada, a de lacre azul ao Sr. Juca e a de
lacre verde ao Sr. Joãozinho.
-
Ora... ora, senhor! quem lhe contou essas invenções?
-
A fada! e fez mais ainda. Vós não achareis em vosso álbum o escrito desesperado
do Sr. Joãozinho, que vos foi entregue no momento de vossa partida para esta
ilha; sou eu que o tenho, a fada mo deu há pouco com sua mão invisível.
-
Impossível! balbuciou D. Gabriela, recorrendo ao seu álbum.
Ela
não podia encontrar o escrito.
-
Sr. Augusto, disse então, toda vergonha e acanhamento; eu lho rogo que me dê
esse papel.
-
Pois não quereis ouvir mais nada?...
-
Basta o que tenho ouvido e que não posso bem compreender; mas dê-me o que lhe
pedi.
-
Daqui a pouco, senhora, na hora de minha partida para a Corte, porém, com uma
condição.
-
Pode dizê-la.
-
Sois sobremaneira delicada, senhora; este excesso vos deve ser nocivo; quereis
fazer-me o obséquio de ir descansar e dar-me a honra de aceitar a minha mão até
à porta da gruta?...
-
Com muito prazer.
Então
os dois se dirigiram para fora; passando junto das três companheiras, D.
Gabriela pôde apenas dizer-lhes:
-
Até logo.
Chegando
à porta, Augusto falou já em outro tom:
- Minha senhora,
espero que me faça a justiça de crer que fico extremamente penalizado por não
poder dilatar por mais tempo a glória de acompanhá-la; mas sabe o que ainda
tenho de fazer.
-
Obrigada, respondeu D. Gabriela, não poupe as outras.
Não
é possível bem descrever a admiração das três.
Augusto
chegou-se a D. Quinquina, e tomando-lhe a mão, disse:
-
Minha senhora, é chegada vossa vez.
D.
Quinquina deixou-se levar para junto da fonte; as moças tinham perdido toda a
força; o que diante delas se passava pedia uma explicação que não estava ao seu
alcance dar. Augusto começou:
-
Senhora, eu poderia dizer-vos, pelo que me conta a boa fada, que vós sois como
as outras de vossa idade, tão volúveis como eu; mas para tal saber não
precisava eu beber da água encantada; podia também gastar meia hora em
falar-vos do vosso galanteio com um tenente da Guarda Nacional, por nome
Gusmão...
-
Senhor!...
- Por nome Gusmão, que
leva o seu despotismo amoroso ao ponto de exigir que não valseis, que não
tomeis sorvetes, que não deis dominus tecum quando ao pé de vós espirrar
algum moço e que não vos riais quando ele estiver sério.
- Quem lhe disse
isso, senhor?...
- A fada, senhora; e
ainda me disse mais: por exemplo, contou-me que no baile desta noite, passeando
com um velho militar, vós recebestes da mão dele um lindo cravo e a seus olhos
o escondestes, com gesto apaixonado, no palpitante seio; mas daí a um quarto de
hora essa mesma flor, tão ternamente aceita, deveria ir parar no bolso de um
belo jovem, chamado Lúcio, se acaso não fosse roubada pela fada que preside
esta fonte.
- Eu não entendo
nada do que o senhor está dizendo... isso não é comigo.
- Eu me explico: o
Sr. Lúcio viu ser dado e recebido o presente e, fingindo-se zeloso, vos pediu
esse cravo, muito notável, porque, além da flor aberta, havia sete flores em
botão. Ora, dizei, não é verdade? Pois o Sr. Lúcio queria esse cravo, mas vós
lho não podíeis dar, porque o velho militar não tirava os olhos de vós; ora,
conversando com o Sr. Lúcio, acordastes ambos que ele iria esperar um instante
no jardim e que um pequeno escravo, por nome Tobias, lhe levaria a flor; e como
o tal Tobias ainda não conhecia o Sr. Lúcio, este lhe daria por senha as
seguintes palavras: sete botões; não foi assim?
D.
Quinquina guardou silêncio; tudo era verdade; ela estava cor de nácar. Augusto
prosseguiu:
- Isto se passou
estando vós na grande varanda, sentados em um banco e com as costas voltadas
para uma janela da sala do jogo; ora, a fada esteve recostada a essa janela,
ouviu quanto dissestes e, como lhe é dado tomar todas as figuras, tomou a de
moço, foi ao jardim, e quando viu o Tobias, disse sete botões; e o cravo
foi logo da fada e é agora meu, ei-lo aqui!...
- Isto é uma
invenção; eu não conheço essa flor.
- Bem! então
consentireis que eu a traga esta manhã no meu peito?... Se não confessais, eu a
mostrarei... O senhor coronel ainda se não retirou e...
- Perdoe-me,
balbuciou, enfim, D. Quinquina, deixando cair uma lágrima na mão de Augusto.
Dê-me esse maldito cravo.
-
Eu vo-lo darei na hora de minha partida, senhora, porém, ouvi mais.
- Basta.
- Pois bem, basta;
mas eu vejo que vossa face está umedecida; seria uma lágrima se o relento da
noite não molhasse também a rosa. Quereis descansar, sem dúvida; poderei gozar
o prazer de conduzir-vos até à porta da gruta?...
- Sim, senhor.
Duas guerreiras
tinham sido batidas; só a curiosidade retinha as outras: Augusto se chegou para
elas e falou a D. Clementina:
- Agora nós,
senhora.
Ela deixou-se levar
pela mão até junto da fonte, e o estudante começou:
- Quereis fatos de
anteontem ou da noite passada, senhora?
- Eu não entendo o
que o senhor quer dizer.
- Pergunto, senhora,
se vos dá gosto que eu vos repita o que convosco se passou, quando tomáveis um
sorvete ao lado de um jovem de cabelos negros... o que convosco conversou o meu
colega Filipe, quando tomáveis chá?
- Eu não preciso
saber nada disso.
- Então dir-vos-ei o
que mais vos interessa, sossegarei mesmo os vossos cuidados e os do Sr. Filipe,
a respeito da perda de certo objeto...
- Sr. Augusto!...
- Senhora, foi a
fada desta misteriosa fonte quem vos roubou um precioso embrulho que continha
uma trança de vossos cabelos e que deveria ser achado embaixo da quarta roseira
da rua que vai ter ao caramanchão, e essa trança pára, hoje, em minhas mãos,
ei-la aqui...
- Oh! dê-ma.
- Não preferis antes
que eu a entregue ao feliz para quem a destináveis?
- Não, eu lhe peço
que ma dê.
- Eu estou pronto a
obedecer-vos, senhora, mas só na hora de minha partida. Vós quatro queríeis
zombar de mim; não concebo até onde iria a vossa vingança; preciso de reféns que
assegurem a paz entre nós; estes são meus; quereis saber mais alguma coisa?
- Eu já sei que o
senhor sabe demais!
- Então...
- Quer, como as duas
primeiras, oferecer-me a mão e obrigar-me a desamparar o campo?
- Venceu, senhor, e
sou eu que lhe peço que me acompanhe até à porta da gruta.
- Eu estou pronto,
senhoras, para servir-vo em tudo.
Só restava D.
Joaninha, era a vez dela.
- Eu vos deixei para
o fim, disse Augusto, porque a vós é que eu mais admiro, porque vós sois
exatamente a única dentre elas que tem amado melhor e que mais infeliz tem
sido, eu vos explicarei isto. Sois, todavia, um pouco excessiva em
exigências...
- Que quer dizer,
Sr. Augusto?
- Que quereis muito,
quando ordenais a um estudante que vos escreva quatro vezes por semana, pelo
menos; que passe por defronte de vossa casa quatro vezes por dia; que vá a
miúdo ao teatro e aos bailes que freqüentais, e até que não fume charutos de
Havana nem de Manilha, por ser falta de patriotismo.
- Quem lhe disse
isso, senhor!?
- A fada, senhora,
que sabe que amais a um moço, a quem dais a honra de chamar querido primo.
- É uma vil traição!
- Exatamente diz o
mesmo a nossa boa fada, e ainda mais, senhora: quer que eu vos aconselhe a que
desprezeis esse jovem infiel, que não sabe pagar o vosso amor: eu poderia
dar-vos provas...
- Não as tenho eu
bastante, exclamou D. Joaninha com sentimento, quando lhe ouço repetir o que
deveria ser sabido dele e de mim somente?
Augusto ia falar;
ela o interrompeu.
- Senhor, eu
agradeço o benefício que recebi; o senhor quis zombar de mim, como das outras,
mas não o fez; ao contrário, atalhou em princípio uma grande enfermidade, que,
talvez, fosse daqui a pouco tempo incurável! Eu galanteio também às vezes,
porém, sei amar até o extremo. Adeus, senhor! eu posso apenas agradecer-lhe,
dizendo que tenho tanta confiança na sua discrição e no seu caráter, que nem
mesmo lhe recomendo o cuidado do meu segredo.
D. Joaninha ia
deixar a gruta; Augusto lhe ofereceu o braço.
- Agradecida, disse
ela; permita que eu entre só em casa.
Augusto ficou só.
Esteve alguns momentos lembrando-se da cena que acabava de ter lugar;
finalmente disse, soltando uma risada:
- Vieram buscar lã e
saíram tosquiadas!
E já estava para pôr
o pé fora da gruta, quando uma voz branda e sonora o suspendeu, dizendo:
- Agora, Sr.
Augusto, é chegada a sua vez...
18
Achou Quem o Tosquiasse
Escutando aquelas
inesperadas palavras que o chamavam para a mesma posição em que ele tinha
colocado as quatro moças, Augusto voltou-se de repente e viu no fundo da gruta a
interessante Moreninha, que enchia o copo de prata.
- Minha senhora!...
balbuciou o estudante, confuso.
D. Carolina
respondeu-lhe primeiro com o seu costumado sorriso, e depois assim:
- Não se dirá que um
homem zombou impunemente de quatro senhoras; uma outra toma o cuidado de
vingá-las. Sr. estudante, eu também sou adepta ao culto desta fada e vou
invocá-la em meu auxílio.
A menina travessa
bebeu em seguida a estas palavras o seu copo d’água e depois, imitando o estilo
de Augusto, que se achava junto dela, disse:
- Quereis que vos
fale do passado, do presente ou do futuro?
- De todas essas
épocas... ao menos para ouvir por mais tempo os vaticínios e palavras de tão
amável Sibila.
- Pois então
principiemos pelo passado. Oh! que belas revelações me fez a fada! Sim, eu
estou lendo no livro da vossa vida, estou vendo tudo, estou dentro do vosso
espírito e de vosso coração!
- Oh! sim, eu juro
que isso é verdade, atalhou o estudante.
A menina fingiu não
entender a alusão e continuou:
- Senhor, vós
amastes muito cedo... creio... sim, foi de idade de treze anos.
Augusto recuou um
passo; ela prosseguiu:
- Amastes, sim, a
uma menina de sete anos, com quem brincastes à borda do mar.
- E quem era ela?
como se chamava? perguntou Augusto com fogo, talvez pensando que D. Carolina
estava, com efeito, adivinhando e podia dizer-lhe o que ele mesmo ignorava.
- Posso eu sabê-lo?
respondeu a Moreninha; a fada só me diz o que se passou em vosso coração e vós,
por certo, que também não sabeis quem era essa menina e só a conheceis pelo
nome de minha mulher.
- Prossiga, minha
senhora!
- Poderia eu
contar-vos uma longa história de velho moribundo, esmeralda, camafeu, mas basta
de vossa mulher; permiti que vos diga que mostrava ser uma criança
doidinha, que cedo começava a fazer loucuras.
- Que cruel juízo!
- Oh! não vos
agasteis; eu a respeito também, em atenção a vós, porém, vamos acabar com o
vosso passado. Houve um tempo em que quisestes figurar entre os amigos como
galanteador de damas, e por justo e bem merecido castigo fostes desgraçado:
todas elas zombaram de vós!
E a menina
interrompeu-se, para rir-se da cara que fazia Augusto.
- Ora, por esta não
esperava eu, disse o estudante.
- A primeira jovem
que reqüestastes foi uma moreninha de dezesseis anos, que jurou-vos gratidão e ternura,
e casou-se oito dias depois com um velho de sessenta anos! não foi assim?
E a menina, de novo,
desatou a rir.
- Minha senhora, de
que gosta tanto?
- Ora! é que a fada
está-me dizendo que ainda em cima vossos amigos, quando souberam de tal,
deram-vos uma roda de cacholetas!
- Então a Sra. D.
Ana lhe contou tudo isso?
- Juro-vos, senhor,
que minha avó não me fala em semelhantes objetos. Consenti que eu continue. A
segunda foi uma jovem coradinha, a quem em uma noite ouvistes dizer num baile
que éreis um pobre menino com quem ela se divertia nas horas vagas, não foi
assim?
- Prossiga, minha
senhora.
- A terceira foi uma
moça pálida, que zombou solenemente, tanto de um primo que tinha, como de vós.
Eis alguns de vossos principais galanteios. Exasperado com o infeliz resultado
deles e vivamente tocado das leras e da música de certo lundu que se vos
cantou, tomastes outro partido e desde então vós pretendeis fazer-vos passar
por borboleta de amor.
- Borboleta?!...
Sim... sim... lembro-me agora que a senhora passeava pelo jardim. Já sei de
quem foram certas carreirinhas e, portanto, compreendo que sabeis tudo à
custa...
- À custa da fada,
senhor, e escuso estender-me mais, porque vós estais bem certo de que eu devo
saber ainda muito.
- Sim, mas diga
sempre.
- Não, antes quero
falar-vos do vosso presente.
- Pelo amor de seus
belos olhos, minha senhora, vamos antes ao que eu não sei, vamos ao meu futuro.
- Sois sobejamente
sôfrego! não vedes como isso vai contra a boa ordem da narração?
- Mas a desordem é
hoje a moda! o belo está no desconcerto; o sublime no que se não entende; o
feio é só o que podemos compreender: isto é romântico; queira ser romântica,
vamos ao meu futuro.
- Pois bem, vamos ao
vosso futuro. Principiarei, como pretendia fazer, se falasse do presente de
vossa vida, dizendo-vos que vós não sois inconstante como afetais.
- Misericórdia!
- Mas que estais a
ponto de o ser: digo-vos que perdereis uma certa aposta que fizestes com três
estudantes.
- Como é isso? Então
a senhora sabe...
- A fada, que me
revelou isso, leu a termo na carteira de quem o guardou.
- A fada? sim, a
feiticeira o leu... Compreendo.
- Vós não sois
inconstante, porque tendes até hoje cultivado com religioso empenho o amor de vossa
mulher; mas vós ides ser, porque não longe está o dia em que a esquecereis
por outra.
-
A culpa será dos olhos dessa outra; porém, quem sabe?...
-
Desejo que não; contudo, eu já vos vejo em princípio e temo que vades ao fim;
sereis perjuro, tereis de escrever um romance e perdoai-me se vos desejo este
mal: eu quisera que ao pé de meu irmão, que vos apresentará o termo da aposta,
aparecesse a vossos olhos a mulher traída. Do vosso futuro eis quanto me disse
a fada.
-
E disse bastante para me confundir.
-
Quereis que vos fale agora de vosso presente?
-
Oh, se quero! No presente está a minha glória.
- Ontem, no baile,
dissestes palavras de ternura pelo menos a seis senhoras.
-
Esta agora é melhor! e quem o pôde notar?
-
Provavelmente a fada vos observava.
-
Então a fada, a feiticeira fazia isso?
-
Depois do baile puseram-vos duas cartas no bolso.
-
Que mãos delicadas...
-
Não mo sabe dizer a fada; porém, vós viestes para esta gruta acudindo a um
convite e fingistes adivinhar segredos de corações. Não era verdade: a fada
nada vos revelou; o que dissestes sabíeis antes e a fada me disse como.
-
Explique-me, pois, minha senhora.
-
Quando involuntariamente fui causa de vos entornarem café nas calças, vós
fostes mudar de roupa e entrastes para o gabinete das senhoras; lá ouvistes
tudo o que afetastes adivinhar há pouco.
-
E quem me viu entrar?
-
A fada, sem dúvida. O cravo de D. Quinquina fostes vós que recebestes no
jardim; na noite dos jogos de prendas, fostes vós ainda quem, com uma luz na
mão, procurou e achou a trança de cabelos de D. Clementina, embaixo da quarta
roseira da rua que vai para o caramanchão.
-
Mas quem observou o que eu fiz às escondidas e com tanto cuidado?
-
A fada, que, segundo penso, vos tem sempre seguido com os olhos.
-
A fada?!... a feiticeira me segue sempre com os olhos?!... Oh! como sou
feliz!... a feiticeira é a senhora!
-
Senhor! sois pouco modesto; que me importariam vossos passos e vossas ações?...
-
Perdão! perdão!... eu sou um tresloucado... um incivil... um doido... não sei o
que faço, nem o que digo; mas continue...
-
Basta! vós duvidastes da fada e por isso eu termino aqui.
-
Não! não, minha senhora! é preciso dizer-me mais alguma cousa ainda!... por
força a fada lhe deveria ter revelado! ela, que adivinha tudo o que está dentro
do meu coração, digo o que ainda se passa nele.
-
Nada mais de disse.
-
Beba outro copo d’água...
-
Não julgo necessário.
-
Pois então...
-
Cumpre retirar-me.
-
Não, por certo! perdoe-me minha senhora, mas eu devo descobrir todos os meus
segredos a quem conhece tão boa parte deles.
-
Eu me contento com o pouco que sei.
-
Ouça uma só palavra...
-
Não sou curiosa.
-
Pois a senhora...
-
Sei que sou senhora, mas sou exceção de regra; não quero saber.
-
Embora, eu lhe direi ainda contra a vontade...
-
E para isso toma-me a saída?...
-
É só para dizer que eu amo...
-
Já sei, a sua mulher.
-
Não é isso: a uma bela moça...
-
Ela o deve ser agora.
-
Muito espirituosa...
-
Já ela o era em criança.
-
E que se chama...
-
Ah! espreitam-nos da entrada da gruta?
Augusto
correu a examinar quem era a indiscreta testemunha; não aparecia pessoa alguma;
compreendeu então que fora ainda um meio de que se lembrara D. Carolina para
não deixá-lo concluir sua declaração e, disposto a lançar-se aos pés da menina,
voltou-se já com o nome da bela nos lábios e...
D.
Carolina tinha desaparecido da gruta.
19
Entremos nos Corações
O
que é bom dura pouco. As festas estão acabadas; nossas belas conhecidas bordam;
nossos alegres estudantes estão de livro na mão. Mas, pelo que toca a estes,
qual é, digam-me, qual é o estudante que, depois de uma patuscada de tom, não
fica por oito dias incapaz de compreender a mais insignificante lição? Isto
sucede assim; essa pobre gente vê, por toda
a parte, e misturando-se com todos os pensamentos, no livro em que
estuda, nas estampas que observa, na dissertação que escreve, o baile, as moças
e os prazeres que apreciou.
O
nosso Augusto, por exemplo, está agora bronco para as lições e impertinente com
tudo. Rafael é quem paga o pato; se o inocente moleque lhe apronta o chá muito
cedo, apanha meia dúzia de bolos, porque quer ir vadiar pelas ruas; se no dia
seguinte se demora só dez minutos, leva dois pescoções, para andar mais ligeiro.
Não há, enfim, cousa alguma que possa contentar o Sr. Augusto; está aborrecido
da Medicina, tem feito duas gazetas na aula; de ministerial que era, passou-se
para a oposição; não quer mais ser assinante de periódicos, não há para seus
olhos lugar nenhum bonito no mundo; aborrece a Corte, detesta a roça e só gosta
das ilhas.
Deveremos
fazer-lhe uma visita; ele está em seu gabinete e um pouco menos carrancudo,
porque Leopoldo, o seu amigo do coração, o acompanha e tem a paciência de lhe
estar ouvindo, pela duodécima vez, a narração do que com ele se passou na ilha
de...
Segundo
parece, Augusto acaba de relatar o que ocorreu na gruta, entre ele e a bela
Moreninha, porque Leopoldo lhe perguntou:
-
E por onde fugiria ela?...
- Por uma difícil
saída que eu não havia observado, respondeu Augusto, e que exatamente se
praticava no fundo da gruta.
-
Que diabinho de menina!
-
Quanto mais se tu notasses a graça e malícia com que ela, quando eu entrei na sala,
me perguntou sossegadamente: “Esteve dormindo na gruta, Sr. Augusto?...”
-
Então ela gostou da tua semideclaração?!...
-
Não... não... se ela tivesse gostado, não me fugiria.
-
Ora, é boa! não devia fazer outra coisa.
-
Se ela gostasse de mim!... mas, por que me não deu um só sinal de ternura?...
Também eu, às vezes, tão adiantado, fui desta um tolo, um basbaque! tremi
diante de uma criança que não tem quinze anos e não soube dizer duas palavras.
-
Estás doido, Augusto, e doido varrido; acredita que D. Carolina foi mais
sensível aos teus cumprimentos que aos de nenhum outro, e se não, dize por que
se não deixou ela dormir, como as outras senhoras, e foi à hora de tua partida
passear pela praia e ver-te embarcar?... Por que ficou ali passeando até desaparecer
o teu batelão?...
-
Isto não significa nada.
-
Ora, ature-se um namorado!... mas venha cá, Sr. Augusto, então como é isso?...
estamos realmente apaixonados?!
-
Quem te disse semelhante asneira?...
-
Há três dias que não falas senão na irmã de Filipe e...
-
Ora, viva! quero divertir-me... digo-te que a acho feia, não é lá essas coisas;
parece ter mau gênio. Realmente notei-lhe muitos defeitos... sim... mas, às
vezes... Olha, Leopoldo, quando ela fala ou mesmo quando está calada, ainda
melhor; quando ela dança ou mesmo quando está sentada... ah! ela rindo-se... e
até mesmo séria... quando ela canta ou toca ou brinca ou corre, com os cabelos à
négligé, ou divididos em belas tranças; quando... Para que dizer mais?
Sempre, Leopoldo, sempre ela é bela, formosa, encantadora, angélica!
-
Então, que história é essa? Acabas divinizando a mesma pessoa que,
principiando, chamaste feia?...
-
Pois eu disse que ela era feia? É verdade que eu... no princípio... Mas
depois... Ora! estou com dores de cabeça, este maldito Velpeau!... Que lição
temos amanhã?
-
Tratar-se-á das apresentações de...
-
Temos maçada! Quem te perguntou por isso agora? Falemos de D. Carolina, do
baile, do...
-
Eis aí outra! Não acabaste de perguntar-me qual era a lição de amanhã?
-
Eu? Pode ser... Esta minha cabeça!...
-
Não é a tua cabeça, Augusto, é o teu coração.
Houve
um momento de silêncio. Augusto abriu um livro e fechou-o logo; depois tomou
rapé, passeou pelo quarto duas ou três vezes e, finalmente, veio de novo
sentar-se junto de Leopoldo.
-
É verdade, disse; não é a minha cabeça: a causa está no coração. Leopoldo,
tenho tido pejo de te confessar, porém não posso mais esconder estes
sentimentos que eu penso que são segredos e que todo o mundo mos lê nos olhos! Leopoldo, aquela menina que
aborreci no primeiro instante, que julguei insuportável e logo depois
espirituosa, que daí a algumas horas comecei a achar bonita, no curto trato de
um dia, ou melhor ainda, em alguns minutos de uma cena de amor e piedade, em
que a vi de joelhos banhando os pés de sua ama, plantou no meu coração um
domínio forte, um sentimento filho da admiração, talvez, mas sentimento que é
novo para mim, que não sei como o chame, porque o amor é um nome muito frio
para que o pudesse exprimir!... Eu a mim não conheço... não sei onde irá isto
parar... Eu amo! ardo! morro!
-
Modera-te, Augusto, acalma-te, não é graça; olha que estás vermelho como um
pimentão.
-
Oh! tudo naquela ilha fatal se assanhou para enfeitiçar-me, tudo, até a própria
mentira.
-
E tu acreditaste muito nessa senhora?...
-
Escuta, Leopoldo: uma vez que com a avó de Filipe conversava na gruta, eu
fatigado e sequioso, bebi um copo d’água da fonte do rochedo; então, a nossa
boa hóspeda contou-me uma fabulosa e singular tradição daquela fonte. A água
dizia-se milagrosa e quem bebesse dela não sairia da ilha sem amar algum de
seus habitantes. Eis aqui, pois, uma mentira, mas uma mentira que excitou a
minha imaginação; uma mentira que me perseguiu lá dois dias e que me persegue
ainda hoje; uma mentira, enfim, que se transformou em verdade, porque eu bebi
daquela água e não pude deixar a ilha sem amar, e muito, um de seus
habitantes...
-
Deveras que isso não deixa de ser interessante. Mas que efeito esperas tu que
provenha de toda essa moxinifada?
-
Que efeito?... O... amor...
-
Amor?... Amor não é efeito, nem causa, nem princípio, nem fim, e é tudo, tudo
isso ao mesmo tempo; é uma coisa que... sim... finalmente, para encurtar razões,
amor é o diabo... Dize-me, pois, sinceramente falando, qual o resultado que
pensas tirar de tudo isso que me contaste.
-
Que resultado?... O... amor...
-
E ele a dar-me com o maldito amor! Augusto, falemos sério; essa tua exaltação
estava muito em ordem num moço que quisesse desposar D. Carolina; porém tu nem
cuidas em casamento nem, se tal pensasses, te lembrarias, roceiro como és, de
escolher para mulher uma menina que foi criada, educada e pode-se dizer que
mora na Corte.
-
Esta agora não é má!... Deveras que ainda não me passou pela mente a idéia do
casamento, nem chegará a tal ponto minha loucura; mas suponhamos o contrário
disto: que mal tu achas em que um roceiro se case com uma moça da cidade?...
-
Que mal?... Ora, escuta: devendo ir morar na roça, a moça tem, necessariamente,
de mudar de costumes e de vida; compreende, pois, quanto atormentará o coração
do pobre marido à vista dos dissabores e contrariedades que sofrerá na solidão
e monotonia campestre a senhora amamentada no seio dos prazeres e festins da
Corte!... quanto devem entristecer os suspiros e saudades de que serás
testemunha, quando a amada companheira recordar-se de sua família, de suas
amigas, do teatro, do passeio, dessa cadeia de delícias, enfim, que, a pesar
dela a ligará ainda a seu passado!...
-
Oh! não, não, Leopoldo, se o marido for amado por ela!... Quando se ama deveras
e se está com o objeto do amor, não se recorda, não se deseja, não se quer mais
nada!...
-
Tu falas em amor, Augusto?... Ainda bem que somos ambos estudantes da roça e
posso dizer-te agora o que entendo, sem medo de ofender a susceptibilidade de
cortesão algum. Pois ainda não observaste que o verdadeiro amor não se dá muito
com os ares da cidade?... que por natureza e hábito, as nossas roceiras são mais
constantes que as cidadoas?... Olha, aqui encontramos nas moças mais espírito,
mais jovialidade, graça e prendas, porém, nelas não acharemos nem mais beleza,
nem tanta constância. Estudemos as duas vidas. A moça da Corte cresce e vive
comovida sempre por sensações novas e brilhantes, por objetos que se
multiplicam e se renovam a todo o momento, por prazeres e distrações que se
precipitam; ainda contra a vontade, tudo a obriga a ser volúvel: se chega à
janela um instante só, que variedade de sensações! seus olhos têm de saltar da
carruagem para o cavaleiro, da senhora que passa para o menino que brinca, do
séquito do casamento para o acompanhamento do enterro! Sua alma tem de sentir
ao mesmo tempo o grito de dor e a risada de prazer, os lamentos, os brados de
alegria e o ruído do povo; depois, tem o baile com sua atmosfera de lisonjas e
mentiras, onde ela se acostuma a fingir o que não sente, a ouvir frases de amor
a todas as horas, a mudar de galanteador em cada contradança. Depois, tem o
teatro, onde cem óculos fitos em seu rosto parecem estar dizendo - és bela! e
assim enchendo-a de orgulho e muitas vezes de vaidade; finalmente, ela se faz
por força e por costume tão inconstante como a sociedade em que vive, tão
mudável como a moda dos vestidos. Queres agora ver o que se passa com a moça da
roça?...
Ali
ela está na solidão de seus campos, talvez menos alegre, porém, certamente,
mais livre; sua alma é todos os dias tocada dos mesmos objetos; ao romper
d’alva, é sempre e só aurora que bruxuleia no horizonte; durante o dia, são
sempre os mesmos prados, os mesmos bosques e árvores; de tarde, sempre o mesmo
gado que se vem recolhendo ao curral; à noite, sempre a mesma lua que prateia
seus raios na lisa superfície do lago. Assim, ela se acostuma a ver e amar um único
objeto; seu espírito, quando concebe uma idéia, não a deixa mais, abraça-a,
anima-a, vive eterno com ela; sua alma, quando chega a amar, é para nunca mais
esquecer, é para viver e morrer por aquele que ama. Isto é assim, Augusto;
considera que é lá em nosso campos que mais brilham esses sentimentos, que são
a mesma vida e que não podem acabar senão com ela!...
- Como estás
exagerado, Leopoldo! juraria que desejas casar com alguma moça da roça!
-
Oh!... se esse desejo me dominar, certamente que o satisfarei com uma das
muitas cachopinhas de minha terra.
- Eu logo vi que nos
teus raciocínios e observações andava o gênio da prevenção; escuso-me, porém,
de responder-te, pois que falaste em geral e desse modo concedes...
-
Que há muitas exceções, sem dúvida?
-
Bom! quando não, tu me forçarias a tomar a palavra para defender a linda
Moreninha, que tanto me cativa?
-
Então, Augusto, teremos, porventura, um romance?
-
Que romance?
-
Perderás a aposta e ao completar-se o mês...
-
Daqui até lá... se eu pudesse esquecê-la!... mas aquela menina não é como as
outras: é uma tentação... um diabinho...
-
Quando, pois, começas a escrever?
-
Estás tolo... respondeu Augusto, tomando por um momento seu antigo bom humor;
eu ainda pretendo nestes quinze dias mudar de amor três vezes.
Basta,
porém, de estudantes. Já temos ouvido bastante o nosso Augusto e demorar-nos
mais tempo em seu gabinete fora querer escutar ainda as mesmas coisas: porque o
tal mocinho, que quer campar de beija-flor, parece que caiu no visco dos olhos
e graças da jovem beleza da ilha de... e está sinceramente enamorado dela; ora,
todos sabem que os amantes têm um prazer indizível em matrequear os ouvidos dos
que os atendem com uma história muito comprida e mil vezes repetida que,
reduzindo-se à expressão mais simples, ficaria em zero ou, quando muito, nos
seguintes termos: “eu olhei e ela olhou; eu lhe disse - pode ser, não pode
ser”. Deixemos, portanto, o senhor Augusto entregue a seus cuidados de moço, e
tanto mais que já conhecemos o estado em que se acha. Vamos agora entrar no
coraçãozinho de um ente bem amável, que não tem, como aquele, uma pessoa a quem
confie suas penas, e por isso sofre talvez mais. Faremos uma visita à nossa
linda Moreninha.
Também
suas modificações têm aparecido no caráter de D. Carolina, depois dos festejos
de Sant’Ana. Antes deles, era essa interessante jovenzinha o prazer da ilha
de... Irreconciliável inimiga da tristeza, ela ignorava o que era estar
melancólica dez minutos e praticava o despotismo de não consentir que alguém o
estivesse; junto dela, por força ou vontade, tudo tinha que respirar alegria;
sabia tirar partido de todas as circunstâncias para fazer rir, e, boa, afável e
carinhosa para com todos, amoldava os corações à sua vontade; o ídolo, o
delírio de quantos a praticavam, era ela a vida daquele lugar e empunhava com
as suas graças o cetro do prazer. Hoje suas maneiras são outras; e, enquanto
suas músicas se empoeiram, seu piano passa dias inteiros fechado, suas bonecas
não mudam de vestido, ela vaga solitária pela praia, perdendo seus belos
olhares na vastidão do mar, ou, sentada no banco de relva da gruta, descansa a
cabeça em sua mão e pensa... Em quê?... quais serão os solitários pensamentos
de uma menina de menos de quinze anos?... E às vezes suspira... um suspiro?...
Eis o que é já um pouco explicativo.
Assim
como o grito tem o eco, a flor o aroma e a dor o gemido, tem o amor o suspiro;
ah! o amor é demoninho que não pede para entrar no coração da gente e, hóspede
quase sempre importuno, por pior trato que se lhe dê, não desconfia, não se
despede, vai-se colocando e deixando ficar, sem vergonha nenhuma, faz-se dono
da casa alheia, toma conta de todas as ações, leva o seu domínio muito cedo aos
olhos, e às vezes dá tais saltos no coração, que chega a ir encarapitar-se no
juízo; e então, adeus minhas encomendas!...
Pois
muito bem, parece que a tal tentação anda fazendo pelóticas no peito da nossa
cara menina; também não há moléstia de mais fácil diagnóstico. Uma mocinha que
não tem cuidados, com quem a mamãe não é impertinente, que não sabe dizer onde
lhe dói, que não quer que se chame médico, que suspira sem ter flatos, que não
vê o que olha, que acha todo o guisado mal temperado, é porque já ama;
portanto, D. Carolina ama, mas... a quem?!...
Ah!
Sr. Augusto! Sr. Augusto! a culpa é toda sua, sem dúvida. Esta bela menina,
acostumada desde as faixas a exercer um poder absoluto sobre todos os que a
cercam, não pôde ouvir o estudante vangloriar-se de não ter encontrado ainda
uma mulher que o cativasse deveras, sem sentir o mais vivo desejo de reduzi-lo
a obediente escravo de seus caprichos; ela pôs então em ação todo o poder de
suas graças, ideou mesmo um plano de ataque, estudou a natureza e os fracos do
inimigo; observou; bateu-se: o combate foi fatal a ambos, talvez, e no fim dele
a orgulhosa guerreira apalpou o seu coração e sentiu que nele havia penetrado
um dardo; consultou a sua consciência e ouviu que ela respondia; se venceste
também estás vencida!
Com
efeito, D. Carolina ama o feliz estudante, e uma mistura de saudades e de temor
da inconstância do seu amado é provavelmente a causa de sua tristeza; ajunte-se
a isto a novidade e os cuidados de um amor nascente e primeiro, o incômodo de
um sentimento novo, inexplicável, que lhe enchia o inocente coração e ver-se-á
que ela tem suas razões para andar melancólica.
E,
portanto, toda a família está assaltada do mesmo mal; há na ilha uma epidemia
de mau humor que tem chegado a todos, desde a Sra. D. Ana até à última escrava.
Além de quanto se acaba de expor, acresce que Filipe se deixou ficar na cidade
a semana inteira, sem querer dispensar uma só tarde para vir visitar sua
querida avó e a tão bonita maninha.
Eis,
porém, o que se chama acusação injusta. Diz o ditado que: - falai no mau, aprontai
o pau! Filipe estava esperando pelo dia de sábado para aproveitar o domingo
todo no seio de sua família; ei-lo aí que recebe a bênção de sua avó e beija a
fronte de sua irmã.
-
Pensei, disse aquela, que não queria mais ver-nos!
-
E quase que deixei a viagem para amanhã, minha boa avó.
-
O ingrato ainda o diz... ouves, Carolina?... Então por quê?...
-
Para vir na companhia de Augusto, que deve passar o dia conosco.
Estas
palavras tiveram poder elétrico; D. Carolina, para ocultar a perturbação que a
agitava, correu a esconder-se em seu quarto.
Lá,
bem às escondidas, ela derramou uma lágrima: doce lágrima... era de
prazer.
20
Primeiro Domingo: Ele Marca
Augusto madrugou, e
muito; quando a aurora começou a aparecer, já ele havia vencido meia viagem e
seu desejo era ir acordar na ilha de..., uma pessoa que tinha o mau costume de
dormir até alto dia; por isso instava com os seus remeiros para que
forcejassem; e, enquanto seu batelão se deslizava pelas águas, rápido como uma flecha
pelos ares, ele o acusava de pesado, de vagoroso; tinha há muito descoberto a
ilha de... e; os objetos foram pouco a pouco se tornando mais e mais distintos;
viu a casa, viu o rochedo em que outrora a tamoia deveria ter cantado seus
amores e de sobre o qual cantara, há oito dias, D. Carolina a sua balada;
depois distinguiu sobre esse rochedo negro um ponto, um objeto branco, que foi
crescendo, sempre crescendo, que enfim lhe pareceu uma figura de mulher, que
ostentava a alvura de seus vestidos. Depois ele tinha desviado um pouco os
olhos; quando os voltou de novo para o rochedo, a figura branca havia
desaparecido como um sonho.
Enfim
o batelão abordou a ilha de...; Augusto correu a casa de que tantas saudades
sofrera; todos já se tinham levantado; ninguém dormia, D. Carolina estava
vestida de branco.
-
Eu lhe agradeço bem, Sr. Augusto, disse a Sra. D. Ana, depois dos primeiros
cumprimentos; eu lhe agradeço a sua boa visita; nós temos passado oito dias de
nojo, e foi preciso que Filipe nos trouxesse a notícia de sua vinda, para
reviver nossa antiga alegria; Carolina, por exemplo, desde ontem à noite já tem
estado sofrivelmente travessa.
-
Eu, minha avó, sempre tive fama de desinquieta e prazenteira; e se ontem me
adiantei, foi porque chegou-me um companheiro para traquinar comigo.
-
Não o negues, menina; tens estado melancólica e abatida toda esta semana; eram
saudades da agradável companhia que tivemos. Que eram saudades conheci eu pelos
suspiros que soltavas e também não vai mal nenhum em confessá-lo.
D.
Carolina voltou o rosto. Augusto arregalou os olhos e sentiu que a ventura lhe
inundava o coração.
-
O mesmo por lá nos sucedeu, disse Filipe tomando a palavra; estivemos todos
carrancudos e, seja dito em amor da verdade, Augusto, mais do que nenhum outro,
gostou de nosso trato e nossa companhia; realmente foi ele que o mostrou sofrer
maiores saudades.
-
É verdade, Sr. Augusto? perguntou a boa hóspeda.
-
Minha senhora, a visita que vim ter o gosto de fazer é a melhor resposta que
lhe posso dar.
D.
Carolina tinha os olhos em um livro de música, mas seus ouvidos e sua atenção
pendiam dos lábios de Augusto; ouvindo as últimas palavras do estudante, ela
sorriu brandamente.
- De que estás
rindo, Carolina? perguntou Filipe.
- De um engraçado
pedacinho da cavatina do Fígaro, no Barbeiro de Sevilla.
Então ele examinou o
livro e viu que havia mentido, porque o que tinha diante de seus olhos era uma
coleção de modinhas do Laforge.
Duas horas depois serviu-se
o almoço. Mas, durante essas duas horas, que se passaram muito depressa,
Augusto teve de agradecer as obsequiosas atenções da avó de Filipe, que dizia
ter por ele notável predileção, e também de reparar com esmero e minuciosidade
no objeto de seus recentes cultos. Em resultado de suas observações concluiu
que D. Carolina estava bonita como dantes, porém, mais lânguida; que às vezes
reparava suas indiscrições e que outras, quando mais parecia ocupar-se com seus
alegres trabalhos, olhava-o furto, com uma certa expressão de receio, pejo e
ardor, que a embelecia ainda mais.
Durante o almoço a
conversação divagou sobre inúmeros objetos; finalmente teve de ir bulir com um
pobre lencinho que estava na mão de D. Carolina, e que, se aí não estivesse,
passaria desapercebido.
- Eu julgo que ele
está trabalhoso e perfeitamente marcado, disse Augusto.
- É ir muito longe,
respondeu a menina; aí o tem, observe-o de mais perto; repare que barafunda vai
por aqui.
- Ora, eu acho tudo
o melhor possível; ao muito, poder-se-ia dizer que este X foi marcado por mão
de moça travessa.
- Quer dizer que foi
pela minha? Adivinhou.
- Tem uma bela
prenda, minha senhora.
- Que é muito
comum.
- E nem por isso
merece menos.
- Eu não entendo
assim; aprecio bem pouco o que todo o mundo pode ter. Quem não sabe marcar?
- Eu, minha senhora.
- É porque não quer.
- É porque não
posso; eu não me poderia haver com uma agulha na mão.
- Um dia de
paciência lhe seria suficiente.
- Querem ver, acudiu
Filipe, que minha maninha reduz Augusto a aprender a marcar!
- Então, seria isso
alguma asneira?
- Não, por certo;
maninha pode mesmo dar-te algumas lições.
- Nada, respondeu a
menina; sou muito raivosa e à primeira linha que ele rebentasse, eu o chamaria
a bolos.
- Se é uma condição
que oferece, eu a aceito, minha senhora; ensine-me com palmatória.
- Veja o que diz!...
- Repito-o.
- Pois bem;
palmatória não, porque, enfim, podia doer-lhe muito; mas de cada vez que eu
julgar necessário, dar-lhe-ei um puxão de orelha.
- Menina! disse a
Sra. D. Ana.
- Mas, minha avó, eu
não estou pedindo a ele que venha aprender comigo.
- Porém podes
ensinar-lhe com bons modos.
- É o que pretendo
fazer.
- Ele há de
aproveitar muito.
- Terá os meus
elogios.
- E se por acaso errar alguma vez?
- Levará um puxão de
orelha.
- Se me é permitido,
disse Augusto, aceito as condições.
- Pois bem,
respondeu D. Carolina, está o senhor matriculado na minha aula de marcar e
daqui a uma hora principiaremos a nossa lição.
- E então ele não
passeia comigo? perguntou Filipe.
- Depois da lição,
respondeu a mestra, fazendo-se de grave; antes, não lhe dou licença.
Levantaram-se da
mesa; algum tempo foi destinado a descansar; Filipe desafiou Augusto para uma
partida de gamão e incontinenti foram travar combate na varanda; Filipe
derrotou seu competidor em três jogos consecutivos; estavam no começo do
quarto, quando tocou uma campainha; os dois estudantes não deram atenção a isso
e continuaram: o jogo tornou-se duvidoso; qualquer dos dois podia dar ou levar
gamão; Augusto acabava de lançar uns dois e ás, que desconcertaram seu
antagonista, quando D. Carolina apareceu e, dirigindo-se ao seu discípulo,
disse com engraçada seriedade:
- O senhor não ouviu
tocar a campainha?
- Então isso era
comigo?
- Sim, senhor, são
horas de lição, e espero que para outra vez não me seja preciso chamá-lo.
- Aceito a
admoestação, minha bela mestra, mas rogo-lhe o obséquio de consentir que
termine esta partida.
- Não, senhor.
- É uma mão de
honra!
- Pior está essa!
- Ora, é boa! acudiu
Filipe; então quer você...
- Não tenho a
dizer-lhes o que quero, nem o que não quero; são horas de lição, vamos.
- E é preciso
obedecer, concluiu Augusto, levantando-se.
Daí a pouco estava
tudo em via de regra; Augusto, sentado em uma banquinha aos pés de sua bela
mestra, escutava, com os olhos fitos no rosto dela, as explicações necessárias.
Às vezes D. Carolina não podia conservar imperturbável sua afetada gravidade e
então os sorrisos da bela mestra e do aprendiz graciosamente se trocavam; ela
se mostrava mais pacífica e ele menos atento do que haviam prometido, porque
era já pela quarta vez que a bela mestra recomeçava suas explicações e o
aprendiz cada vez a entendia menos.
Filipe apareceu na
sala, pronto para ir caçar, e convidou o seu amigo para com ele partilhar do
mesmo prazer. Todo o mundo adivinha que Augusto disse que não; ele poderia
responder que não queria caçar, porque estava pescando, mas contentou-se com
dizer:
- Minha bela mestra
não dá licença.
- Tome cuidado no
modo de pegar nessa agulha!... gritou ela com mau modo e sem se importar com
Filipe.
- Está bem, disse
este, saindo; eu não os posso aturar.
E depois
acrescentou, sorrindo-se:
- Fique-se aí, Sr.
Hércules, aos pés da sua bela Onfale!
- Ouviu o que ele
disse? perguntou Augusto.
- Já lhe tenho
repetido três vezes que não é assim que se pega na agulha.
- Ora, minha
senhora...
- Ora, minha
senhora!... ora, minha senhora! eu não sou sua senhora, sou sua mestra.
- Minha bela mestra!
- Digo-lhe que já me
vai faltando a paciência. O senhor não atenta no que faz!... já tem quatro
vezes rebentado a linha e é a décima segunda que lhe cai o dedal.
- Não se exaspere,
minha bela mestra, eu o vou apanhar e não cairá mais nunca.
Augusto curvou-se e
ficou quase de joelhos diante de D. Carolina; ora, o dedal estava bem junto dos
pés dela e o aprendiz, ao apanhá-lo, tocou, ninguém sabe se de propósito, com
seus dedos em um daqueles delicados pezinhos; esse contato fez mal; a menina
estremeceu toda. Augusto olhou-a admirado, os olhos de ambos se encontram e os
olhos de ambos tinham fogo. Um momento se passou; o sossego se restabeleceu.
- Já não posso mais!
exclamou a bela mestra; rebentou o senhor pela quinta vez a linha; não dá um
ponto que preste; não há outro remédio...
E, dizendo isto,
lançou uma das mãos à orelha do aprendiz, que de súbito deu um grito e acudiu
com as suas. Ora, essas mãos se encontraram, debateram-se, e nesse ensejo os
dedos da bela mestra foram docemente apertados pela mão do aprendiz. Novo fogo
de olhares! que aproveitável lição!...
- Menina, tenha
modos!... o Sr. Augusto não é criança, exclamou a Sra. D. Ana, que a dez passos
cosia, e que só podia ver a exterioridade do que se passava entre a bela mestra
e o aprendiz.
A lição se prolongou
até ao meio-dia e mais de mil vezes se repetiu a mesma cena do encontro das
mãos; D. Carolina não conseguiu puxar uma só vez a orelha do estudante e o
aprendiz não perdeu uma só ocasião de apertar os dedos da mestra. Augusto se
comprometeu a apresentar na primeira lição um nome marcado pela sua mão. Tudo
foi às mil maravilhas.
O resto do dia se
passou como se havia passado o seu princípio para Augusto e D. Carolina.
Eles não se chamaram mais por seus
nomes próprios; o amor lhes tinha ensinado outros; eram: “meu aprendiz”, e
“minha bela mestra”.
A madrugada seguinte
foi triste, porque presidiu às despedidas do aprendiz e sua bela mestra, mas
ainda foi bem doce, porque ambos meigamente se disseram:
- Até domingo!
21
Segundo Domingo: Brincando
com Bonecas (1)
Raiou o belo dia,
que seguiu a sete outros, passados entre sonhos, saudades de esperanças.
Augusto está viajando: já não é mais aquele mancebo cheio de dúvidas e temores
da semana passada, é um amante que acredita ser amado e que vai, radiante de
esperanças, levar à sua bela mestra a lição de marca que lhe foi passada. O
prognóstico de D. Carolina, na gruta encantada, se vai verificando: Augusto
está completamente esquecido da aposta que fez e do camafeu que outrora deu à
sua mulher. Um bonito rosto moreninho fez olvidar todos esses episódios da vida
do estudante. D. Carolina triunfa e seu orgulho de despotazinha de quantos
corações conhece deveria estar altaneiro, se ela não amasse também.
Como
da primeira vez, Augusto vê o dia amanhecer-lhe no mar; e, como na passada
viagem, avista sobre o rochedo o objeto branco, que vai crescendo mais e mais,
à medida que seu batelão se aproxima, até que distintamente conhece nele a
elegante figura de uma mulher, bela por força; mas desta vez, não como da
outra, essa figura se demora sobre o rochedo, não desaparece como um sonho, é
uma bonita realidade, é D. Carolina que só desce dele para ir receber o feliz
estudante que acaba de desembarcar.
·
Minha
bela mestra!...
- Meu aprendiz!...
já sei que traz nome bem marcado.
- Oh! sempre
precisarei que me queira puxar as orelhas.
- Não, eu não farei
tal na lição de hoje.
- E se eu merecer?
- Talvez.
- Então errarei toda
a lição.
Eles se sorriram,
mas Filipe acaba de chegar e todos três vão pela avenida se dirigindo a casa.
Ter a ventura de
receber o braço de uma moça bonita e a quem se ama, apreciar sobre si o doce
contato de uma bem torneada mão, que tantas noites se tem sonhado beijar; roçar
às vezes com o cotovelo um lugar sagrado, voluptuoso e palpitante; sentir sob
sua face perfumado bafo que se esvaiu dentre os lábios virginais e nacarados,
cujo sorrir se considera um favor do céu; o apanhar o leque que escapa da mão
que estremeceu, tudo isso... mas para que divagações? que mancebo há aí, de
dezesseis anos por diante, que não tenha experimentado esses doces enleios, tão
leves para a reflexão e tão graves e apreciáveis para a imaginação de quem ama?
Pois bem, Augusto os está gozando neste momento; mas, porque só a ele é isto de
grande entidade, e convém dizer apenas o que absolutamente se faz preciso,
pode-se, sem inconveniente, abreviar toda a história de duas horas, dizendo-se:
almoçaram e chegou a hora da lição.
- Vamos, disse D.
Carolina a Augusto, que estava já sentado a seus pés e em sua banquinha; vamos,
meu aprendiz, o senhor comprometeu-se a trazer-me um nome marcado pela sua mão;
que nome marcou?
- Entendi que devia
ser o nome da minha bela mestra.
Ela não esperava
outra resposta.
- Vamos, pois, ver a
sua obra, continuou, e creia que estou pouco disposta a perdoar-lhe, como fiz
na lição passada. Venha a marca.
Augusto apresentou
então um finíssimo lenço aos olhos da sua bela mestra, que teve de ler em cada
ângulo dele o nome Carolina e no centro o dístico Minha bela mestra.
Tudo estava primorosamente trabalhado; preciso é confessar: o aprendiz havia
marcado melhor do que nunca o tivera feito D. Carolina.
Augusto esperava com
ansiedade ver brilhar nos olhos de sua bonita querida o prazer da gratidão;
fruía já de antemão o terno agradecimento com que contava, quando viu, com
espanto, que sua bela mestra ia gradualmente corando e por fim se fez vermelha
de cólera e de despeito.
- Nunca a mão
grosseira de um homem poderia marcar assim!... disse ela a custo.
- Mas, minha bela
mestra...
- Eu quero saber
quem foi! exclamou com força.
- Eu não entendo...
- Foi uma mulher!
isso não carece que me diga. Uma moça que lhe marcou este lenço para o senhor
vir zombar e rir-se de mim, de minha credulidade, de tudo...
- Minha senhora...
- Vejam!... já nem
me quer chamar sua mestra!... agora só sabe dizer “minha senhora!”...
A interessante jovem
acabava de ser inesperadamente assaltada de um acesso de ciúme. Augusto estava
espantado e a Sra. D. Ana, levantando os olhos ao escutar a última exclamação
de sua neta, viu-a correndo para ela.
- Que é isto menina?
perguntou.
- Veja, minha
querida avó: aqui está a marca que ele me traz! Eu queria um nome muito mal
feito, uma barafunda que se não entendesse, o pano suado e feio, tudo mau, tudo
péssimo; eu me riria com ele. Sabe, porém, o que fez? foi para a Corte tomar
outra mestra, que não há de ter a minha paciência, nem o meu prazer, mas que
marca melhor que eu, que é mais bonita!... veja, minha querida avó; ele tem
outra mestra, outra bela mestra!...
E dizendo isto, ocultou
o rosto no seio da extremosa senhora e começou a soluçar.
- Que loucura é
essa, menina? que tem que ele tomasse outra mestra? pois por isso choras assim?
- Mas nem me quer
dizer o nome dela!... Que me importa que seja moça ou bonita? nada tenho com
isso, porém, quero saber-lhe o nome, só o nome!...
Então ela ergueu-se
e, com os olhos ainda molhados, com a voz entrecortada, mas com toda a beleza
da dor e delírio do ciúme, voltou-se para Augusto e perguntou:
- Como se chama ela?
- Juro que não sei.
- Não sabe?...
- Quis trazer um
lenço bem marcado para ostentar meus progressos e motivar alguns gracejos e
mandei-o encomendar a uma senhora muito idosa, que vive destes trabalhos.
- Muito idosa?...
- É verdade.
- Não lhe deram este
lenço?
- Paguei-o.
- Pois eu o rasgo...
- Pode o fazer.
- Ei-lo em tiras.
- Que fazes,
Carolina? exclamou a Sra. D. Ana, querendo, já tarde, impedir que sua neta
rasgasse o lenço.
- Fez o que cumpria,
minha senhora, acudiu Augusto: exterminou o mau gênio que acabava de fazê-la chorar.
- E que importa que
eu rasgasse um lenço? minha querida avó, peço-lhe licença para dar um dos meus
ao Sr. Augusto.
A Sra. D. Ana, que
começava a desconfiar da natureza dos sentimentos da mestra e do aprendiz,
julgou a propósito não dar resposta alguma, mas nem isso desnorteou a viva
mocinha que, tirando de sua cesta de costura um lenço recentemente por ela
marcado, o ofereceu a Augusto, dizendo:
- Eu não admito uma
só desculpa, não desejo ver a menor hesitação; quero que aceite este lenço.
Augusto olhou para a
Sra. D. Ana, como para ler-lhe n’alma o que ela pensava daquilo.
- Pois rejeita um
presente de minha neta? perguntou a amante avó.
A resposta de
Augusto foi um beijo na prenda de amor.
- Agora, que já
estamos bem, disse ele, vamos à minha lição.
- Não, não,
respondeu a bela mestra, basta de marcar; não me saí bem do magistério, chorei
diante do meu aprendiz, não falemos mais nisto.
- Então fui julgado
incapaz de adiantamento?
- Ao contrário, pelo
trabalho que me trouxe, vi que o senhor estava adiantado demais; porém, sou eu
quem tem outros cuidados.
- Já tem
cuidados?...
- Quem é que deles
não carece?... O pai de família tem os filhos, o senhor os seus livros e eu,
que sou criança, tenho as minhas bonecas. Quer vê-las?
- Com o maior
prazer.
Um momento depois a
sala estava invadida por uma enorme quantidade de bonecas, cada uma das quais
tinha seus parentes, seus vestidos, jóias e um número extraordinário de
bugiarias, como qualquer moça da moda as tem no seu toucador.
Ora, o tal bichinho
chamado amor é capaz de amoldar seus escolhidos a todas as circunstâncias e de
obrigá-los a fazer quanta parvoíce há neste mundo. O amor faz o velho criança,
o sábio doido, o rei humilde cativo; faz mesmo, às vezes, com que o feio pareça
bonito e o grão de areia um gigante. O amor seria capaz de obrigar um coxo a
brincar o tempo-será, a um surdo o companheiro companhão e a um
cego o procura quem te deu. O amor foi inventor das cabeleiras, dos
dentes postiços que... mas, alto lá! que isto é bulir com muita gente; enfim, o
amor está fazendo um estudante do quinto ano de Medicina passar um dia inteiro
brincando com bonecas.
Com efeito, Augusto
já sabe de cor e salteado todos os nomes dos membros daquela família; conhece
os diversos graus de parentesco que existem entre eles, acalenta as bonecas
pequenas, despe umas e veste outras, conversa com todas, examina o
guarda-roupa, batiza, casa, em uma palavra, dobra-se aos prazeres de sua bela
mestra, como uma varinha ao vento.
No entanto a Sra. D.
Ana os observa cuidadosa; tem simpatizado muito Augusto, mas nem por isso quer
entregar todo o futuro do objeto que mais ama no mundo ao só abrigo do nobre
caráter e sérias qualidades que tem reconhecido no mancebo.
Como de costume, a
tarde deve de ser empregada em passeios à borda do mar e pelo jardim. O maior
inimigo do amor é a civilidade. Augusto o sentiu, tendo de oferecer seu braço à
Sra. D. Ana; mas esta lhe fez cair a sopa no mel, rogando-lhe que o reservasse
para a sua neta.
Filipe acompanhava
sua avó e na viva conversação que entretinham, o nome de Augusto foi mil vezes
pronunciado.
Uma vez Augusto e
Carolina, que iam adiante, ficaram muito distantes do par que os seguia.
A mão da bela
Moreninha tremia convulsamente no braço de Augusto e este apertava às vezes
contra seu peito, como involuntariamente, essa delicada mão; alguns suspiros
vinham também perturbá-los mais e havia dez minutos eles se não tinham dito uma
palavra.
Em uma das ruas do
jardim duas rolinhas mariscavam; mas, ao sentir passos, voaram e assentando-se
não longe, em um arbusto, começaram a beijar-se com ternura; e esta cena se
passava aos olhos de Augusto e Carolina!...
Igual pensamento,
talvez brilhou em ambas aquelas almas, porque os olhares da menina e do moço se
encontraram ao mesmo tempo e os olhos da virgem modestamente se abaixaram e em
suas faces se acendeu um fogo, que era o do pejo. E o mancebo, apontando para
as pombas, disse:
- Elas se amam!
E a menina murmurou
apenas:
- São felizes!
- Pois acredita que
em amor possa haver felicidade?
- Às vezes.
- Acaso, já tem a
senhora amado?
- Eu?!... e o
senhor?!
- Comecei a amar há
poucos dias.
A virgem guardou
silêncio e o mancebo, depois de alguns instantes, perguntou tremendo:
- E a senhora já
amou também?
Novo silêncio; ela
pareceu não ouvir, mas suspirou. Ele falou menos baixo:
- Já ama também?...
Ela abaixou ainda
mais os olhos e com voz quase extinta disse:
- Não sei...
talvez...
- E a quem?
- Eu não perguntei a
quem o senhor amava.
- Quer que lhe
diga?...
- Eu não pergunto.
- Posso eu fazê-lo?
- Não... Não lho
impeço.
- É a senhora.
D. Carolina fez-se
cor-de-rosa e só depois de alguns instantes pôde perguntar, forcejando um
sorriso:
- Por quantos dias?
- Oh! para
sempre!... respondeu Augusto, apertando-lhe vivamente o braço.
Depois ainda continuou:
- E a senhora não me
revela o nome feliz?...
- Eu não... não
posso...
- Mas por que não
pode?
- Porque não devo.
- E nunca o dirá?!
- Talvez um dia.
- E quando?...
- Quando estiver
certa que ele não me ilude.
- Então... ele é
volúvel?...
- Ostenta sê-lo...
- Oh!... pelo
céu!... acabe de matar-me!... basta o nome pronunciado bem em segredo, bem no
meu ouvido, para que ninguém o possa ouvir, nem a brisa o leve... Pelo céu!...
- Senhor!...
- Um só nome que
peço!...
- É impossível... eu
não posso!...
- Se eu
perguntasse?...
- Oh!... não!...
- Serei eu?...
A vigem tremeu toda
e não pôde responder. Augusto lhe perguntou ainda, com fogo e ternura:
- Serei eu?...
A interessante
Moreninha quis falar... Não pôde, mas, sem o pensar, levou o braço do mancebo até
ao peito e lhe fez sentir como o seu coração palpitava.
- Serei eu?...
perguntou uma terceira vez Augusto, com requintada ternura.
A jovenzinha
murmurou uma palavra que pareceu mais um gemido que uma resposta, porém que fez
transbordar a glória e entusiasmo na alma do seu amante. Ela tinha dito
somente:
- Talvez.
22
Mau Tempo
Tristes dias têm-se
arrastado. Augusto está desesperado. Voltando da ilha de..., depois daquele
belo dia da declaração de amor, achou na Corte seu pai e em poucos momentos
teve de concluir, da severidade com que era tratado, que já alguém o havia
prevenido das suas loucuras e dos muitos pontos que ultimamente tinha dado nas
aulas. A mais bem merecida repreensão, e um discurso cheio de conselhos e
admoestações, vieram por fim dar-lhe a certeza de que o seu bom velho estava
ciente de tudo.
Para coroar a obra,
contra o costume do maior número dos nossos agricultores, que, quando vêm à
cidade, estão no caso do fogo viste lingüiça? e ainda bem não puseram os
pés no Largo do Paço já têm os pés na Praia Grande (que por estes bons
cinqüenta anos há de continuar a ser Praia Grande, apesar de a terem crismado
Niterói), o pai de Augusto não falava em voltar para a roça; e, a julgar-se
pelo sossego e vagar com que tratava os menos importantes negócios, parecia
haver esquecido a moagem e a safra.
Chegou o sábado. O
nosso Augusto, depois de muitos rodeios e cerimônias, pediu finalmente licença
para ir passar o dia de domingo na ilha de... e obteve em resposta um não
redondo; jurou que tinha dado sua palavra de honra de lá se achar nesse dia e o
pai, para que o filho não cumprisse a palavra, nem faltasse à honra, julgou
muito conveniente trancá-lo no seu quarto.
Mania antiga é essa
de querer triunfar das paixões com fortes meios; erro palmar, principalmente no
caso em que se acha o nosso estudante; amor é um menino doidinho e malcriado,
que, quando alguém intenta refreá-lo, chora, escarapela, esperneia, escabuja,
morde, belisca e incomoda mais que solto e livre; prudente é facilitar-lhe o
que deseja, para que ele disso se desgoste; soltá-lo no prado, para que não
corra; limpar-lhe o caminho, para que não passe: acabar com as dificuldades e
oposições, para que ele durma e muitas vezes morra. O amor é um anzol que,
quando se engole, agadanha-se logo no coração da gente, donde, se não é com
jeito destravado, por mais força que se faça mais o maldito rasga, esburaca e
se profunda. Portanto, muita indústria deve ter quem o quer pôr na rua, e para
consegui-lo convém ir despedindo-o com bons modos, parlamentares oferecimentos
e nunca bater-lhe com a porta na cara. Porém os homens, mal passam de certa
idade, só se lembram do seu tempo para gritar contra o atual e esquecem
completamente os ardores da mocidade. O resultado disso é o mesmo que tirará o
pai de Augusto da energia e violência com que procura apagar a paixão do filho.
Já era tarde.
Augusto ama deveras, e pela primeira vez em sua vida; e o amor, mais forte que
seu espírito, exercia nele um poder absoluto e invencível. Ora, não há idéias
mais livres que as do preso; e, pois, o nosso encarcerado estudante soltou as
velas da barquinha de sua alma, que voou atrevida por esse mar imenso da
imaginação: então, começou a criar mil sublimes quadros e em todos eles lá
aparecia a encantadora Moreninha, toda cheia de encantos e graças; viu-a, com
seu vestido branco, esperando-o em cima do rochedo; viu-a chorar, por ver que
ele não chegava, e suas lágrimas queimavam-lhe o coração. Ouviu-a acusá-lo de
inconstante e ingrato; daí a pouco pareceu-lhe que ela soluçava, escutou um
grito de dor semelhante a esse que soltara no primeiro dia que ele tinha
passado na ilha! Aqui, foi o nosso estudante às nuvens; saltou exasperado fora
do leito em que se achava deitado, passeou a largos passos por seu quarto,
acusou a crueldade dos pais, experimentou se podia arrombar a porta, fez mil
planos de fuga, esbravejou, escabelou-se e, como nada disso lhe valesse, atirou
com todos os seus livros para baixo da cama e deitou-se de novo, jurando que
não havia de estudar dois meses. Carrancudo e teimoso, mandou voltar o almoço,
o jantar e a ceia que lhe trouxeram, sem tocar num só prato; e sentindo que seu
pai abria a porta do quarto, sem dúvida para vir consolá-lo e dar-lhe salutares
conselhos, voltou o rosto para a parede e principiou a roncar como um
endemoninhado.
- Já dormes,
Augusto? perguntou o bom pai, abrindo as cortinas do leito.
A única resposta que
obteve foi um ronco que mais assemelhou-se a um trovão.
O experimentado
velho fingiu ter-se deixado enganar e, retirando-se, trancou a porta ao pobre
estudante.
Uma noite de amargor
foi, então, a que se passou para este; na solidão e silêncio das trevas, a alma
do homem que padece é, mais que nunca, toda de sua dor; concentra-se,
mergulha-se inteira em seu sofrimento, não concebe, não pensa, não vela e não
se exalta se não por ele. Isto aconteceu a Augusto, de modo que, ao abrir-se na
manhã seguinte a porta do quarto, o pai veio encontrá-lo ainda acordado, com os
olhos em fogo e o rosto mais enrubescido que de ordinário.
Augusto quis dar
dois passos e foi preciso que os braços paternais o sustivessem para livrá-lo
de cair.
- Que fizeste,
louco? perguntou o pai, cuidadoso.
- Nada, meu pai;
passei uma noite em claro, mas... eu não sofro nada .
Oh! ele queria dizer
que sofria muito!
Imediatamente foi-se
chamar um médico que, contra o costume da classe, fez-se esperar pouco.
Augusto sujeitou-se
com brandura ao exame necessário e quando o médico lhe perguntou:
- O que sente?
Ele respondeu, com
toda fria segurança do homem determinado:
- Eu amo.
- E mais nada?
- Oh! Sr. doutor,
julga isso pouco?
E além destas
palavras não quis pronunciar mais uma única sobre o seu estado. E, contudo, ele
estava em violenta exacerbação. O médico deu por terminada a sua visita.
Algumas aplicações se fizeram e um dos colegas de Augusto, que o tinha vindo
procurar, fez-lhe o que chamou uma bela sangria de braço.
A enfermidade de
Augusto não cedeu, porém, com tanta facilidade como a princípio supôs o médico;
três dias se passaram sem conseguir-se a mais insignificante melhora; uma
mudança apenas se operou: a exacerbação foi seguida de um abatimento e
prostração de forças notável; sua paixão, que também se desenhava no ardor dos
olhares, na viveza das expressões e na audácia dos pensamentos, tomou outro
tipo: Augusto tornou-se pálido, sombrio e melancólico; horas inteiras se
passavam sem que uma só palavra fosse apenas murmurada, por seus lábios,
prolongadas insônias eram marcadas minuto a minuto por dolorosos gemidos, e
seus olhos, amortecidos, como que obsequiavam a luz quando por acaso se
entreabriam. Na visita do quarto dia o médico disse ao pai de Augusto:
- Não vamos bem...
Uma idéia terrível
apareceu então no pensamento do sensível velho: a possibilidade de morrer seu
filho, a flor de suas esperanças, e tal idéia derramou em seu coração todo esse
fel, cujo amargor só pode sentir a alma de um pai; e entrou apressado e trêmulo
no quarto do enfermo, e vendo-o prostrado no leito, como insensível, como meio
morto, exclamou, com lágrimas nos olhos:
- O meu filho!...
meu filho!... por que me queres matar?
Um brando favônio de
vida passeou pelo rosto de Augusto; seus olhos se abriram, um leve sorriso de
gratidão lhe alisou os lábios, também duas lágrimas ficaram penduradas em suas
pálpebras e ele, tomando e beijando a mão paterna, murmurou com voz sumida e
terna:
- Meu pai... tão
bom!...
Doces frases que
retumbaram com mais doçura ainda no coração do velho.
- Querido louco!...
disse ele: tu me obrigas a fazer loucuras!
E saiu do quarto e
logo depois de casa, mas, voltando passadas algumas horas, entrou de novo na
câmara do doente; fez retirar todas as pessoas que aí se achavam e, ficando só
com ele, deu-lhe, provavelmente, algum elixir tão admirável, que as melhoras
começaram a aparecer como por encantamento, no mesmo instante. Que milagre não
será capaz de fazer o amor dos pais?
Novidades do mesmo
gênero perturbavam a paz e os prazeres da ilha de... D. Carolina também
padecia. Os nossos amantes acabavam de chegar ao sentimental e, com seu
sentimentalismo, estavam azedando a vida dos que lhes queriam bem. Os namorados
são semelhantes às crianças: primeiro divertem-nos com suas momices, depois
incomodam-nos choramingando.
A bela Moreninha
tinha visto romper a aurora do domingo no rochedo da gruta, e, tendo debalde
esperado o seu estudante até alto dia, voltou para casa arrufada. No almoço não
houve prato que não acusasse de mal temperado: faltava-lhe o tempero do amor; o
chá não se podia tomar, o dia estava frio de enregelar, toda a gente de sua
casa a olhava com maus olhos; seu próprio irmão tinha um defeito imperdoável:
era estudante... Pertencia a uma classe, cujos membros eram, sem exceção, sem
exceção nenhuma, (bradava ela lindamente enraivecida) falsos, maus, mentirosos
e até... feios. À tarde sentiu-se incomodada. Retirou-se, não ceou e não
dormiu.
Tudo neste mundo é
mais ou menos compensado; o amor não podia deixar de fazer parte da regra. Ele,
que de um nadazinho tira motivos para o prazer de dias inteiros, que de uma
flor já murcha engendra o mais vivo contentamento, que por um só cabelo faz
escarcéus tais, que nem mesmo a sorte grande os causaria, que por uma cartinha
de cinco linhas põe os lábios de um pobre amante em inflamação aguda com o
estalar de tantos beijos, se não produzisse também agastados arrufos, às vezes
algumas cólicas, outras amargores de boca, palpitações, ataques de hipocondria,
pruído de canelas, etc., seria tão completa a felicidade cá embaixo, que a
terra chegaria a lembrar-se de ser competidora do céu.
Um exemplo dessa
regra está sendo a nossa cara menina. Coitadinha! vai passando uma semana de
ciúmes e amarguras. Acordando-se ao primeiro trinar do canário, ela busca o
rochedo, e, com os olhos embebidos no mar, canta muitas vezes a balada de Aí,
repetindo com fogo a estrofe que tanto lhe condiz, por principiar assim:
“Eu tenho quinze
anos,
E sou morena e
linda.”
E quando o sol
começa a fazer-se quente, deixa o rochedo, para passar o dia inteiro no fundo
do gabinete, ou ao lado de sua boa avó, que mal pode consolá-la, porque,
conhecendo já a causa da tristeza da querida neta, teme vê-la fugir vermelha de
pejo, se não fingir com finura que ignora o estado de seu coração.
O dia de sexta-feira
trouxe ainda algumas novidades à ilha de... A Sra. D. Ana recebeu cartas que a
tornaram talvez menos triste, mas sem dúvida muito pensativa. A presença da
linda neta parecia alentar mais essas reflexões, que se prolongaram até a tarde
do dia seguinte, em que um velho e particular amigo de sua família veio da
Corte visitá-la e com a respeitável senhora ficou duas horas conferenciando a
sós.
Esse homem
despediu-se, enfim, da Sra. D. Ana, deixando-a cheia de prazer; e, no momento
em que saltava dentro do seu batel, vendo a interessante Moreninha que
tristemente passeava à borda do mar, saudou-a com esta simples palavra, apontando
para o céu:
- Esperança!
D. Carolina levantou
a cabeça e viu que já o batel cortava as ondas, mas, como para corresponder a tão animador cumprimento, ela, por sua
vez, apontou também para o céu, e pondo a outra mão no lugar do coração disse:
- Esperarei!
23
A Esmeralda e o Camafeu
Dona
Carolina passou uma noite cheia de pena e de cuidados, porém já menos ciumenta
e despeitada; a boa avó livrou-a desses tormentos; na hora do chá, fazendo com habilidade
e destreza cair a conversação sobre o estudante amado, disse:
-
Aquele interessante moço, Carolina, parece pagar-nos bem a amizade que lhe
temos, não entendes assim?...
- Minha avó... eu
não sei.
- Dize sempre,
pensarás acaso de maneira diversa?...
A menina hesitou um
instante, e depois respondeu:
- Se ele pagasse
bem, teria vindo domingo.
- Eis uma injustiça,
Carolina. Desde sábado à noite que Augusto está na cama, prostrado por uma
enfermidade cruel.
- Doente?! exclamou
a linda Moreninha, extremamente comovida. Doente?... em perigo?...
- Graças a Deus, há
dois dias ficou livre dele; hoje já pôde chegar à janela, assim me mandou dizer
Filipe.
- Oh! pobre moço!...
se não fosse isso teria vindo ver-nos!...
E, pois, todos os
antigos sentimentos de ciúme e temor da inconstância do amante se trocaram por
ansiosas inquietações a respeito de sua moléstia.
No dia seguinte, ao
amanhecer, a amorosa menina despertou e, buscando o toucador, há uma semana
esquecido, dividiu seus cabelos nas duas costumadas belas tranças, que tanto
gostava de fazer ondear pelas espáduas, vestiu o estimado vestido branco e
correu para o rochedo.
- Eu me alinhei,
pensava ela, porque, enfim... hoje é domingo e talvez... Como ontem já pôde
chegar à janela, talvez consiga com algum esforço vir ver-me.
E quando o sol
começou a refletir seus raios sobre o liso espelho do mar, ela principiou
também a cantar sua balada:
“Eu tenho quinze
anos,
E sou morena e
linda”
Mas, como por
encanto, no instante mesmo em que ela dizia no seu canto:
“Lá vem sua
piroga
Cortando leve os
mares”
um lindo batelão apareceu ao
longe, voando com asa intumescida para a ilha.
Com
força e comoção desusadas bateu o coração a D. Carolina, que calou-se para só empregar
no batel que vinha atentas vistas, cheias de amor e de esperança. Ah! era o
batel suspirado.
Quando
o ligeiro barquinho se aproximou suficientemente, a bela Moreninha distinguiu
dentro dele Augusto, sentado junto de um respeitável ancião, a quem não pôde
conhecer; então, ela vendo que chegavam à praia, fingiu não tê-los sentido e
continuou sua balada:
“Enfim, abica à
praia
Enfim, salta
apressado...”
Augusto, com efeito,
saltava nesse momento fora do batel, e depois deu a mão a seu pai, para ajudá-lo
a desembarcar; e D. Carolina, que ainda não mostrava dar fé deles, prosseguiu
seu canto, até que, quando dizia:
“Quando há de ele
correr
Somente pra me
ver...”
sentiu que Augusto corria para
ela. Prazer imenso inundava a alma da menina, para que possa ser descrito; como
todos prevêem, a balada foi nessa estrofe interrompida e D. Carolina, aceitando
o braço do estudante, desceu do rochedo e foi cumprimentar o pai dele.
Ambos os amantes
compreenderam o que queria dizer a palidez de seus semblantes e os vestígios de
um padecer de oito dias; guardaram silêncio; não tiveram uma palavra para
pronunciar; tiveram só olhares para trocar e suspiros a verter. E para que
mais?...
A Sra. D. Ana
recebeu com sua costumada afabilidade o pai de Augusto e abraçou a este com
ternura. Ao servir-se o almoço, ela lhe perguntou:
- Por que não veio o
meu neto?
- Ficou para vir
mais tarde, com os nossos dois amigos Leopoldo e Fabrício.
- Então teremos um
excelente dia.
- Eu o espero.
Uma hora depois o
pai de Augusto e a Sra. D. Ana conferenciavam a sós, e os dois namorados
achavam-se, defronte um do outro, no vão de uma janela.
E eles continuavam
no silêncio, mas olhavam-se com fogo.
Augusto parecia
querer comunicar alguma coisa bem extraordinária à sua interessante amada,
porém sempre estremecia ao entreabrir os lábios.
E D. Carolina,
cônscia já de sua fraqueza, e como lembrando-se dos pesares que tinha sofrido,
não sabia mais servir-se de seus sorrisos com a malícia do tempo da liberdade e
mostrava-se esquecida de seu viver de alegrias e travessuras.
Alguma grande
resolução obrigava o moço a estar silencioso, como tremendo pelo êxito dela?...
No fim de muito
tempo eles haviam conseguido dizer-se:
- O mar está bem
manso.
- O dia está sereno.
Felizmente para eles
a Sra. D. Ana os convidou a entrar no gabinete. Augusto para aí se dirigiu
tremendo, D. Carolina curiosa. Quando eles se sentaram, o ancião falou:
- Augusto, eu acabo
de obter desta respeitável senhora a honra de te julgar digno de pretenderes a
mão de sua linda neta, agora resta que alcances o sim da interessante pessoa
que amas. Fala.
Tanto D. Carolina
como o pobre estudante ficaram cor de nácar; houve bons cinco minutos de
silêncio: o pai de Augusto instou para que ele falasse. E o bom do rapaz não
fez mais que olhar para a moça, com ternura, abrir a boca e fechá-la de novo,
sem dizer palavra.
A Sra. D. Ana tomou
então a palavra e disse sorrindo-se:
- Enfim, é
necessário que os ajudemos. Carolina, o Sr. Augusto te ama e te quer para sua
esposa; tu que dizes?...
Nem palavra.
Foi preciso que se
repetisse pela terceira vez a pergunta, para que a menina, sem levantar a
cabeça, murmurasse apenas:
- Minha avó... eu
não sei.
- Pois creio que
ninguém melhor que tu o poderá saber. Desejas que eu responda em teu nome?...
A bela Moreninha
pensou um momento... não pôde vencer-se, sorriu-se como se sorria dantes, e
erguendo a cabeça, disse:
- Eu rogo que daqui
a meia hora se vá receber a minha resposta na gruta do jardim.
- Quererás consultar
a fonte? Pois bem, iremos.
D. Carolina saiu com
ar meio acanhado e meio maligno. Passados alguns instantes a Sra. D. Ana, como
quem estava certa do resultado da meia hora de reflexão, e já por tal podia
gracejar com os noivos, disse a Augusto:
- O Sr. não quer
refletir também no jardim?
O estudante não
esperou segundo conselho e para logo dirigiu-se à gruta. D. Carolina estava
sentada no banco de relva, e seu rosto, sem poder ocultar a comoção e o pejo
que lhe produziu o objeto de que se tratava, tinha, contudo, retomado o antigo
verniz do prazer e malícia. Vendo entrar o moço disse:
- Eu creio que ainda
se não passou meia hora.
- Ah! podia eu
esperar tanto tempo?...
- Acaso veio
perguntar-me alguma coisa?...
- Não, minha
senhora, eu só venho ouvir a minha sentença.
- Então... pede-me
para sua esposa?...
- A senhora o ouviu
há pouco.
- Pois bem, Sr.
Augusto, veja como verificou-se o prognóstico que fiz do seu futuro! Não se
lembra que aqui mesmo lhe disse “que não longe estava o dia em que o Sr. havia
de esquecer sua mulher”?
- Mas eu nunca fui
casado... murmurou o estudante!...
- Oh! isso é uma
recomendação contra a sua constância!...
- E quem tem culpa
de tudo, senhora?
- Muito a tempo
ainda me lança em rosto a parte que tenho na sua infidelidade, pois, eu
emendarei a mão agora. O senhor há de cumprir a palavra que deu há sete anos!
Augusto recuou dois
passos.
- O senhor é um moço
honrado, continuou a cruel Moreninha, e, portanto, cumprirá a palavra que deu,
e só casará com sua desposada antiga.
- Oh!... agora já é impossível!
- Ela deve ser uma
bonita moça!... teria razão de queixar-se contra mim, se eu roubasse um coração
que lhe pertence... até por direito de antiguidade; ora eu, apesar de ser
travessa, não sou má, e, portanto, o senhor só será esposo dessa menina.
- Jamais!
- Juro-lhe que há de
sê-lo.
- E quem me poderá
obrigar?
- Eu, pedindo.
- A senhora?
- E a honra,
mandando.
- Para que, pois,
animou o amor que pela senhora sinto?...
- Para satisfazer as
minhas vaidades de moça, somente para isso. Eu o ouvi gabar-se de que nenhuma
mulher seria capaz de conservá-lo em amoroso enleio por mais de três dias, e
desejei vingar a injúria feita ao meu sexo. Trabalhei, confesso que trabalhei
por prendê-lo; fiz talvez mais do que devia, só para ter a glória de perguntar-lhe
uma vez, como agora o faço: “Então, senhor, quem venceu: o homem ou a
mulher?...”
- Foi a beleza.
- Porém já passou o
tempo do galanteio, e eu devo lembrar-lhe o dever que com a paixão esquece.
Escute: na idade de treze anos o senhor amou uma linda e travessa menina, que
contava apenas sete.
- Já a senhora em
outra ocasião me disse isso mesmo.
- Junto ao leito de
um moribundo jurou que havia de amá-la para sempre.
- Foi um juramento
de criança.
- Embora, foi um
juramento; trocou com ela aí mesmo prendas de amor, e quando a menina lhe
apresentar a que recebeu e lhe pedir a que lhe ofereceu e o senhor aceitou?...
- Ah! senhora!...
- Quando o velho
moribundo, dando-lhe o breve de cor branca disse: tomai este breve, cuja cor
exprime a candura da alma daquela menina; ele contém o vosso camafeu; se tendes
bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho,
para que ela o guarde com desvelo. Por que deu o senhor o breve à menina?...
- Porque eu era um
louco, uma criança?
- E nem ao menos se
lembra de que o velho disse com voz inspirada: “Deus paga sempre a esmola que
se dá ao pobre!... lá no futuro vós o sentireis”? Não tem o senhor esperança de
ver realizar-se essa bela profecia? não se lembra de ouvi-la? Pois ela soou bem
docemente no meu coração quando às escondidas, a escutei repetida nesta gruta
por seus lábios.
- Oh! mas por que
Deus não me prendeu a essa menina nos laços indissolúveis, antes que eu visse o
lindo anjo desta ilha?
- E como, senhor,
posso eu acreditar nos seus protestos de ternura e constância, se já o vejo
faltar à fé a uma outra?... Senhor! senhor! o que foi que prometeu há sete anos
passados?...
- Então eu não
pensava no que fazia.
- E agora pensa no
que quer fazer?
- Penso que sou um
desgraçado, um louco!... penso que é uma barbaridade inqualificável que,
enquanto eu padeço, e sofro mil torturas, deixe a senhora brincar nos seus
lábios o sorriso com que costuma encantar para matar. Penso...
- Acabe!
- Penso que devo
fugir para sempre desta ilha fatal, deixar aquela cidade detestável, abandonar
esta terra de minha pátria, onde não posso ser outra vez feliz!... penso que a
lembrança do meu passado faz a minha desgraça, que o presente me enlouquece e
me mata, que o futuro... Oh! já não haverá futuro para mim! Adeus senhora!...
- Então, parte?...
- E para sempre.
D. Carolina deixou
cair uma lágrima e falou ainda, mas já com voz fraca e trêmula:
- Sim, deve
partir... vá... Talvez encontre aquela a quem jurou amor eterno... Ah! senhor!
nunca lhe seja perjuro.
- Se eu
encontrasse!...
- Então?... que
faria?...
- Atirar-me-ia a
seus pés, abraçar-me-ia com eles e lhe diria: “Perdoai-me, perdoai-me, senhora,
eu já não posso ser vosso esposo! tomai a prenda que me deste...”
E o infeliz amante
arrancou debaixo da camisa um breve, que convulsivamente apertou na mão.
- O breve verde!...
exclamou D. Carolina, o breve que contém a esmeralda!...
- Eu lhe diria,
continuou Augusto: “recebei este breve que já não devo conservar, porque eu amo
outra que não sois vós, que é mais bela e mais cruel do que vós!...”
A cena se estava
tornando patética; ambos choravam e só passados alguns instantes a inexplicável
Moreninha pôde falar e responder ao triste estudante.
- Oh! pois bem,
disse; vá ter com sua desposada, repita-lhe o que acaba de dizer, e se ela
ceder, se perdoar, volte que eu serei sua... esposa.
- Sim... eu corro...
Mas, meu Deus, onde poderei achar essa moça a quem não tornei a ver, nem
poderei conhecer?... onde meu Deus?... onde?...
E tornou a deixar
correr o pranto, por um momento suspendido.
- Espere, tornou D.
Carolina, escute, senhor. Houve um dia, quando a minha mãe era viva, em que eu
também socorri um velho moribundo. Como o senhor e sua camarada, matei a fome
de sua família e cobri a nudez de seus filhos; em sinal de reconhecimento
também este velho me fez um presente: deu-me uma relíquia milagrosa que,
asseverou-me ele, tem o poder uma vez na vida de quem a possui, de dar o que se
deseja; eu cosi essa relíquia dentro de um breve; ainda não lhe pedi coisa
alguma, mas trago-a sempre comigo; eu lha cedo... tome o breve, descosa-o, tire
a relíquia e à mercê dela encontre sua antiga amada. Obtenha o seu perdão e me
terá por esposa.
- Isto tudo me parece um sonho, respondeu Augusto, porém, dê-me, dê-me
esse breve!
A menina, com
efeito, entregou o breve ao estudante, que começou a descosê-lo
precipitadamente. Aquela relíquia, que se dizia milagrosa, era sua última
esperança; e, semelhante ao náufrago que no derradeiro extremo se agarra à mais
leve tábua, ele se abraçava com ela. Só falta a derradeira capa do breve...
ei-la que cede e se descose... salta uma pedra... e Augusto, entusiasmado e
como delirante, cai aos pés de D. Carolina, exclamando:
- O meu camafeu!...
o meu camafeu!...
A senhora D. Ana e o
pai de Augusto entram nesse instante na gruta e encontram o feliz e fervoroso
amante de joelhos e a dar mil beijos nos pés da linda menina, que também por
sua parte chorava de prazer.
- Que loucura é
esta? perguntou a senhora D. Ana.
- Achei minha
mulher!... bradava Augusto; encontrei minha mulher!
- Que quer dizer
isto, Carolina?...
- Ah! minha boa
avó!... respondeu a travessa Moreninha ingenuamente: nós éramos conhecidos
antigos.
Epílogo
A chegada de Filipe, Fabrício e Leopoldo
veio dar ainda mais viveza ao prazer que reinava na gruta. O projeto de
casamento de Augusto e D. Carolina não podia ser um mistério para eles, tendo
sido como foi, elaborado por Filipe, de acordo com o pai do noivo, que fizera a
proposta, e com o velho amigo, que ainda no dia antecedente viera concluir os
ajustes com a senhora D. Ana; e, portanto, o tempo que se gastaria em
explicações passou-se em abraços.
- Muito bem! muito bem! disse por
fim Filipe; quem pôs o fogo ao pé da pólvora fui eu, que obriguei Augusto a vir
passar o dia de Sant’Ana conosco.
- Então estás arrependido?...
- Não, por certo, apesar de me
roubares minha irmã. Finalmente para este tesouro sempre teria de haver um
ladrão: ainda bem que foste tu que o ganhaste.
- Mas, meu maninho, ele perdeu
ganhando...
- Como?...
- Estamos no dia 20 de agosto: um
mês!
- É verdade! um mês! exclamou
Filipe.
- Um mês!... gritaram Fabrício e
Leopoldo.
- Eu não entendo isto! disse a
senhora D. Ana.
- Minha boa avó, acudiu a noiva,
isto quer dizer que finalmente está presa a borboleta.
- Minha boa avó, exclamou Filipe,
isto quer dizer que Augusto deve-me um romance.
- Já está pronto, respondeu o noivo.
- Como se intitula?
-
A
Moreninha.